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Judiciário equatoriano: um poder submisso e subserviente

O Equador tem dado recentemente exemplos antidemocráticos e totalitários que conspiram contra o verdadeiro Estado de Direito.

8/3/2012

Júlio Bernardo do Carmo

Judiciário equatoriano: um poder submisso e subserviente

É da essência de um Estado Democrático de Direito que os poderes do país sejam guarnecidos de soberania, independência e extrema liberdade na atuação de suas funções institucionais.

A lição doutrinária que empresta suporte a um regime essencialmente democrático, transparente e respeitador das liberdades individuais e coletivas tem suas origens teóricas, dentre outras mais antigas, na obra prima de Montesquieu, o

Espírito das Leis, em que pregou a ideia de que uma nação só pode ser soberana e independente se seus órgãos de comando não forem concentrados em uma só pessoa ou instituição, e sim que as decisões políticas que regem o destino da nação sejam distribuídas de forma inteligente e equitativa entre poderes diversos, cada qual com uma área específica de atuação.

Da lição de Montesquieu derivou a célebre teoria política da tripartição dos poderes estatais, que hoje rege a unanimidade dos países essencialmente democráticos.

O que um país iluminado pela essência alcandorada do Estado de Direito precisa é sim a existência de poderes políticos distintos, geralmente consubstanciados em um Poder Executivo, que tem sob seu encargo o comando da nação, sendo auxiliado por um corpo seleto de ministros que ajudem o Chefe do Executivo a tornar reais as metas institucionais gizadas na Constituição da República, sendo que nesta seara prepondera a atividade administrativa de governo; um Poder Legislativo que tem a incumbência de editar as leis necessárias para que a nação alcance o ideal de prosperidade idealizado na Magna Carta, seja no campo econômico, político e social, sendo que o poder de editar tais leis não se concentra nas mãos de uma elite corporativa integrada por agentes econômicos que queiram valer-se da função para defender seus interesses pessoais, e sim nas mãos de verdadeiros representantes do povo, escolhidos através de um processo político eleitoral transparente, no qual todo e qualquer cidadão, que atenda aos requisitos traçados na Carta Maior ou na legislação eleitoral específica, possa candidatar-se a cargos eletivos, independentemente de sua crença, cor, sexo ou poder aquisitivo.

Este processo genuíno leva para o âmbito do Poder Legislativo representantes de todas as camadas sociais, singularidade que contribui para que o processo legislativo consulte ao máximo o verdadeiro espírito da nação; e,finalmente, um Poder Judiciário, dotado de plena autonomia funcional, política e administrativa, integrado por cidadãos com curso superior em Direito e que são escolhidos através de um processo político extremamente democrático e transparente, qual seja, um concurso público de provas e títulos, em que prevalece, afinal, os conhecimentos jurídicos do candidato e não sua ascendência ou apadrinhamento político.

Consequência lógica de tudo isso é que os poderes políticos da nação não podem ser considerados esferas estanques de atuação, obrando a seu bel prazer para alcançar suas metas institucionais, porque isto comprometeria o equilíbrio e a recíproca fiscalização que um poder político deve exercer sobre o outro, de forma equilibrada e harmônica, sem que a vontade de um prevaleça sobre a vontade de outro.

Assim, e.g., o Poder Executivo tem a seu encargo a administração do país, mas também atua na esfera do Poder Judiciário quando nomeia ministros para os tribunais superiores, assim como também o Poder Legislativo, em determinadas situações, pode ser investido em funções jurisdicionais, quando e.g. tem competência constitucional para processar e julgar autoridades vinculadas ao Poder Executivo.

Da mesma forma o Poder Judiciário, além de sua sublime missão de aplicar o direito aos casos concretos, nos chamados conflitos intersubjetivos de interesses de entidades privadas, pode também se imiscuir no mérito dos atos administrativos praticados pelo Poder Executivo, em esfera tipicamente pública, principalmente quando aquele órgão extravasa os lindes jurídicos de sua atuação institucional, comprometendo, v.g., os princípios constitucionais que preordenam os atos governativos, mediante a edição de comandos administrativos eivados de ilegalidade ou de abuso de poder (détornement du pouvoir).

Em síntese, este é o quadro político que deve alimentar toda e qualquer nação civilizada, pois há a certeza constitucional de que um poder político não abocanhará as funções do outro e nem sobre ele exercerá pressões para amesquinhar-lhe as atuações, convivendo, todos eles, de forma pacífica e harmônica com um único objetivo: fortalecer as instituições nacionais mediante o irrestrito respeito aos comandos emergentes da Carta Magna ou de leis infraconstitucionais.

O Estado Democrático de Direito está sempre sob o pálio e o jugo da lei porque as atuações de seus órgãos dirigentes têm metas preordenadas em um corpo nacional de leis, de maneira que nada se faz de forma caprichosa ou geniosa, e sim de forma estritamente adequada ao arcabouço legislativo da nação, mesmo quando a Administração Pública, em determinados casos singulares, pode obrar sob o manto da conveniência e oportunidade, isto porque discricionariedade não significa arbitrariedade, e, mesmo no campo supostamente aberto da discricionariedade, é o comando legislativo que preordena a atuação do Poder Executivo.

Ou seja, para ser claro e incisivo: o Estado Democrático de Direito está sob o império inafastável das leis, nada se faz de forma caprichosa ou geniosa, senão que tudo deve ser feito de forma legal e escorreita, para que a voz dos poderes instituídos represente a própria voz da nação, captada na ressonância harmônica e decente dos preceitos constitucionais.

O Equador tem dado recentemente exemplos antidemocráticos e totalitários que conspiram contra o verdadeiro Estado de Direito.

Noticia a imprensa nacional que o Chefe da Nação se engalfinha em uma luta carnificina contra a liberdade de imprensa e de opinião e, o que é mais sério, exerce vergonhosa pressão sobre os membros do Poder Judiciário, exigindo que as causas de seu interesse sejam julgadas de forma rápida e eficaz (a seu favor), em detrimento de toda uma gama de milhares e milhares de processos que estão aguardando decisões em primeira e segunda instância, conspurcando-se assim a convivência harmônica, respeitosa e independente que os poderes da nação esperam um dos outros, já que têm assento constitucional.

Para melhor entender o caso é necessário reportar-se às notícias que têm sido veementemente divulgadas pela imprensa nacional equatoriana.

Juan Carlos Calderón e Christian Zurita, donos do Jornal de circulação nacional, EL UNIVERSO, escreveram um livro denominado El Gran Hermano, no qual denunciam que o irmão do presidente da República do Equador, Fabricio Correa, teria sido extremamente beneficiado em contratos que teria feito com o Estado, embolsando assim, de forma ilícita, dinheiro público, apoiando-se em evidências supostamente incontestáveis.

O Presidente da República, longe de rebater as críticas de forma democrática e contundente, valeu-se de imediato do Poder Judiciário, no qual ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais.

A partir daí, passou a exercer pressões diretas sobre o Judiciário, exigindo que sua causa fosse decidida de forma rápida e eficaz (favorável a ele), comprometendo assim a independência harmônica que deve existir entre os poderes da República.

A um outro opositor, também dono de jornal, que lhe fez acusações na imprensa nacional, igualmente preterindo a forma democrática de demonstrar mediante provas contundentes a sua inocência, o Presidente da República, trilhando igual caminho, ajuizou de imediato ação penal no Judiciário, exigindo pronta reparação.

O processo penal tramitou, sob pressão, a toque de caixa, e o autor das denúncias foi sumariamente condenado a vários anos de prisão, razão pela qual, para escapar do cárcere, requereu asilo político nos Estados Unidos da América.

A liberdade de imprensa tornou-se desespero para o infeliz dono do jornal, que deverá amargar exílio político até que a normalidade democrática retorne a esta linha do Equador, principalmente porque, ao que parece, sua condenação foi tão veemente que nem sequer poderá dela recorrer em liberdade.

O guante do chefe da nação sobre o Judiciário continua de forma opressora e veemente no chamado caso EL UNIVERSO porque, já tendo sido a causa julgada em primeira instância, de forma logicamente favorável ao Presidente da República, a quem se granjeou o direito de receber indenização por danos morais da ordem de dois milhões de dólares, a segunda instância agora se vê cobrada de forma intensa e intimidadora, de molde a que a sentença de primeira instância seja imediatamente confirmada.

O processo judicial que constitui o famigerado caso EL UNIVERSO já conta com cerca de 5.000 páginas, mas a pressão vinda de cima é no sentido de que o órgão judicial revisor se atenha à sentença de primeira instância, sem se preocupar com o estudo aprimorado de todos os volumes do processo (cerca de 25 volumes).

Hoje, dia 12 de fevereiro de 2.012, domingo, o jornal EL UNIVERSO anuncia que o presidente Rafael pede aos juízes de segunda instância que não leiam todo o processo.

Em um pronunciamento feito ontem, sábado, o presidente da República insistiu que os juízes do caso EL UNIVERSO devem ater-se somente à sentença de primeira instância, e não examinar o resto do processo, isto para que possam emitir um pronunciamento judicial favorável, com resolução final do caso, na próxima quarta-feira, dia marcado para a chamada audiência de cassação.

Além da pressão feita sobre o Judiciário, o Presidente da República condenou a atuação de Catalina Botero, relatora de um caso pendente sobre liberdade de expressão da CIDH, uma vez que a mesma, para instruir o pedido, solicitou informações ao Poder Judiciário sobre o processo judicial convertido no caso EL UNIVERSO movido contra os autores do livro EL GRAN HERMANO, dando a entender assim que o judiciário só teria um caminho a tomar: manter intocável a sentença de primeira instância que lhe foi favorável.

Os juízes equatorianos encarregados do caso judicial EL UNIVERSO e de seu congênere penal, tanto em primeira como em segunda instância, sempre estiveram entre a cruz e a espada, ou dito de forma mais eufemística, entre a cruz e a tômbola, já que este é o procedimento de que se vale o Judiciário para sortear os processos entre os juízes, ou seja, utiliza-se de um globo de metal onde se inserem umas bolas e, dali, se extrai os nomes dos juízes que devem atuar em cada processo, seja na primeira ou na segunda instância.

Quando a bola deixa a tômbola o desespero é total, porque nenhum juiz deseja, de sã consciência, ser sorteado para julgar os casos do Presidente da República, tendo em vista as odiosas pressões que este exerce sobre o Judiciário.

Há ocorrências noticiadas na imprensa nacional de que pessoas que nas ruas falam mal do Presidente da República, são recolhidas ao cárcere, onde permanecem durante vários dias, sendo de imaginar-se o que aconteceria com um juiz que tivesse a independência de julgar um caso judicial contra o chefe máximo da nação, em especial, o famoso caso EL HERMANO que já tem repercussão internacional.

Em suma, pelo relato feito, fácil entrever-se que o Judiciário Equatoriano transforma-se em um poder submisso e subserviente porque não tem mecanismos legítimos e democráticos de fazer prevalecer sua soberania e independência, eis que estão sendo transformados em títeres do chefe da nação, ao qual, ao que parece, ninguém ousa contrariar, sob pena de ser metido a ferros.

Em casos como o do Equador, penso que deveria existir um órgão supranacional que pudesse garantir a soberania e a independência do Poder Judiciário das nações civilizadas, mesmo nos casos de ordem privada e pessoal, como na espécie, e não apenas nos casos de conflitos entre Estados Soberanos, porque a agressão à soberania e à independência do Poder Judiciário de qualquer país, coloca em xeque a estabilidade de todos os direitos humanos que possam ser garantidos e contemplados na Carta Maior, já que haveria a potestade imperial do chefe do executivo de contestá-los a seu bel prazer com o fito ignominável de fazer prevalecer a sua vontade pessoal.

O mundo atual não pode mais conviver com poderes ditatoriais, já que sumamente globalizado, deve existir entre os países componentes do consórcio mundial, regras imperativas, democráticas, equitativas e de respeito à Constituição Nacional, porque só assim se poderia lograr parcerias saudáveis, estáveis e incentivadoras do progresso econômico das nações.

Baños, Ambato, Equador, 12 de fevereiro de 2012

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* Júlio Bernardo do Carmo é desembargador do TRT da 3ª. Região, presidente da 4ª. Turma e da 2ª. SDI

 

 

 

 

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