Migalhas de Peso

Explicando o Projeto de Código Comercial

Quem propõe um debate público tem a natural obrigação de participar dele. Tornou-se minha obrigação explicar em pormenores o sentido e objetivos da proposta.

8/2/2012

Fábio Ulhoa Coelho

Explicando o Projeto de Código Comercial

Quem propõe um debate público tem a natural obrigação de participar dele.

Tendo lançado a ideia de um novo Código Comercial para o Brasil, num livro publicado no segundo semestre de 2010, tornou-se minha obrigação explicar em pormenores o sentido e objetivos da proposta. Uma grata obrigação.

Por isto, de tempos em tempos, convém eu me pronunciar sobre dúvidas, sugestões, objeções e críticas que surgem no transcorrer do debate, para fornecer as explicações necessárias à completa compreensão do Projeto. Com este objetivo, aliás, publiquei no final do ano passado, o livro "Princípios do Direito Comercial – com anotações ao Projeto de Código Comercial" (Editora Saraiva).

Convém, ademais, insistir que a minha minuta de Código Comercial pretende servir apenas de ponto de partida. Postulo publicamente (ver meu artigo Técnica, política e democracia, em "O Estado de São Paulo", de 12/9/11, pág. A-2) a constituição, no âmbito da Câmara dos Deputados, de uma Comissão de Juristas, que proceda à devida crítica e ao necessário aperfeiçoamento do Projeto. A tentativa de macular o processo de discussão em curso como antidemocrático não encontra, portanto, nenhum suporte na realidade.

Por outro lado, não custa registrar que menos indignação e mais reflexão objetiva só fazem bem – a nós mesmos e ao país.

Seguem, então, alguns esclarecimentos pontuais, destinados aos leitores de Migalhas realmente interessados no debate democrático e no aperfeiçoamento técnico do Projeto de Código Comercial.

Definição de empresário. O Projeto inova a definição de empresário, passando a adotar o critério formal. Quebra, assim, a tradição do direito comercial brasileiro, que sempre se pautou pela adoção do critério material (salvo em casos específicos, como o do exercente de atividade rural). A inovação visa tornar menos problemática a discussão sobre o âmbito de incidência do novo Código.

Disposições desnecessárias. Todo Código e muitas leis possuem certas disposições que poderiam ser classificadas como "óbvias". O art. 276 e seu parágrafo único do Projeto contemplam comando normativo igual ao do art. 475 do CC. Não creio que este último tenha se tornado desnecessário apenas em razão de sua pretensa obviedade.

Disposições repetitivas. O Código Comercial é uma lei especial e, como tal, necessariamente acaba repetindo normas do regime geral. O art. 1º do Código Penal, por exemplo, repete o inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal. Esta repetição contribui para tornar menos problemática a discussão sobre a incidência das normas especiais ou gerais.

Cláusula de impenhorabilidade de quotas sociais. Desde sempre, quem doa ou testa quotas de sociedade limitada pode gravá-las com a cláusula de impenhorabilidade. Desconheço autor que considere isto um estímulo às fraudes. O Projeto estende a possibilidade de instituição desta cláusula por meio do contrato social. Assim como o secular "bem de família", o próprio devedor, por declaração unilateral, torna impenhorável um ativo de seu patrimônio. A publicidade do contrato social é suficiente para advertir os agentes econômicos, quando ponderarem se concedem ou não crédito a sócios de sociedades limitadas. Podemos aperfeiçoar o Projeto prevendo, por exemplo, que a instituição da cláusula dependerá de contrato social ou alteração contratual por escritura pública, cuja eficácia ficaria condicionada ao registro no Registro de Imóveis.

Cláusula leonina. Quando a cláusula leonina é estabelecida, na lei, para todas as sociedades contratuais, tem sentido falar-se em invalidade da exclusão dos sócios também das perdas e não apenas dos lucros. No Projeto de Código Comercial, no entanto, esta cláusula foi prevista exclusivamente em relação à sociedade limitada. Neste tipo societário, as perdas são, como todos sabemos, por definição, limitadas. Assim, pela própria natureza da sociedade, não se pode considerar nula a cláusula que exclui os sócios das perdas sociais. Seria uma incongruência com os próprios fundamentos do tipo societário.

Sociedade irregular (1). Se a sociedade que funciona antes do registro é regular ou irregular, isto é a lei que diz. No Projeto, optou-se por se re-estabelecer o mesmo critério adotado pela doutrina, sob a égide do Código Comercial de 1850. Afasta-se, assim, o critério do Código Civil. Afasta-se, igualmente, o pressuposto adotado pelos elaboradores deste diploma ("personalidade segue a existência da sociedade"). No Projeto, a existência e a personalização da sociedade decorrem do registro na Junta Comercial. Parece-me a solução mais adequada.

Sociedade irregular (2). Coerentemente com o afastamento das premissas adotadas pelo Código Civil, o Projeto prevê a responsabilização direta dos sócios, quando irregular a sociedade. Ora, se esta não terá personalidade jurídica, prescrever a responsabilidade subsidiária seria incongruente.

Literato e artista. Não há razão para que o literato e o artista, quando exercerem sua atividade de forma empresarial, ficarem à margem do Código Comercial. Evidentemente, se não a exploram empresarialmente, continuarão sujeitos ao Código Civil. Isto não traz apenas prejuízos aos envolvidos. Ao contrário, eles passarão a se beneficiar da recuperação judicial ou extrajudicial, se precisarem. É mais uma inovação proposta pelo Projeto. Lembro que também o exercente de atividade rural, o Projeto, coerentemente, tratou da mesma forma. O critério geral proposto é claro: se a atividade for exercida empresarialmente, o seu titular será tratado como empresário (salvo, claro, no caso dos profissionais liberais, que continuam sujeitos ao regime civil); será um empresário regular, se registrado na Junta Comercial; e irregular, se não registrado.

Juros. A liberdade na fixação dos juros moratórios é reivindicação dos próprios empresários. Trata-se, ademais, da norma mais compatível com a liberdade de iniciativa consagrada na Constituição Federal.

Referências genéricas a dois contratos. Os Códigos contemporâneos não são sistematizadores como eram os oitocentistas. Sua função, hoje, é de coordenação, e não de sistematização. A forma mais adequada de coordenar institutos, muitas vezes, consiste em simplesmente apresentar uma conceituação genérica e prever a remissão ao diploma legal específico. É assim, por exemplo, que o Código Civil trata a sociedade anônima, coordenando a matéria, sem a sistematizar. Não teria sentido considerar que os membros da Comissão Reale teriam "enchido linguiça" quando optaram por esta maneira de coordenarem a matéria acionária.

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* Fábio Ulhoa Coelho é jurista e professor da PUC/SP





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