O controle do tempo de trabalho sempre existiu. Seja o controle natural, dado pelo limite físico do próprio trabalhador e das condições climáticas existentes, seja o controle artificial, dado pelo poder de um homem sobre outro.
No estado de natureza2, o tempo de trabalho era igual ao tempo necessário à produção dos bens necessários à subsistência. Não havia produção de excedente para a troca ou para o comércio. Não havia produção de bens para a extração de mais-valia. Não havia divisão social do trabalho. O trabalho atendia apenas à demanda individual ou familiar.
O tempo de trabalho, deste modo, variava apenas de acordo com as condições climáticas que favoreciam ou não a oferta de alimentos, de caça, de matéria prima para a produção artesanal então existente. A luz do sol era o relógio. A fome iniciava a jornada assim como a saciedade a findava.
Todavia, com o nascimento da sociedade civil, com a instituição do contrato social, o tempo e o controle do tempo de trabalho foram drasticamente modificados. O tempo de trabalho deixou de ser controlado exclusivamente pela natureza (pelo limite físico do próprio trabalhador e das condições climáticas existentes) e passou a também ser determinado pelo poder de um homem sobre o outro. As relações de poder capazes de sujeitar um homem a trabalhar para outro, mediante remuneração ou não, mediante violência ou não, apenas surge com a sociedade civil, com a organização coletiva racional. A ideia de sociedade desenhou uma organização em que uns tinham de trabalhar enquanto outros tinham de fazer alguma outra coisa. A partir de então, houve um contínuo processo de transformação dos meios de produção da vida material (nomadismo, feudalismo, mercantilismo, capitalismo) que determinou a forma de organização social e política então existentes3. Aos poucos, surgiu a necessidade de produção de excedente para a troca e para o comércio. Aos poucos, o trabalho deixou de atender a uma demanda exclusivamente individual ou familiar para atender a uma demanda coletiva. A produção de bens foi dividida. O tempo de trabalho e o controle da jornada de trabalho passaram a contar com as variáveis poder e capital. O controle natural do tempo transmuda-se para o controle social do tempo.
Iniciados os processos de industrialização na Europa nos séculos XVIII e XIX, o tempo da jornada de trabalho deveria ser aquele que conciliasse os interesses da máxima produção possível com a conservação da força de trabalho, ou seja, deveria ser o tempo necessário ao atingimento do nível máximo de produção sem perda de força de trabalho por doenças, estresse, e outros decorrentes de excesso de labor. Tal jornada de trabalho permitiria ao capitalista extrair o máximo possível de mais-valia absoluta (estendendo a duração da jornada de trabalho e mantendo o salário constante), já que o valor do salário tinha por finalidade tão somente a subsistência do operário, ou seja, a manutenção da mão-de-obra aplicada. Um sistema que não respeitasse esse limite de jornada de trabalho certamente levaria à escassez de mão-de-obra e elevação do seu valor, elevação dos custos de produção. Nesta fase, a jornada de trabalho ainda era limitada exclusivamente pelas necessidades biológicas do trabalhador. O homem era testado no seu limite, enquanto animal. Muitas vezes os limites eram subestimados e as mortes de homens, mulheres grávidas, crianças, eram comuns em meio às linhas de produção. As jornadas diárias eram de doze a quinze horas, raramente com mais de um intervalo. As condições de trabalho eram péssimas, insalubres e periculosas. O trabalho encontrava limites apenas na força do trabalhador. Esta força, enquanto energia vital materializada, é que limitava o tempo de trabalho.
Com o contínuo desenvolvimento dos meios de produção, com as lutas operárias, com os avanços na legislação do trabalho, percebeu-se que as necessidades biológicas do trabalhador não deveriam ser as únicas levadas em consideração para delimitar-se a jornada de trabalho. Outras variáveis deveriam compor esse cálculo, dentre elas a satisfação de outras necessidades humanas (psíquicas, afetivas, culturais, sociais) além das necessidades estritamente biológicas. O trabalho, em si mesmo, não traz sentido à vida do homem. O trabalho, para enriquecer o homem e ser enriquecido por ele, deve ser um meio de desenvolvimento das potencialidades humanas. Isto significa que o trabalho deve permitir ao homem ser quem ele realmente é, e ainda, no futuro, ser quem ele um dia desejou ser. O trabalho deve aproximar o homem do convívio social, da família, da cultura, das artes, e não afastá-lo. O trabalho deve formar e informar e não alienar ou estranhar. Por isso, não se pode delimitar a jornada de trabalho do homem como se delimita a jornada de trabalho de uma mula ou de um boi. As necessidades do ser racional são indubitavelmente maiores e a jornada de trabalho não deve impedir ou dificultar a realização de nenhuma delas, sob pena da indignidade e de reflexos na produção (queda de qualidade, produtividade e até mesmo perda de capital humano).
Neste sentido seguiram os Estados modernos. Hoje há até uma tendência para a redução na jornada de trabalho e, quando possível, para a completa ausência de controle de jornada. O desenvolvimento das técnicas de produção possibilita a intensificação da mais-valia relativa (mais produção em menos tempo, com salário constante) em detrimento da mais-valia absoluta (mais produção em mais tempo, com salário constante). Há uma maior preocupação com o capital humano, com o desenvolvimento de suas potencialidades, ainda que o fim último seja a otimização dos resultados e a maximização dos lucros. Ainda que o avanço tecnológico extinga preciosos postos de trabalho, talvez mais do que os crie, os postos que permanecem ganham em qualidade de atividade e valor de remuneração. Essa produção tecnologicamente avançada gera bens e serviços de alto valor agregado. A economia pujante possibilita ao Estado fornecer serviços públicos de qualidade (saúde, educação, programas habitacionais, etc.), auxiliando inclusive aqueles que perderam o emprego a se recolocarem no mercado de trabalho.
Pois bem, considerando essa despretensiosa análise histórica, entendo que a limitação da jornada de trabalho possui natureza jurídica híbrida: é um direito natural, decorrente das limitações biológicas do homem, e ao mesmo tempo, um direito positivo, decorrente das limitações sociais do homem.
Por oportuno, vejamos alguns exemplos da distinção entre direito natural e direito positivo. Nós temos direito à vida não porque a Constituição diz, mas ela o diz justamente porque o temos. O direito à vida, portanto, é natural, anterior e superior ao direito positivo. Não obstante, nós também temos direito ao voto direto, secreto e universal, mas tão somente porque a Constituição assim nos garante, já que votar não é natural a todos os homens. O homem que não vota, continua sendo homem. Esse direito, portanto, não é natural, mas sim positivo.
O mesmo ocorre com o direito à limitação da jornada de trabalho.
Por um lado, é natural, porque o trabalho encontra limites na força do trabalhador. Esta, enquanto energia vital materializada, é que limita, em última instância, o tempo de trabalho. A força de trabalho, por sua vez, é determinada biologicamente. Não é a lei que diz que a jornada de oito horas é mais adequada à boa saúde do trabalhador, mas sim o próprio corpo. Isto significa que a limitação da jornada de trabalho não é uma simples benesse do Estado moderno, ou um direito positivo puro, passível de supressão ou de alterações que não levem em conta o fator natural. Assim como não se pode determinar, por lei, que chova todas as segundas-feiras, pois é interessante que faça sol nos finais de semana, também não se pode determinar, por lei, que a jornada de trabalho se estenda para além dos limites naturais (biológicos) do trabalhador. A natureza assim impede.
Por outro lado, o direito à limitação da jornada de trabalho também é positivo. Isto porque é o direito que padroniza e estabelece os critérios de limitação da jornada de trabalho, equacionando as necessidades sociais do homem com o atual desenvolvimento das forças produtivas. É o direito que se contrapõe (ou pode se contrapor) às variáveis capital e poder. Quanto maior o desenvolvimento dos meios de produção, maior será a capacidade do Estado de garantir ao homem a realização de suas necessidades humanísticas, sociais, e isto refletirá na esfera jurídica de cada cidadão.
Mas e a escravidão? A escravidão foi institucionalizada, tutelada pelo direito positivo. O trabalho infantil, o trabalho em condições insalubres e periculosas, também o foram.
Como se explicam tais violações, e ainda, a permanência desta situação ao longo de séculos? Isto não seria um sinal de que o direito à limitação da jornada de trabalho seria exclusivamente positivo ao invés de natural?
Pois bem, a violação a um direito, seja ele natural ou positivo, não lhe modifica a natureza4. A discussão sobre a existência de um direito e de sua classificação não se confunde com a discussão sobre sua observância ou efetividade. Vale dizer, a lesão, ainda que contumaz, a um direito, não macula a sua existência e a sua definição. A escravidão, assim como as guerras, como o holocausto, como o apartheid, entre tantos outros fatos históricos que envergonharam a humanidade, contradisseram os direitos naturais. E a vergonha, a repulsa, a culpa que carregamos advêm justamente desta contradição, entre o que se fez e o que deveria ter sido feito, tendo em vista os direitos naturais do homem. A escravidão não comprovou que o homem pode ou consegue trabalhar sem qualquer limitação de jornada, assim como as guerras não comprovaram que não temos direito à paz, o holocausto não comprovou que os judeus não mereciam um Estado, e o apartheid não comprovou que os negros não são iguais aos brancos. A antítese é inerente à tese, e de ambas nasce a síntese, assim funciona o processo histórico dialético. A síntese destes fatos históricos foi justamente a confirmação do homem livre e a abolição da escravidão institucionalizada em todos os países do mundo, a afirmação do princípio de convivência pacífica entre os povos mediada pelo trabalho da ONU, a criação do Estado de Israel e a atual tentativa de criação de um Estado Palestino, o fim do apartheid e a eleição de Nelson Mandela à presidência da África do Sul. Portanto, a síntese destes fatos históricos, face às atrocidades cometidas, foi justamente a confirmação dos direitos naturais do homem, com reflexos no direito positivo de todos os Estados do mundo. O direito posto foi obrigado a modificar-se, porque não choveu às segundas-feiras, porque o direito natural não pôde mais ser negado.
Assim sendo, do controle natural da jornada de trabalho ao controle artificial ou social, vê-se uma luta histórica do homem contra o tempo e do homem contra o próprio homem.... Porque o tempo faz o homem e o homem faz o seu tempo.
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1 Eclesiastes 3:01. A citação é poética e não religiosa, apesar de bíblica.
2 O conceito segundo Locke.
3 A classificação dos modos de produção existentes no decorrer da história, de acordo com este ou aquele autor, é menos importante do que a certeza de que existiram diferentes modelos e que estes determinaram a organização social e política então vigentes. Adoto uma classificação didática, embora limitada, mas útil ao fim deste ensaio. A análise perfunctória da matéria dispensa detalhes sobre o nomadismo, feudalismo, mercantilismo e capitalismo.
4 Natureza no sentido de essência, de característica fundamental.
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* Pedro Felipe Monteiro de Vasconcelos é advogado do escritório JBM Advogados