Tema dos mais controvertidos em Direito do Trabalho é o chamado cargo e confiança, que, por definição do artigo 62 da Consolidação das Leis do Trabalho, escapa do regime geral de controle de horário, e, pois, do direito à remuneração por horas extras. Na prática, criou-se uma máxima – contra a lógica da proteção da saúde de TODOS os trabalhadores -, que o não ocupante de cargo de confiança não pode, regra geral, trabalhar mais do que 8 horas diárias, mas os demais, sim, ainda que isto signifique trabalhar tanto que não sobre tempo para a vida particular ou até mesmo para as recomendadas mínimas oito horas de sono.
Se você já trabalhou numa grande empresa, já deve ter ouvido expressões bem típicas e safadas como "vestir a camisa" ou outras babaquices do gênero, que só servem pra te convencer a trabalhar além dos seus limites psicológicos e biológicos a um preço equivalente a bananas, ou seja, pelo melhor "custo-benefício" para a empresa que lhe paga, ainda que no final você beire à falência total de sei e usufrua, enfim, de uma ínfima parte das bananas.
Infelizmente essa análise, na casuística forense, tem recebido tratamento objetivo por demais. Essa objetividade, pela minha experiência, longe está do óbvio.
Quem já vivenciou um ambiente de qualquer empresa de todo porte, deve saber do que digo. O orgulho humano é tão soberbo que mal cabe em si. Bastam algumas prerrogativas excepcionais ou a incomum confiança, e o titular do cargo se sente acima do bem e do mal. A ponto de, por vezes, cometer "desmandos" (atitudes não outorgadas necessariamente pelos donos do empreendimento), e a empresa se vê, não raro, enredada em acusações de assédio moral (e/ou sexual...).
O protótipo legal (artigo 62, CLT) leva em conta alguém que, num patamar próximo do ápice da hierarquia da empresa, tenha enfim poderes para assumir diretamente pelo menos uma parte considerável de poderes dos donos da própria empresa. Como admitir, demitir, admoestar, definir, por seus próprios pulsos, os rumos mediatos e imediatos da própria empresa, como se, num divã, fosse sua.
Talvez isto fizesse sentido no mundo empresarial de 1943, mas hoje a complexidade não recomenda a simplificação daquele tempo. As empresas, como tudo, estão bem mais estratificadas. As hierarquias não são mais verticais, como também não só horizontais.
Não só por isto. O poder dentro das empresas não se encontra simplesmente como numa graduação do preto até o branco, passando paulatinamente pelos muitos tons de cinza. As grandes empresas são universos difíceis de apreender com simplificação. Quanto maiores e mais destrinchadas elas se tornam, mais difíceis de serem radiografadas e controladas pela diretoria. Seus tentáculos múltiplos ganham vida própria, direcionados por vezes "autonomamente" para todo canto. Controlar uma empresa gigante deve ser como tentar controlar um polvo enorme e rebelde, que não responde mais a um só núcleo de decisão, tantos são os inevitáveis nervos espalhados nesse emaranhado vivo.
Este imaginário era inconcebível aos 1943, quando se tentou apreender o fenômeno do "cargo de confiança" nas empresas, não se prospectando que cada ponta do polvo de amanhã poderia ter vida própria. O poder, quanto maiores são as empresas, é cada vez mais pulverizado. E nem por isto esses poderes podem ser considerados "pequenos" ou insuficientes, ou aquém do conceito histórico do artigo 62 da CLT.
O mundo mudou. Ficou maior. As empresas também. Algumas maiores que muitos pequenos países. De se esperar que os institutos também se renovem nesse prisma.
Este é um aspecto OBJETIVO. Mas há o aspecto SUBJETIVO. Talvez o mais ignorado na casuística trabalhista.
Olhando por dentro de qualquer estrutura empresarial e, principalmente, pensando em bom senso, o conceito de "cargo de confiança" ganharia facilmente contornos que escapariam por do que se lê nos parágrafos da lei.
Numa pequena empresa, assim como numa grande, não importam quantos graus ou estratificações de poder existam; individualmente falando, quando se atribui uma carga de responsabilidade ou de confiança maior para alguns em relação aos que foram contratados para direta e caladamente produzirem, o ego destes e daqueles naturalmente vem à tona desproporcionalmente. Os de maior confiança jamais se sentirão nivelados com os subalternos. Sentem isto, até que com alguma sinceridade, mas tenho fé de que essa sinceridade não é pra sempre firme (até perderem o emprego e encontrem um advogado que os convença de que o regime de horas extras dos subordinados seria, ou pode ser, mais "lucrativo" para eles).
O problema é que essa "metamorfose" não pode ser menos traumática para alguns do que para outros. Aqueles que já usufruíram por serem tratados pela empresa como "superiores" em relação aos demais trabalhadores, não podem querer convencer quando, demitidos como todos os demais, vem a Juízo propensos a negar que nunca tiveram confiança suplementar e liberdade de atuação profissional em comparação aos demais. É aqui que "mora o perigo"...
Muitas vezes, são pessoas que comem no mesmo prato, moram no mesmo bairro ou em comunidades com o mesmo poder econômico, tem as mesmas esperanças na vida, e se guiam bem firmemente acreditando que ainda assim, nesse universo de trabalhadores, seriam “diferentes” – positivamente – ou ao menos, por algumas quirelas salariais a mais, "superiores".
O Direito, entretanto, faria bem se não distinguisse, por tão pouco, ou pelo egoísmo individual, as pessoas, especialmente quando este fator, no passado recente, tivesse feito porventura com que se sentissem, e acreditassem, algumas arrogantes, superiores às outras.
Enfim, o Direito é dinâmico, não só em relação às gerações, às décadas e às comunidades, os valores mudam constantemente na média coletiva, como também individualmente, no interior e o silêncio de cada um, inclusive nos que postulam "justiça" nos foros incompetentes.
Mas quando um orgulhoso chefete de anteontem, após demitido, veste em Juízo pele de cordeiro, a fim de se beneficiar das garantias legais mínimas destinadas aos subordinados de outrora, como se todos estivessem no mesmo patamar de proteção, o Direito do Trabalho deveria reagir com mais rigor e respingar caprichosamente nos jotas, recolocando cada um no seu devido lugar.
Esse tipo de hipocrisia deveria ser bastante combatido, não só com a improcedência de pleitos judiciais insinceros, como também com multas exemplares de litigância de má fé. Como não é apesar da não raridade, o cinismo perpetua encontrando campo fértil na roleta em que se converteu a distribuição simplória do dever legal de se provar o que aconteceu e até o que não aconteceu na Justiça do Trabalho... Os altos empregados, e nem só os tão elevados ou os considerados executivos, que já se 'orgulharam' de seus postos e já impuseram de alguma forma essa pretensa “superioridade” perante os demais, reúnem-se os 'inferiores' de ontem - com olhos gordos nas horas extras que essa oportunista 'simplicidade funcional' lhes pode render.
Grãos torrenciais de farinha no mesmo saco.
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* Mário Gonçalves Júnior é advogado trabalhista, pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito do Trabalho