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A ratificação da ilegalidade na colheita de provas e a permissão do STJ para que o juízo cível exerça jurisdição na seara criminal

A partir de uma decisão em que um juiz de Direito de uma vara de Família determinou a execução de uma interceptação telefônica, o autor fala sobre a ilegalidade na colheita de provas.

2/9/2011

Ricardo Henrique Araújo Pinheiro

A ratificação da ilegalidade na colheita de provas e a permissão do STJ para que o juízo cível exerça jurisdição na seara criminal

No dia 1 de setembro de 2011, o STJ não conheceu de um habeas corpus preventivo cuja essência vindicava salvo conduto para que o gerente de uma determinada empresa de telefonia pudesse não cumprir ordem judicial que determinava a execução de uma interceptação de comunicação telefônica. Consta da notícia publicada no STJ que um juiz de Direito de uma vara de família do Mato Grosso do Sul foi quem expediu a ordem para que a interceptação fosse realizada, destacando-se na decisão aventada que haveria indícios da prática do crime previsto no artigo 237 do ECA, de modo que a interceptação das comunicações telefônicas seria o único meio viável para a obtenção da prova1.

Com efeito, a situação posta em análise é uma daquelas que certamente estará fadada ao insucesso, em razão do manifesto erro de procedimento na condução de uma eventual investigação criminal por um juízo cível.

Para nós, a determinação judicial emanada de um juízo cível comprova que a interceptação das comunicações telefônicas no Brasil está sendo tratada com total desprezo às garantias constitucionais. É inaceitável que um magistrado não conheça as possibilidades de suspensão das garantias constitucionais. Aliás, é inaceitável que um Tribunal responsável pelo controle da legalidade dos atos a ele submetidos não enxergue o tamanho desse absurdo.

A lei 9.296/96 (clique aqui) é clara ao estabelecer que a interceptação das comunicações telefônicas será permitida para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, e dependerá de ordem de juiz competente para a ação principal.

Ademais, a interceptação das comunicações telefônicas é sempre meio secundário de prova, de modo que não poderá ser utilizada para iniciar qualquer tipo investigação.

Nesse passo, se a ordem para a interceptação telefônica deverá partir do juízo responsável pela ação principal (está expresso no artigo 1º da lei 9.296/96), é óbvio que um juiz com jurisdição na vara de família não poderia ter obrigado o gerente de uma empresa de telefonia a cumprir a ordem judicial de interceptação, tratando-se de decisão judicial manifestamente ilegal.

No nosso entendimento, errou o STJ ao não conhecer do habeas corpus impetrado pelo citado gerente, na medida em que o descumprimento da referida ordem judicial configuraria o crime de desobediência (artigo 330 do CP). Ao julgar o RHC 2773/SP, o próprio STJ, concedeu a ordem de habeas corpus para afastar qualquer possibilidade de ameaça ao direito de liberdade de um cidadão constrangido a cumprir uma ordem judicial manifestamente nula. O saudoso ministro CERNICCHIARO - que foi o voto-vogal no referido julgamento – admitiu que o habeas corpus é ação constitucional que visa garantir o direito de liberdade contra constrangimento ilegal, que pode decorrer também de decisão judicial. O Judiciário tem presunção de legalidade nas suas decisões, que, entretanto, podem ser contrastadas.

Ao Julgar o HC 200801000107653, o TRF da 1ª região, concedeu salvo-conduto a um gerente de uma empresa de telefonia por considerar que sendo manifestamente ilegal a ordem judicial dirigida à paciente (gerente jurídica da empresa de telefonia) – no sentido de que fornecesse a senha aos agentes de polícia Federal que lhe permitisse a obtenção dos dados acobertados por sigilo -, ainda que a ilustre magistrada não tivesse conhecimento de qualquer intentada da Polícia Federal no sentido de efetuar a sua prisão, faz-se cabível a concessão de salvo-conduto, para impedir quaisquer consequências criminais advindas do descumprimento de tal ordem.

Um dado interessante apresentado pela doutora Fabiana Regina Sivieiro – diretora jurídica da empresa GOOGLE Brasil -, no 17ª Seminário do IBCCRIM, foi à situação desconfortável que vem sendo reiteradamente submetida pelo não cumprimento de ordens judiciais manifestamente ilegais, para o fornecimento de dados acobertados pelo sigilo legal.

Recentemente o Tribunal Cidadão declarou a ilicitude das provas colhidas sem que o devido respeito ao princípio do juiz natural fosse observado. O ministro MUSSI foi categórico e direto ao rechaçar a instrução processual feita por autoridade absolutamente incompetente, destacando-se que a garantia do juiz competente não se restringe ao direito de ser processado e julgado por órgão previamente conhecido, também se aplicando às hipóteses de restrição de direitos fundamentais no curso do processo, notadamente as que pressupõem permissão judicial, como a busca e apreensão e a interceptação das comunicações telefônicas2.

Entrelinhas, a quebra de sigilo telefônico deferida sem fundamentação legal, viola as garantias constitucionais relativas à intimidade e à vida privada (art. 5º, X) e ao sigilo das comunicações telefônicas, telegráficas e de dados (art. 5º, XII), porquanto as hipóteses para que a suspensão das garantias constitucionais fosse afastada não estavam presentes no caso apresentado, quais sejam: a) indícios razoáveis de crime (art. 2º, I da Lei 9.296/96); b) efetiva investigação em andamento (art.3º, I da Lei 9.296/96). Nesse passo, se extrai da notícia aventada no STJ que a motivação para que a interceptação fosse autorizada foi o insucesso no cumprimento de cartas precatórias, fato que demonstra o total desprezo ao devido processo constitucional.

Aliás, foi o próprio STJ que ao julgar o HC 116.375 declarou a nulidade das provas colhidas através de interceptação telefônica colhida sem a devida fundamentação. O relator do caso, ministro LIMONGI, pontuou que outro requisito indispensável para a autorização do meio de prova em questão o é a demonstração de sua indispensabilidade, isto é, que ele seja o único meio capaz de ensejar a produção de provas. Inteligência do artigo 2º, II da lei 9.296/96. Sua Excelência prossegue a sua brilhante exposição afirmando que havendo o Juízo de 1º grau deferido a gravosa medida unicamente em razão da gravidade da conduta dos acusados, do poderio da organização criminosa e da complexidade dos fatos sob apuração, porém, sem demonstrar, diante de elementos concretos, qual seria o nexo dessas circunstâncias com a impossibilidade de colheita de provas por outros meios, mostra-se inviável o reconhecimento de sua legalidade.

Ao nosso juízo, a questão apresentada ao STJ pelo gerente de uma empresa de telefonia deveria ter sido tratada como questão de ordem pública, já que a incompetência absoluta do juízo cível para exercer jurisdição na seara criminal certamente está inserida dentro do contexto ordem pública. E mais, o não conhecimento da ordem de habeas é preocupante, pois implicará na obrigação de cumprimento de ordem judicial manifestamente nula, o que poderá trazer sérios prejuízos para a empresa de telefonia. Aliás, o não conhecimento do writ certamente implicará na nulidade da prova colhida pelo juízo cível, de modo que o único prejudicado será o próprio Estado, que investirá em uma eventual investigação manifestamente nula.

Portanto, não temos dúvidas de que a prova colhida por meios ilícitos é inválida, ou seja, não serve para o uso judicial, bem como para quaisquer efeitos processuais. Ademais, temos a impressão de que decisões dessa espécie são preocupantes em um Estado Democrático de Direito que vem se fortalecendo com o uso indiscriminado do meio gravoso de colheita de prova: a interceptação de comunicação telefônica.

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1 A notícia foi publicada no dia 01 de setembro de 2011 no seguinte endereço https://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=103043

2 HC 83.632/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 19/08/2010, DJe 20/9/2010.

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*Sócio do escritório Araújo Pinheiro Advocacia Criminal

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