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Ações sobre a greve em atividades essencias

Questão de grande relevância nos dias atuais refere-se às ações sobre greve em atividades essenciais, embora não seja corriqueiro o seu debate tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Estas paralisações possuem uma particularidade, na medida em que, em caso de ocorrência, deve ser ponderado, conciliado e equilibrado, no caso concreto, o direito fundamental de greve, inerente a todo cidadão (art. 9º, CF/88), e o princípio da continuidade do serviço público (art. 37, CF/88), principio norteador da Administração Pública.

15/8/2005


Ações sobre greve em atividades essenciais – Possibilidade de contratação de empregados para evitar a descontinuidade do serviço público


Inovações trazidas pela Emenda Constitucional nº 45


Ingo Sá Hage Calabrich*


Questão de grande relevância nos dias atuais refere-se às ações sobre greve em atividades essenciais, embora não seja corriqueiro o seu debate tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Estas paralisações possuem uma particularidade, na medida em que, em caso de ocorrência, deve ser ponderado, conciliado e equilibrado, no caso concreto, o direito fundamental de greve, inerente a todo cidadão (art. 9º, CF/88), e o princípio da continuidade do serviço público (art. 37, CF/88), principio norteador da Administração Pública.


Antes de se fazer uma reflexão sobre o tema, mister se fazer alguns esclarecimentos para uma melhor compreensão. A primeira, e não menos importante, refere-se à diferenciação entre atividades essenciais e serviços públicos essenciais.


Quanto aos serviços essenciais, pode-se dizer que estes são aqueles de vital importância para a sociedade, pois afetam diretamente a saúde, a liberdade ou a vida da população, tendo em vista a natureza dos interesses a cuja satisfação a prestação se endereça. Há aqueles serviços que pela sua própria natureza são ditos essenciais, que são os serviços de segurança nacional, segurança pública e os judiciários. Somente o Estado poderá prestá-los diretamente. São portanto, indelegáveis.


Mas há outros serviços que o legislador previamente considera essenciais, embora não precisem ser prestados diretamente pelo Estado. Estes se encontram na Lei n° 7.783/1989 - Lei de Greve, que define no seu art. 10 os serviços ou atividades essenciais e regulamenta o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Assim, identifica-se no citado diploma legal como serviços públicos essenciais que podem ser prestados diretamente ou indiretamente pela Administração Pública, ou através de concessão ou permissão, entre outros, os serviços de tratamento e abastecimento de água, produção e distribuição de energia elétrica, gás, combustíveis, transporte coletivo e telecomunicações.


Nos dias atuais, grande parte, senão todos estes, estão sendo prestados de forma indireta pelo Estado, ou seja, pelas permissionárias e concessionárias, fiscalizadas, por sua vez, pelas chamadas Agências Reguladoras. É o que ocorre, por exemplo, com os serviços de telecomunicações e energia elétrica, que, embora prestados por particulares, se submetem às normas expedidas pela ANATEL e ANEEL, respectivamente.

Portanto, ao prestarem serviços que, por sua natureza, deveriam ser prestados diretamente pelo Estado, se revestem da qualidade de Agentes Públicos.


A expressão Agente Público, por sua vez, segundo lições do Ilustre Professor Bandeira de Mello,

“é a mais ampla que se pode conceber para designar genérica e indistintamente os sujeitos que servem ao Poder Público como instrumentos expressivos de sua vontade ou ação, ainda quando façam ocasional ou episodicamente1 ”.

Sendo assim, a noção de Agente Público abarca tanto o Chefe do Poder Executivo como os concessionários e permissionários de serviço público, os delegados de função ou ofício público, os gestores de negócio público, etc2 . Dentre os mencionados, alguns integram o aparelho estatal, outros não, embora prestem, ainda que transitoriamente, serviços considerados públicos.


Partindo dessas considerações, as concessionárias e permissionárias, embora sejam considerados agentes públicos, não são empresas públicas ou mesmo sociedades de economia mista, que são pessoas jurídicas de direito privado que integram a Administração Pública Indireta.


Por não integrar os quadros da Administração Pública é que os seus empregados das concessionárias e permissionárias não são considerados servidores públicos civis, e sim empregados regidos por relação de emprego nos moldes da Consolidação das Leis do Trabalho, embora os trabalhadores das empresas públicas e das sociedades de economia mista sejam considerados empregados públicos e deverem prestar concurso público, são, porém, celetistas.


Sendo assim, não estariam os empregados das concessionárias e das permissionárias sob a égide da limitação constitucional inserida no inciso VII do art. 37 da CF/88, que reza que o direito de greve dos servidores civis somente será exercido nos termos e nos limites definidos em “lei específica”, espécie legislativa (desconhecida, inclusive, daquelas elencadas art. 59 da CF/88) que, infelizmente, ainda não foi editada pelo Congresso Nacional, se encontrando o mesmo, em mora.


Portanto, por serem considerados empregados celetistas, as pessoas que trabalhem para essas concessionárias ou permissionárias, embora desenvolvam atividades consideradas pelo legislador como essencial, não estariam sujeitos a esta limitação constitucional e, portanto, podem fazer greve, por estarem sob a regência da Lei 7.783/89.


A greve, segundo a Lei 7.783/1989, é legítima quando representar a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços ao empregador (art. 2º). Seu efeito principal é justamente a ocorrência da suspensão do contrato de trabalho existente entre ambos, que se materializa na não obrigatoriedade da prestação de serviços nem da contraprestação pecuniária.


A grande problemática que se instala é justamente quando da ocorrência de greve nestes serviços que, embora sejam prestados por concessionárias e permissionárias, são considerados pela legislação como atividades essenciais.


Isto ocorre porque, por serem atividades essenciais, estão sujeitos ao princípio da continuidade do serviço público, de modo que não se permite a sua paralisação total, haja vista que podem ocorrer danos irreversíveis a toda a coletividade, fato este que não é tolerado pelo ordenamento jurídico pátrio, que prevê, inclusive, sanções em caso de não atendimento a este mandamento.


Isto se verifica, por exemplo, no Código de Defesa do Consumidor. Vejamos:

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.


Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código. (g.n.)

Como se pode observar, a legislação impõe a continuidade dos serviços considerados essenciais, de modo que o seu descumprimento acarreta as sanções civis correspondente, sem prejuízo de outras que lhe possam ser aplicadas.


Portanto, a questão que se instala é como se conciliar o Direito fundamental de todo o cidadão de poder fazer greve e, neste ínterim, manter intacto o princípio da continuidade do serviço público essencial (embora não seja prestado diretamente pelo Estado)?


Esta indagação encontra respostas e limites na referida Lei de Greve. Primeiro porque ela prevê situações em que o empregador não pode incorrer, sob pena de, ilicitamente, “furar” a greve. Isto é verificado, por exemplo, no § único do seu art. 7º, que vaticina que é vedada a rescisão de contrato de trabalho dos empregados durante a greve, bem como a contratação de trabalhadores substitutos para comporem os cargos vagos em face do movimento paredista. Esta regra, porém, comporta duas exceções, que analisaremos a seguir.


As exceções a esta regra se originam de um comando contido na Lei de Greve, no qual transcrevemos, in verbis:

Art. 11. Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação de serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.


Parágrafo único. São necessidades inadiáveis da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população. (g.n.)

Portanto, embora seja vedado a demissão de empregados durante a greve, ou mesmo a contratação de empregados substitutos, os serviços considerados essenciais devem continuar em funcionamento, em comum acordo entre os sindicatos representativos de ambas as categorias, razão esta que, em caso de descumprimento deste imperativo legal, existem hipóteses na Lei de Greve que prevê exceção à proibição de rescisão contratual ou mesmo substituição dos empregados envolvidos no movimento.


A primeira é a prevista no art. 9º, que assim reza:

Art. 9º. Durante a greve, o sindicato ou a comissão de negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente com o empregador, manterá em atividade equipes de empregados com o propósito de assegurar os serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável, pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos1, bem como a manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da empresa quando da cessação do movimento.


Parágrafo único. Não havendo acordo, é assegurado ao empregador, enquanto perdurar a greve, o direito de contratar diretamente os serviços necessários a que se refere este artigo. (g.n.)

O que se depreende dos comandos legislativos supracitados é que, acaso o movimento paredista em atividades essenciais não obedeça aos requisitos do art. 3º3 e 11º da Lei de Greve, bem como não seja exaurido os movimentos negociais (negociação coletiva) será o mesmo considerado ilegal e abusivo, facultando, assim, ao empregador a contratação direta de empregados ou mesmo os serviços necessários para a garantia da continuidade do serviço público, sob pena, inclusive, de o Poder Público intervir, por força do seu art. 12º.


Esta é a posição unânime do Tribunal Superior do Trabalho:

RECURSO ORDINÁRIO EM DISSÍDIO COLETIVO – GREVE – ATIVIDADES ESSENCIAIS – ABUSIVIDADE – Desatendidos os requisitos da Lei nº 7.783/89, notadamente os arts. 3º e 11, tem-se como abusivo o movimento grevista. Indispensável, ainda, que tenha havido o exaurimento das tratativas negociais precedentes à deflagração do movimento paredista, sob pena de restar desvirtuado o seu escopo, com o deslocamento da referida greve para a esfera da intolerância, manifestada unicamente como forma de pressionar o patronato a atender incondicionalmente as reivindicações propostas, em clara substituição da ação legal própria e cabível. Agrava-se a situação quandoa greve eclode na pendência de dissídio coletivo de natureza econômica envolvendo as mesmas partes, devidamente instaurado, em cujo bojo se discutem idênticas reivindicações objetivadas pela paralisação coletiva. Recurso Ordinário provido. (TST – RODC 492272/1998 – SDC – Rel. Min. Valdir Righetto – DJU 25.06.1999 – p. 19)

Portanto, o movimento paredista em atividades essenciais prestadas por concessionárias ou permissionárias é lícito, embora sofra limitações de ordem objetiva e subjetiva, haja vista que, nestes casos, a greve não pode interferir na continuidade desses serviços, sob pena de além de ser considerado ilegal e abusivo, facultar a essas empresas a possibilidade de contratação de pessoal para dar efetividade à manutenção de sua prestação, sob pena de intervenção do Poder Público, sem prejuízo das sanções legais cabíveis.


Em relação à segunda exceção mencionada, esta é prevista no art. 14 da Lei de Greve, que é o caso da inobservância de todos os mandamentos nela contidos, o que tornaria o movimento ilegal, ou no caso de manutenção da paralisação após a celebração de acordo, convenção ou decisão da Justiça do Trabalho, fato este que autoriza o empregador a adotar as medidas acima sugeridas, sob pena das mesmas conseqüências incidirem no caso concreto.


Por outro lado, segundo este mesmo art. 14, a paralisação na vigência de acordo, convenção ou sentença normativa não constitui abuso do exercício do direito de greve quando tenha por objetivo exigir o cumprimento de cláusula ou condição, ou, seja motivado pela superveniência de fato novo ou acontecimento imprevisto que modifique substancialmente a relação de trabalho.


Essa posição que entende ser possível a contratação de serviços durante a vigência da greve, contudo, ainda sofre resistência da doutrina. Segundo o Ilustre Juiz do Trabalho do TRT paulista,

“(...) a regra legal confere certa ampliação à noção de abuso acobertada pela Constituição, devendo, em conseqüência, receber interpretação restritiva, sob pena de inviabilizar a efetiva realização do movimento paredista4 ”.

Salienta-se que a legislação não fixa o número mínimo de empregados que devem permanecer em atividade, pelo que entendemos que se deve ponderar no caso concreto, com base em constantes negociações entre os sindicatos de interesses oposicionistas, qual seria a quantidade suficiente de trabalhadores que devam permanecer trabalhando para dar efetividade à continuidade do serviço público, com um padrão de qualidade.


A grande novidade trazida pela Emenda Constitucional nº 45 foi a possibilidade de intervenção do Ministério Público do Trabalho, em caso de greve em atividade essencial com possibilidade de lesão do interesse público, via ajuizamento de Dissídio Coletivo, no qual a Justiça do Trabalho será o juízo competente para decidir o conflito.


É que, antes da reforma do Judiciário, qualquer sindicato poderia propor Dissídio Coletivo, após resultassem frustradas as negociações coletivas, de modo que a instauração da instância independia da concordância da parte adversa que figuraria na lide.


Entretanto, com a nova redação do artigo 114 da CF/1988, os Dissídios Coletivos de natureza econômica entre os sindicatos só podem ser instaurados em comum acordo entre ambos, conferindo-lhe uma natureza híbrida entre arbitragem e ação judicial, não mais existindo a legitimidade ativa para que uma das categorias possam, unilateralmente, instaurar a instância.


Ao nosso entendimento, parece que o Legislador Constituinte Derivado Reformador conferiu legitimidade extraordinária ativa exclusiva ao parquet laboral para propor Dissídio Coletivo de forma unilateral, que poderá ser exercida somente quando for o caso de greve em atividade essencial, fato que justifica o interesse público suficiente para a atuação do Ministério Público do Trabalho. Nos demais casos, permanece a legitimidade consensual das partes divergentes instaurarem a instância.


Essas alterações foram feitas talvez para regulamentar e prever legalmente a atuação do Poder Público em casos de greves em atividades essenciais, quando não houver o acordo entre os sindicatos representativos dos empregados e empregadores para a manutenção de contingente mínimo em atividade para evitar a paralisação total destes serviços, levando ao operador do direito à inevitável conjugação do § 3º do art. 114 da Constituição Federal com os termos da Lei de Greve, no tocante à previsão de intervenção do Poder Público nos movimentos paredistas ora em debate.


Portanto, concluímos que o exercício de greve em atividades essenciais, prestados pelas concessionárias e permissionárias, é perfeitamente cabível e lícito, desde que seja assegurado um contingente mínimo de trabalhadores para dar a continuidade do serviço, sob pena de se permitir a contratação de pessoal substituto pelo empregador para evitar a paralisação total, sob pena de intervenção do Poder Público via Dissídio Coletivo proposto pelo parquet laboral, além de ser considerado como ilícito movimento paredista.


Por fim, esclarecemos que esta é uma posição nossa, de modo que a questão, por não ser corriqueira, ainda não encontra ampla manifestação, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, razão esta que deveremos esperar um posicionamento dos Tribunais acerca do assunto, quando enfrentarem as questões objeto da presente reflexão.

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BIBLIOGRAFIA


- Bandeira de Melo, Celso A., Curso de Direito Administrativo, Ed. Malheros, 2003

- Moraes, Alexandre, Direito Constitucional, Ed. Atlas, 2005

- Delgado, Maurício Godinho, Curso de Direito do Trabalho, Ed. LTr, 2004

- De Barros, Alice Monteiro, Curso de Direito do Trabalho, Ed. LTr, 2004

- Leite, Carlos Henrique Bezerra, Curso de Processo do Trabalho, 2005-07-15

- Da Silva, Rodrigo Alves, O Código de Defesa do Consumidor e os Serviços Públicos: A defesa de usuários do serviço público – artigo jurídico publicado no site www.jusnavigandi.com.br

- Leite, Carlos Henrique Bezerra, A Greve do Servidor Público e os Direitos Humanos - artigo jurídico publicado no site www.jusnavigandi.com.br

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-1 in Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 2003, pág. 226

-2 op.cit.

-3 Art. 3º. Frustrada a negociação ou verificada a impossibilidade de recurso via arbitral é facultada cessação coletiva do trabalho.

Parágrafo único. A entidade patronal correspondente ou os empregadores diretamente interessados serão notificados, com antecedência mínima de 48 (quarenta e oito) horas, da paralisação.

-4 in Curso de Direito do Trabalho, 2ª Ed., Ltr, 2004, pág. 1418

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* Advogado do escritório Machado Neto, Bolognesi, Azevedo e Falcão - Consultores e Advogados

 

 

 

 

 

 

 

 

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