Maria Ednalva de Lima
Sérgio Niemeyer
O pedido da FIFA para suspender a vigência de leis durante a Copa de 2014
Diante do esdrúxulo pedido, duas observações hão de ser postas: (1) não existe o fenômeno da "suspensão de leis" na ordem jurídica brasileira; (2) o governo não tem competência para interferir na atividade desenvolvida pelo Legislativo a ponto de obrigá-lo a suspender, circunstancialmente, a aplicação de leis.
As três leis citadas foram editadas pelo órgão competente – o Congresso Nacional – e em consonância com o procedimento estabelecido pela Constituição Federal (clique aqui).
No âmbito Federal, incumbe ao Congresso Nacional produzir as leis, e não ao governo. O Chefe do Executivo tem competência, apenas, para expedir leis delegadas e medidas provisórias.
Na ordem jurídica brasileira, conhecemos, desde o primeiro ano da faculdade de Direito, os fenômenos da validade, vigência, eficácia e aplicação das leis.
Para examinar a extravagância do pedido formulado pela FIFA, basta que deitemos a atenção sobre os fenômenos da vigência e aplicação das leis.
Sucintamente, a vigência corresponde à prontidão da lei para produzir efeitos assim que ocorram os fatos nela previstos. Em outras palavras, significa a dimensão temporal dentro da qual a lei se encontra apta a irradiar e produzir os efeitos jurídicos para os quais foi concebida.
Em regra, o termo inicial dessa aptidão da lei para produzir os efeitos que lhe são próprios é estatuído por artigo constante da própria lei, e a ausência de tal disposição específica implica a incidência da regra contida no artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Civil (clique aqui). De igual modo, o momento da perda da referida prontidão ou é determinado na mesma lei, quando esta seja destinada a vigorar apenas temporariamente, ou por outra lei (artigo 1º da LICC).
A norma que ordena a perda da vigência de uma lei, revoga-a.
Logo, uma lei perde a vigência quando é revogada.
Enquanto a lei não é revogada, ela está apta a produzir seus efeitos assim que ocorrerem os eventos nela previstos, por obra da fórmula algébrica do dever-ser: dado o fato F, dever ser a consequência C, que em notação lógica ou simbólica é representada pelo enunciado condicional: (F ? C) (leia-se: é necessário que se F, então C).
Para produzir seus efeitos, a lei precisa ser aplicada, seja por observância das partes quanto ao fato que ela regula, hipótese em que sua incidência é matizada pelo aspecto composição, seja por imposição judicial representada em uma sentença de mérito transitada em julgado, hipótese em que a incidência é matizada pelo aspecto recomposição.
É por meio da aplicação que os textos legais ganham vida, tornam-se dinâmicos. Sem a aplicação, os textos são inertes e meramente latentes, uma realidade em potência.
O que pretende, então, a FIFA? A supressão da vigência das leis citadas durante a Copa de 2014. Para alcançar tal objetivo, só há uma maneira: a revogação dessas mesmas leis. Nessa hipótese, a revogação seria temporária, ou melhor, a lei que as revoga deve nascer com termo final certo e determinação expressa de repristinação das leis revogadas quando atingido o prazo de vigência da lei revogadora. Resta saber se a ordem jurídica permite tal extravagância.
De imediato se pode afirmar que o governo, assim entendido o Poder Executivo, não tem permissão para revogar leis. Tal atribuição é do Poder Legislativo. Mas este também não poderia editar norma com tal atribuição: a revogação temporária do CDC, do EI e do ET, porque isso seria inconstitucional, já que a proteção ao consumidor e ao idoso decorre ou de mandamento expresso ou dos princípios que se quitam nas fímbrias da Constituição Federal.
Se a pretensão da FIFA limita-se à suspensão da aplicação dessas leis, também isso não pode ser atendido. A ordem jurídica não autoriza que as leis vigentes deixem de ser aplicadas em dadas circunstâncias, salvo aquelas expressamente previstas na Constituição Federal, de que é exemplo o estado de sítio, que autoriza inclusive a suspensão de garantias constitucionais, e, por uma questão lógica, permite, outrossim, a suspensão não da vigência, mas da eficácia das leis infraconstitucionais, já que quem pode o mais, pode o menos.
Imaginem todos que seria do povo brasileiro se fosse permitida a revogação temporária das leis ou a suspensão transitória de sua eficácia diante de certas circunstâncias. Reinaria a insegurança. Não viveríamos sob o império da lei, mas da balbúrdia, em total insegurança, e jamais poderíamos afirmar a existência de uma ordem jurídica séria.
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*Maria Ednalva de Lima é advogada do escritório Maria Ednalva de Lima Advogados Associados e Sérgio Niemeyer, mestre em Direito pela USP, é advogado, professor universitário e parecerista
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