Gilberto de Mello Kujawski
Aborto, "questão de saúde pública"?
Problema de saúde pública é também a aids, por exemplo. Basta isso para exterminar em massa todos os aidéticos? Ou fazer o mesmo com tantos bebês vítimas de má formação congênita? Ou suprimir a vida de todos os doentes terminais? Mascara-se a realidade hedionda do aborto com seus fins sociais, ou demográficos, como na China, ou de melhoria da raça, como na Alemanha hitlerista etc. Não há sofisma que justifique o sacrifício da vida humana em nenhum estágio, nem quando da formação do nascituro, daquele que vai nascer, normalmente aguardado com muita alegria e recebido com festa, não com punição por querer nascer. Que o aborto é também questão de saúde pública, não se discute. Mas não basta para eliminar brutalmente uma realidade eveniente, desabrochando como uma flor no ventre da mãe.
A beleza da natalidade, para a qual os abortistas são cegos, é que o nascimento de uma criança representa uma radical inovação da realidade, a aparição de uma realidade nova, na expressão de Julián Marías, no qual se inspira o autor do presente artigo.
A tormentosa questão do aborto costuma ser colocada em duas versões, ambas insuficientes e inconsistentes. A versão religiosa se embaraça em dúvidas insolúveis (quando começa a vida? quando a alma se insere no corpo do feto?), de sorte que o raciocínio não avança. A versão científica, tão dogmática e fechada quanto a primeira, no fundo adquire os contornos de um ponto de vista também religioso, a moderna religião da ciência, julgada infalível. Ambas abordagens guardam em comum o mesmo pressuposto equivocado: a concepção do homem como "coisa", realidade pétrea, fechada em si mesma, feita e acabada para sempre, sem abertura para o futuro, o via-a-ser. Tanto faz conceber o homem como um composto de corpo e alma, à maneira teológica, como concebê-lo em termos biológicos, uma variedade do reino animal perfeitamente explicada pelas leis da natureza.
Ocorre, no entanto, que o homem não é "coisa". Nem coisa biológica, nem coisa teológica (composto de corpo e alma). Antes de tudo e em primeiro lugar, o homem é uma pessoa, categoria situada nos antípodas da "coisa", como exposto abaixo.
À diferença dos seres da natureza, o mineral, a planta, o animal, realidades feitas e acabadas, a pessoa é realidade sempre em transição. A pessoa não é um que, e sim um quem. Quando alguém bate à nossa porta não indagamos "que está aí", mas "quem está aí?". A pessoa é alguém, uma realidade emergente, que consiste em acontecer. Além disso, a pessoa é irredutível a tudo e a todos, "desde os elementos químicos, a seus pais e a Deus mesmo" (J.Marías). Quem diz "eu" se contrapõe a todo o universo, a tudo o que não é ele, a tudo o demais. E por isso a pessoa é livre, constitutivamente livre.
Eis aí os traços próprios da pessoa: transcendência (consiste em acontecer), irredutibilidade e liberdade. Um ente in fieri, isto é, em ato, não feito e acabado, mas em se fazendo continuadamente.
A partir de que momento o feto começa a ser pessoa? Se a pessoa é uma realidade emergente, em se fazendo continuadamente, há razão suficiente para admitir que a pessoa começa a partir da concepção. Perde sentido, ou se torna pueril, a indagação do momento certo em que a alma se implanta no feto. A dignidade da pessoa acompanha o feto em toda sua evolução, desde a ocorrência da fecundação. Sacrificar o feto significa praticar homicídio, "matar alguém" nos termos do art.12l do Código Penal.
Se a pessoa é irredutível, significa que ela tem inteira autonomia em relação aos elementos físico-químicos, à sua condição biológica, ao pai e à mãe. "Quando se diz que o feto é 'parte' do corpo da mãe, diz-se uma insigne falsidade, porque não é parte: está alojado nela, ou melhor, implantado nela (nela, não meramente em seu corpo). Uma mulher dirá 'estou grávida', nunca 'meu corpo está grávido'" (J. Marías). Pior ainda é tratar o feto como se fosse um tumor incômodo a ser eliminado.
Em suma, a concepção do homem como "pessoa" ( e não como "coisa") inaugura nova perspectiva para a questão do aborto, a perspectiva antropológica, livre de preconceitos religiosos ou científicos porque visualiza o homem na sua realidade mais elemental, a mais evidente e imediata, livre da autoridade opressiva da crença religiosa ou biológica.
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* Gilberto de Mello Kujawski é procurador de Justiça aposentado, escritor e jornalista
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