Sílvio de Salvo Venosa
Dez anos de Código Civil. Livres reflexões.
É importante acentuar que essa azáfama envolvendo assuntos administrativos fundamentais do Judiciário desenlaça um desânimo por parte dos magistrados na sua arte de julgar e em rebaixamento de sua moral. Isso nos leva a considerar que a figura do juiz, no Código Civil deste século, colocou o magistrado como peça fundamental na utilização do estatuto. Aproxima em muito a atividade do juiz brasileiro dos julgadores do sistema anglosaxão, com as denominadas cláusulas abertas, presentes em inúmeros artigos, convoca o julgador para aplicar a melhor solução que o caso concreto requer, dando-lhe um espaço amplo de escolha. Recorde-se o emblemático art. 421, que menciona que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Essa norma, aberta ou genérica, dentre as inúmeras desse gênero presentes no Código, deve ser preenchida pelo julgador no caso concreto. A função social avalia-se na concretude do direito. Esse quadro deve merecer deslinde que não coloque em risco a segurança jurídica, um dos pontos delicados das cláusulas abertas. Esse é o grande desafio do julgador. Assim, não se pode apontar aprioristicamente se um contrato atende ou não o interesse social. Quando o julgador concluir que um contrato, no todo ou em parte, desvia-se de sua função social, deverá extirpar sua eficácia ou, se for o caso, adaptá-lo às necessidades sociais, tal como o fará com as cláusulas abusivas. Nisso o direito pátrio, como acentuado, se aproxima muito do direito inglês e norteamericano.
Essa atividade jurisdicional, muito acentuada no presente Código, exige do magistrado, além de suas qualidades elementares, perspicácia social e elevada cultura, além de tranquilidade comportamental, nem sempre presentes nas atuais gerações. A tormentosa crise do Judiciário é mais um fator de inquietação para o jurisdicionado. A mais fundamental de todas as qualidades desse aplicador do Direito, a se manifestar palpitantemente nas cláusulas abertas, é a vocação. Magistrado que busca a carreira, apenas para galgar degraus de funcionário público, será sempre um mau julgador. Infelizmente as nossas faculdades de Direito, com níveis precários, com as exceções conhecidas, não dão o necessário realce ao futuro profissional dos acadêmicos e a esse aspecto vocacional, não só para a magistratura, mas para o vasto campo profissional que se abre ao bacharel. O magistrado, ademais, deve ser sempre um homem do seu tempo, antenado na sociedade que o cerca, uma pessoa do mundo, mundano na acepção mais técnica do termo. Muito foi feito nesse decênio em torno da correta aplicação das cláusulas abertas, mas o seu caminho, como tudo em Direito, será sempre um desafio.
Lembrando da forma como foi conduzida a promulgação do Código no início deste século, sem uma participação mais efetiva dos civilistas, várias lacunas foram observadas no estatuto e algumas incongruências que foram colocadas como um peso enorme para os julgadores. O projeto originário dessa lei remonta ao início dos anos 70 e muito necessitava ser adaptado à Constituição atual e aos novos anseios e conquistas sociais. A promulgação de um Código no século XXI se mostra surpreendente para o mundo ocidental, numa época em que se torna cada vez mais difícil colocar todo um ramo do direito de modo ordenado em uma única lei. A tendência é que os códigos se reduzam a princípios gerais, nos quais a parte geral do Código se mostra efetiva, como a base do direito brasileiro, e princípios obrigacionais. A tendência dos chamados microssistemas ou estatutos se faz cada vez mais acentuada, de forma a gravitar em torno de códigos, estes cada vez mais genéricos e sintéticos. São muitos os exemplos, como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto das Cidades, dentre tantos. O Projeto do Estatuto das Famílias pretende extirpar todo o livro de família do Código Civil, a corroborar o que afirmamos. A tendência é que tenhamos um microssistema registrário, que abrangerá o Direito Imobiliário, e em outros campos do Direito Civil, como o do livro das sucessões. Esse caminho não é só do Direito Civil, mas também de outros campos, como o Direito Penal, cujo código se restringirá cada vez mais à parte geral.
Como se percebe, a problemática da codificação neste século nada mais tem a ver com o que ocorreu quando da elaboração dos primeiros códigos da história, em torno dos séculos XVIII e XIX. A era tecnológica nos trouxe outros desafios. Dentre estes, avulta a atividade hermenêutica da doutrina e a exegese dos tribunais, sob novas vestes. A lei e a doutrina manterão sua importância no direito de origem romano germânica, porém cada vez mais avultará a importância dos precedentes, da jurisprudência numa aproximação com os países de língua inglesa, onde ocorre justamente o oposto, em fenômeno que cada vez mais aproxima os dois sistemas, ambos procurando atingir o melhor ideal de justiça, por caminhos diferentes no curso de sua história.
Nesses dez anos do Código, período que ora se abre, que estas singelas reflexões sirvam de homenagem a uma lei que, embora com imperfeições como toda obra humana, engrandece sobremaneira a cultura brasileira, como também o fizera o Código de 1916.
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* Sílvio de Salvo Venosa foi juiz no Estado de São Paulo por 25 anos. Aposentou-se como membro do extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil, passando a integrar o corpo de profissionais de grandes escritórios jurídicos brasileiros.
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