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O "cram down" da lei de falências e recuperações judiciais

O advogado analisa o mecanismo do "cram down", originalmente americano, assimilado pela lei de falências e recuperações judiciais.

26/9/2011

Luiz Fernando Höfling

O "cram down" da lei de falências e recuperações judiciais

A lei de falências e recuperações judiciais, agora em vigor, assimilou, da legislação americana, o "cram down", vale dizer, o mecanismo pelo qual, mediante a deliberação da maioria dos credores, aqueles que não aprovarem o plano de recuperação judicial devem, necessariamente, conformar-se com ele, a despeito de manifestação de vontade em sentido contrário.

Admite-se, até mesmo, que essa técnica corresponda a princípios saudáveis de preocupação com a manutenção das empresas, dada a sua relevância social e econômica para o país.

Na prática, entretanto, está ocorrendo perversão do princípio, na medida em que tem sido utilizado como mecanismo de compra de apoio da maioria, em detrimento da minoria, o que caracteriza uma "unfair discrimination" que o legislador, certamente, repudiaria, se tivesse conhecimento prévio dessa prática, que colide, frontalmente, com o princípio da igualdade entre os credores.

E a perversão consiste, rusticamente, no seguinte:

A recuperanda apresenta um plano de recuperação judicial, sem base de sustentação entre os credores, como, por exemplo, o que preveja desconto de 40% do crédito, pagamento em vinte e cinco anos, com correção monetária pelo INPC, com uma carência de dois anos para início dos pagamentos.

Na data designada para a assembleia – que monumental erro do legislador foi o de admitir que as assembleias fossem feitas na comarca correspondente ao domicílio da devedora, que pode ser em cidades distantes, submetidas à influência política do devedor, o que torna, no mínimo, perigosa a presença do credor e de seus advogados - sentam-se os devedores, diante dos credores, indagando deles o que querem para aprovação do plano.

A recuperanda curva-se, diante de cada uma dessas vontades, satisfazendo-as: com um, faz acordo para receber em dois anos, com carência de dois meses, mediante pagamento de juros de 1% ao mês, mais taxa referencial; com outro, para receber em quatro anos, com carência de três meses, mediante pagamento de juros de 0,5% ao mês, além de correção pelo INPC; e, assim, sucessivamente, até chegar-se à metade mais um dos votos dos credores, em, pelo menos, duas classes de credores e 1/3 dos credores, na terceira classe, preenchendo-se, destarte, os requisitos do artigo 58 do texto legal.

Alcançado esse número, a recuperanda deixa de celebrar acordo com os demais credores, que ficam, então, condenados à vala comum do precário plano de recuperação geral, inicialmente submetido à assembleia.

Estes últimos credores, dessa forma, ficam prejudicados, pois, diante da posição favorável dos demais credores, na proporção exigida pelo artigo 58 do texto legal, o juiz poderá conceder a recuperação judicial à recuperanda, muito embora tenham sido objeto de "unfair discrimination", sendo submetidos, sem mais nem menos, ao rigor do "cram down".

É óbvia a "compra' dos votos assembleares, mediante a concessão de favores ao número de credores necessários para assegurar a aprovação do plano modificado em assembleia!

Dir-se-ia que esse mecanismo, sem dúvida perverso, seria obstado pela aplicação da regra do parágrafo segundo do artigo 58 do texto legal, segundo a qual a recuperação judicial somente será concedida se o plano não implicar tratamento diferenciado entre os credores da classe que o houver rejeitado.

A verdade, porém, é que essa regra somente é evocável se houver, na terceira classe, rejeição do plano de recuperação, com aprovação de, tão somente, um terço.

Se, ao contrário, houver aprovação do plano de recuperação judicial, nas três classes, não será possível aplicá-la.

É, com efeito, difícil identificar, na jurisprudência de nossos tribunais, aí incluído o paulista, casos em que essa regra tenha sido evocada, como neutralizadora da ação nefasta da compra dos votos assembleares, pela via da celebração de acordos individuais com cada um dos credores de cada classe.

Cabe, dessa forma, aos julgadores, a função de atentarem para o princípio da "pars conditio creditorum", de forma a evitarem que credores da mesma classe – muitas vezes a pretexto de que continuariam a financiar as atividades da recuperanda – possam ser tratados de forma diferente, com privilégios concedidos à maioria do artigo 58 do texto legal.

De contrário, o mecanismo perverso produzirá as suas piores consequências, deixando ao desabrigo o interesse dos credores que, embora minoritários, não podem deixar de ver reconhecidos os seus direitos, em face dos demais concorrentes.

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*Luiz Fernando Höfling é advogado do escritório Höfling, Thomazinho Advocacia

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