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A competência disciplinar do CNJ

Sobre a competência disciplinar do CNJ, o advogado afirma que o argumento da "autonomia" dos Tribunais estaduais em relação às atividades correcionais não tem apoio na realidade porque o Brasil não é uma república federativa propriamente dita.

3/2/2012

Lionel Zaclis

A competência disciplinar do CNJ

Com todo o respeito devido ao Ministro Marco Aurélio, cuja cultura jurídica e capacidade de bem julgar muito admiro, tenho para mim que a respeitável decisão cautelar pela qual suspendeu disposições da resolução 135/2011, do Conselho Nacional de Justiça, supõe um Brasil dos sonhos. De fato, um estrangeiro que a lesse, sem conhecer nossa realidade jurídico-política, acreditaria que somos uma república federativa propriamente dita, quando sabemos que isso não tem fundamento na realidade.

Na verdade, desde seu nascimento como país independente, o Brasil é um Estado unitário, pouco importando como sucessivas Constituições o tenham denominado ao longo do tempo. Chegamos a ostentar o pomposo nome de "Estados Unidos do Brasil", como se nossa organização política guardasse semelhança com a dos Estados Unidos da América. Nossa assim chamada "federação" é extremamente mitigada, pois entre nós a "união" não resultou da decisão de estados anteriormente soberanos. Ao contrário, a "união" é que criou os "Estados", para fazer face a objetivos político-administrativos.

Tanto assim é que, entre nós, quem dá as cartas é a União, a qual centraliza quase todos os impostos, ficando com a parte do leão e redistribuindo aos Estados (e aos Municípios) parcela ínfima da arrecadação total. Basta atentar-se para a distribuição das competências entre os diversos entes "federativos".

Numa Federação realmente digna desse nome, o CNJ seria impensável. Imagine-se, com efeito, o que ocorreria a quem, nos Estados Unidos da América, ousasse sugerir algo semelhante ! E por que esse Conselho foi criado entre nós ? Exatamente porque ele, aqui, é plenamente admissível em virtude da unitariedade do Estado brasileiro. Do mesmo modo, numa verdadeira federação seria absolutamente inconcebível uma Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Numa verdadeira federação, são os Estados que detêm o Poder Judiciário. No Brasil, ao contrário, o Poder Judiciário é nacional, una a jurisdição, distribuindo-se as competências pelos Estados, na esfera da Justiça Comum, e pelas Circunscrições Judiciárias, nas esferas da Justiça Federal e da Justiça Trabalhista. Por isso mesmo, não tem apoio na realidade o argumento da "autonomia" dos Tribunais estaduais relativamente às atividades correcionais.

É fundamentalmente em virtude dessa realidade jurídico-política que o STF julgou improcedente a ADIn 3.367, rejeitando a alegação de inconstitucionalidade da EC 45/2004, que criou o CNJ. Fê-lo por maioria, ressalvado apenas o voto do Ministro Marco Aurélio. Por força da emenda constitucional 45/2004, o artigo 103-B, parágrafo 4º, da Constituição dispõe que cabe ao CNJ "receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário [...], sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa" (cf. inc. III), e "rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano (cf. inc. V);

O significado das disposições parece extremamente claro no sentido de atribuir ao CNJ o poder correcional e disciplinar originário, sem prejuízo de competência concorrente das corregedorias estaduais. Como se sabe, o óbvio é sempre muito difícil de ser explicado, ante o risco de incidência em tautologia. Dizer que A tem determinada competência, "sem prejuízo" da competência de B, significa dizer que a competência de A não prejudica a competência de B, que, por isso mesmo, não fica impedido de exercê-la. Em outras palavras, clara situação de competência concorrente.

Eventual conflito positivo de atribuições entre o CNJ e uma determinada corregedoria estadual em função do exercício de competências concorrentes soluciona-se com base em instrumento de direito processual, consistente, no caso, no instituto da avocatória, previsto constitucionalmente. Isso não bastasse, se o CNJ tem o poder de rever os processos disciplinares decididos há menos de um ano pelas corregedorias, com muito maior razão detém o poder de instaurar e de decidir processos disciplinares.

No entanto, o ministro Marco Aurélio entende que essa competência do CNJ é apenas subsidiária. Invoca, a seu favor, o entendimento do insigne Decano do STF, o eminente Ministro Celso de Mello -- meu brilhante e querido colega de turma do Largo de São Francisco, por quem nutro enorme admiração --, para o qual a atividade do CNJ no campo disciplinar só se legitimaria ante a Carta da República se subsidiária fosse, sempre pressupondo, dentre outras, situações anômalas, tais como (a) a inércia dos Tribunais na adoção de medidas de índole administrativo-disciplinar; (b) a simulação investigatória, (c) a indevida procrastinação na prática dos atos de fiscalização e controle ou (d) a incapacidade de promover, com independência, procedimentos administrativos destinados a tornar efetiva a responsabilidade funcional dos magistrados.

Penso não ser necessário grande esforço intelectivo para constatar que os critérios acima não são propriamente de ordem jurídica, mas, sim, de caráter meramente pragmático. Mas, admitindo-se, ad argumentandum tantum, que se devesse implementar, previamente, uma ou mais das hipóteses referidas para que o CNJ pudesse atuar, caberia a indagação: do ponto de vista jurídico, qual a diferença que haveria em relação a uma competência originária, concorrente? Não haveria, relativamente aos Tribunais estaduais, a mesma interferência por parte de um órgão controlador nacional?

Costuma-se dizer que a Constituição é aquilo que o Supremo Tribunal afirma que ela é. A assertiva é verdadeira, porém deve ser entendida com um grão de sal. Isto porque, acima do Supremo, há o Tribunal da consciência jurídica nacional, amparada no arcabouço jurídico, à luz da razão e do bom senso, limites dentro dos quais deve se circunscrever a interpretação normativa. Uma coisa é interpretar uma norma constitucional, outra é querer consertá-la, por dela se discordar.

E a realidade subjacente ao arcabouço jurídico acima exposto foi reconhecida pelo Ministro Cezar Peluso, no magistral voto que proferiu na ADIn 3.367, oportunidade em que declarou ser notório que as corregedorias estaduais não são de todo eficientes, sobretudo nos graus superiores de jurisdição, o que justificou a criação do CNJ, que, indubitavelmente, representa uma conquista da cidadania. Por outro lado, os magistrados brasileiros nada têm a temer, uma vez que, acima do CNJ, está o STF, guardião último dos direitos e das garantias constitucionais de cada um de nós. E é a esse mesmo STF que estão voltados os olhos da Nação, principalmente agora que lhe cumpre decidir entre a vida ou a morte do CNJ.

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* Lionel Zaclis é advogado do escritório Barretto Ferreira, Kujawski e Brancher - Sociedade de Advogados

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