Mirna Cianci
Caso Rafinha Bastos – não é tão simples assim...
Em primeiro lugar, quanto ao nascituro, ainda que colocados a salvo seus direitos, não se pode admitir que, ausente a sensibilidade à dor, possa ser ele credor de reparação. Deverá ser efetivamente aquilatada a repercussão efetiva na personalidade da vítima e sua aptidão para assimilar tais efeitos de modo perceptivo.
Pelo mesmo motivo, têm sido afastados os pleitos indenizatórios onde se constata que o fato constitui mero aborrecimento, incapaz de depreciação ao sentimento humano, ou seja, por sua inaptidão em afetar o espectro moral do ofendido.
Em abalizado estudo, Maria Fancisca Carneiro releva esse caráter, ao assumir, dentre os "elementos que se deve ter em conta para fixar a monta da reparação", a receptividade particular da vítima, a respeito da qual define tratar-se de "condição fisiológica específica do indivíduo, ou mesmo à estruturação psicológica da personalidade, que faz com que o sujeito seja mais ou menos vulnerável, mais ou menos susceptível, mais ou menos resistente a esta ou àquela outra forma de dor".1
Essa feição particular da vítima merece especial atenção, porque, o que a um determinado indivíduo pode causar verdadeiro sofrimento, a outro, a mesma e idêntica situação, pode ser recebida sem nenhuma dor.
Nesse sentido, temos a questão analisada em função da postulante, que se considerou ofendida em sua honra, por conta da ofensa. Wanessa Camargo e sua família frequentam e sempre frequentaram assiduamente a mídia, expondo sem nenhum pudor sua vida particular em episódios notórios que ainda cabem na memória, alguns que valem ser relembrados:
Veja – Você contou a eles sobre a sua primeira vez?
Wanessa – Minha mãe questionou minha virgindade quando eu tinha 15 anos e pedi para ir ao ginecologista. E olhe que eu era mesmo virgem. Desde então, nunca mais tocou no assunto. Com meu pai, jamais conversei a respeito de sexo. Ele vai ficar louco da vida quando souber que perdi minha virgindade, porque sempre me viu como a menininha do papai. E o pior é que ele vai saber através de VEJA... Mas, enfim, sou uma mulher, tenho meus desejos e minhas vontades. (https://veja.abril.com.br/260203/entrevista.html). Em seguida a esse episódio, o pai de Wanessa, Zezé di Camargo, foi a programas de televisão e deu inúmeras entrevistas sobre o conteúdo da entrevista da filha, sem a mínima preocupação com a exploração comercial de sua intimidade.
Em outra oportunidade, sendo entrevistada, mencionou Wanessa, quando comparada a Sandy, personagem que atua com discrição em sua vida particular "Nada contra a Sandy, mas ela e a virgindade dela que se joguem de uma ponte bem alta" (Wanessa Camargo sobre Sandy).
O pai de Wanessa recentemente protagonizou notório episódio de briga com seu irmão e parceiro musical, explorando de modo evidentemente exagerado, na mídia, um problema que, para as pessoas comuns, costuma ser resolvido entre quatro paredes e entre familiares.
Esse comportamento em nada se iguala à atitude de um indivíduo que faça por preservar a intimidade, mantendo suas questões pessoais protegidas do conhecimento público, razão que leva a crer que a recepção de uma ofensa pública possa ser por este absorvida de modo absolutamente diferenciado.
Acrescente-se que, por ocasião do evento, a cantora compareceu a vários programas populares, para dar entrevista sobre o assunto que, fosse doloroso, deveria ser por ela evitado, e não tomado ainda maior proporção por ela própria acarretada, como de fato acabou por acontecer.
Desses episódios que marcam a conduta da cantora e família, forçoso concluir que a agora esposa e mãe de família nunca se preocupou em preservar sua imagem, sua intimidade, etc.. Assim demonstrado, pairam as dúvidas:
• Do episódio, ainda que fosse considerado reprovável, não teria rendido à cantora a desejável (e sempre provocada) exposição na mídia (rentável exposição), ainda mais na condição de vítima de ocasião??
• Teria ela, friamente analisada sua conduta pregressa, sofrido com essa exposição na mídia ou dela obtido vantagem, em especial pela dimensão que proporcionou ao evento, comparecendo em programas populares e concedendo inúmeras entrevistas a respeito do fato?
• Em resumo: teria havido dano??
A maioria dos civilistas sempre sustentou que o ato ilícito só interessa ao direito sob a ótica do dano, portanto, da reparação. Desde o ordenamento anterior (art. 159 do antigo Código Civil), verificava-se esse indispensável liame, no que concerne à responsabilidade civil, entre ilícito e dano.
Nesta linha, de acordo com o conteúdo do mencionado dispositivo, a reparação do dano deveria ocorrer quando, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, houvesse violação a direito ou prejuízo a outrem. Note-se que devido ao emprego da conjunção ou, a reparação do dano dependia da ocorrência de uma das alternativas, importa dizer, violação a direito ou prejuízo a outrem. Logo, para efeito de responsabilidade civil, as categorias do ilícito e do dano foram equiparadas, partindo-se da premissa que a tutela de reparação do dano é a única forma de tutela contra o ilícito.
De fato, o ilícito civil sempre foi um ilícito de dano. Essa tradição acabou refletida no texto do art. 186, do Código Civil vigente, que estabelece: "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".
No campo da reparação moral, a súmula 385/STJ bem retrata essa condição, ao delinear que, ainda que negativado ilicitamente, o individuo que tenha outras anotações em seu nome (estas lícitas), não terá direito à reparação, justamente porque ausente o dano, já que o abalo de crédito (leia-se dano) resulta de sua reiterada inadimplência e não do isolado ato, ainda que equivocado (leia-se ilícito).
Assim, ainda que presente o ilícito, haveria que ter sido de fato aquilatada a existência do dano moral, aqui considerada a repercussão do fato na personalidade da vítima, capaz de lhe impingir sofrimento real.
Essa consequencia resulta ainda mais enfraquecida se verificado que os autores buscaram, mediante ação judicial, não a reparação in natura, mas a compensação pecuniária. Ora, sendo sincero o pleito, por evidente que traria muito maior satisfação a pública retratação do ofensor (pelos mesmos meios em que perpetrada) e não a retribuição financeira.
Pontes De Miranda2 textualmente afirma que "tem de vir em primeiro lugar a reparação em natura. E, apenas se não há outro meio de ressarcimento que o da avaliação em pecúnia, dele se tem de lançar mão". O Autor menciona como repristinação a devolução natural das coisas ao estado anterior. E, essa tem sido considerada a forma mais perfeita de recomposição do dano3, que desafia as opiniões a respeito da impossibilidade de avaliação do dano moral. José de Aguiar Dias4, ao estudar as formas de liquidação do dano moral, menciona a possibilidade de "reparação natural ou específica" alertando para o fato de que esta "corresponde melhor ao fim de restaurar" somente admitindo a indenização pecuniária quando absolutamente inviável a reparação natural.
Bem anota Paulo de Tarso Vieira Sanseverino que "embora seja bastante difícil fazer desaparecer completamente os efeitos danosos do ato ilícito, quando viável, a reparação natural é o modo que melhor restabelece o estado em que se encontrava a vítima antes da ocorrência desse ato"5.
Evidente que aos autores o valor equivalente a 30 salários mínimos não reduz nem aumenta eventual efeito moral que possa ter o evento causado à abastada família. O que se verifica, na pretensão e na condenação, será a indisfarçavel intenção de punição do ofensor e não de reparação às vítimas.
E o caráter punitivo do dano moral, outrora defendido pela doutrina e frequentemente utilizado pelo Judiciário como critério de valoração da reparação moral, atualmente revela-se teoria ultrapassada. O Superior Tribunal de Justiça com maior frequência amenizou e melhor enquadrou esse caráter indenizatório, decidindo reiteradamente que "(....) a aplicação irrestrita das "punitive damages" encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio que, anteriormente à entrada do Código Civil de 2002, vedava o enriquecimento sem causa como princípio informador do direito e após a novel codificação civilista, passou a prescrevê-la expressamente, mais especificamente, no art. 884 do Código Civil de 2002."6
Nesse mesmo julgado, a Corte expressamente considerou que "(...) a rigor, a indenização por dano moral trata-se mais de uma compensação do que propriamente de ressarcimento (como no dano material), até porque o bem moral não é suscetível de ser avaliado, em sua precisa extensão, em termos pecuniários", assumindo com isso o aqui defendido caráter compensatório e não punitivo da aferição da reparação moral, antes destacando uma "certa perplexidade" com que convive aquele C.Tribunal "no concernente à fixação ou avaliação pecuniária, à míngua de indicadores concretos".
Acrescente-se que inexiste em nosso ordenamento legislativo qualquer previsão capaz de dar suporte a essa punição, e, como regra de interpretação, deve ser restritiva a atuação exegética. Com efeito, a inclusão do art. 16 do Código de Defesa do Consumidor foi vetada pelo Presidente da República e, o acréscimo de parágrafo ao artigo 944 do Código Civil/2002 veio a ser rejeitado pelo Congresso Nacional.
Portanto, sem adentrar a reprovabilidade da conduta ou mesmo a sua repercussão na esfera ideal dos ofendidos, não há como aplaudir, pura e simplesmente, senão em razão de leiga indignação, a condenação do humorista, a não ser que respondidas – e bem respondidas (leia-se instrução processual) as dúvidas aqui lançadas, acerca da efetiva ocorrência de dano e da real intenção dos demandantes, ao propor a ação e dar reiterada publicidade ao evento.
Não é tão simples assim !!
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1Avaliação do Dano Moral e Discurso Jurídico, Porto Alegre: Fabris Editor, 1998, p. 65
2Responsabilidade Civil, ,p.76
3Na lição de Sérgio Severo, apud Clayton Reis, ob.cit.,p.117
4Ob.cit.,pg.724
5Apud Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, ob.cit., p. 35
6REsp 210.101/PR, Rel. Ministro CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ FEDERAL CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), QUARTA TURMA, julgado em 20/11/2008, DJe 09/12/2008. No mesmo sentido: REsp 401.358/PB, Rel. Ministro CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ FEDERAL CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), QUARTA TURMA, julgado em 05/03/2009, DJe 16/03/2009; AgRg no Ag 850.273/BA, Rel. Ministro HONILDO AMARAL DE MELLO CASTRO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/AP), QUARTA TURMA, julgado em 03/08/2010, DJe 24/08/2010___________________
* Mirna Cianci é procuradora do Estado de São Paulo
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