Maristela Basso
O Brasil pratica ato ilegal e imoral contra os haitianos
As obrigações assumidas pelo Brasil, na ONU, obrigam que se reconheça o direito das pessoas a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação e cuidados médicos. O fato de o ingresso de uma pessoa na jurisdição brasileira se ter efetuado clandestina ou irregularmente não atinge nenhuma das obrigações aqui referidas.
O Governo ignora a resolução nº 43/13, de 1988, da ONU, na qual o Brasil reconhece que a ele incumbe inquietar-se com as vítimas de catástrofes naturais e situações de urgência da mesma forma em que essas ocorrem em seu território.
Funcionários do Governo, portanto: (i) dão de ombros aos compromissos humanitários internacionais; (ii) desconsideram que o Brasil poderia assumir a liderança na condução do problema dos haitianos coordenando os esforços internacionais de cooperação com outros países e com organizações não-governamentais de assistência humanitária; e (iii) desconhecem e descumprem a legislação brasileira.
A lei 6.815/80 não permite que se discriminem nacionais de países estrangeiros por meio de cotas humanas para concessão de visto para ingresso no Brasil. Essa lei determina que não pode ser exigido visto ao estrangeiro originário de país que não exige do brasileiro idêntico tratamento. As hipóteses que justificam a não concessão de visto para o Brasil são: menor de 18 (dezoito) anos, desacompanhado do responsável legal ou sem a sua autorização expressa; considerado nocivo à ordem pública ou aos interesses nacionais; anteriormente expulso do País; condenado ou processado em outro país por crime doloso, passível de extradição segundo a lei brasileira; ou que não satisfaça às condições de saúde estabelecidas pelo Ministério da Saúde. Os haitianos não se enquadram em nenhuma delas.
A ameaça de deportação é imoral e não encontra amparo legal, sem considerar que a deportação custaria para os cofres públicos muito mais do que a colocação dos haitianos no Brasil e comprometeria a imagem do Brasil de paladino dos direitos humanos.
Contudo, aos irmãos do Haiti fica muito difícil contestar medida governamental tão arbitrária. Somente o tempo e a volta do bom-senso ao Governo servem de consolo e embalam a esperança: deles, haitianos, de sobrevivência e nossa de que as leis devem ser cumpridas e de que vivemos em um Estado de Direito (ainda que "non troppo").
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*Maristela Basso é advogada e professora de Direito Internacional da USP
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