Ricardo Henrique Araújo Pinheiro
A ratificação da ilegalidade na colheita de provas e a permissão do STJ para que o juízo cível exerça jurisdição na seara criminal
Com efeito, a situação posta em análise é uma daquelas que certamente estará fadada ao insucesso, em razão do manifesto erro de procedimento na condução de uma eventual investigação criminal por um juízo cível.
Para nós, a determinação judicial emanada de um juízo cível comprova que a interceptação das comunicações telefônicas no Brasil está sendo tratada com total desprezo às garantias constitucionais. É inaceitável que um magistrado não conheça as possibilidades de suspensão das garantias constitucionais. Aliás, é inaceitável que um Tribunal responsável pelo controle da legalidade dos atos a ele submetidos não enxergue o tamanho desse absurdo.
A lei 9.296/96 (clique aqui) é clara ao estabelecer que a interceptação das comunicações telefônicas será permitida para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, e dependerá de ordem de juiz competente para a ação principal.
Ademais, a interceptação das comunicações telefônicas é sempre meio secundário de prova, de modo que não poderá ser utilizada para iniciar qualquer tipo investigação.
Nesse passo, se a ordem para a interceptação telefônica deverá partir do juízo responsável pela ação principal (está expresso no artigo 1º da lei 9.296/96), é óbvio que um juiz com jurisdição na vara de família não poderia ter obrigado o gerente de uma empresa de telefonia a cumprir a ordem judicial de interceptação, tratando-se de decisão judicial manifestamente ilegal.
No nosso entendimento, errou o STJ ao não conhecer do habeas corpus impetrado pelo citado gerente, na medida em que o descumprimento da referida ordem judicial configuraria o crime de desobediência (artigo 330 do CP). Ao julgar o RHC 2773/SP, o próprio STJ, concedeu a ordem de habeas corpus para afastar qualquer possibilidade de ameaça ao direito de liberdade de um cidadão constrangido a cumprir uma ordem judicial manifestamente nula. O saudoso ministro CERNICCHIARO - que foi o voto-vogal no referido julgamento – admitiu que o habeas corpus é ação constitucional que visa garantir o direito de liberdade contra constrangimento ilegal, que pode decorrer também de decisão judicial. O Judiciário tem presunção de legalidade nas suas decisões, que, entretanto, podem ser contrastadas.
Ao Julgar o HC 200801000107653, o TRF da 1ª região, concedeu salvo-conduto a um gerente de uma empresa de telefonia por considerar que sendo manifestamente ilegal a ordem judicial dirigida à paciente (gerente jurídica da empresa de telefonia) – no sentido de que fornecesse a senha aos agentes de polícia Federal que lhe permitisse a obtenção dos dados acobertados por sigilo -, ainda que a ilustre magistrada não tivesse conhecimento de qualquer intentada da Polícia Federal no sentido de efetuar a sua prisão, faz-se cabível a concessão de salvo-conduto, para impedir quaisquer consequências criminais advindas do descumprimento de tal ordem.
Um dado interessante apresentado pela doutora Fabiana Regina Sivieiro – diretora jurídica da empresa GOOGLE Brasil -, no 17ª Seminário do IBCCRIM, foi à situação desconfortável que vem sendo reiteradamente submetida pelo não cumprimento de ordens judiciais manifestamente ilegais, para o fornecimento de dados acobertados pelo sigilo legal.
Recentemente o Tribunal Cidadão declarou a ilicitude das provas colhidas sem que o devido respeito ao princípio do juiz natural fosse observado. O ministro MUSSI foi categórico e direto ao rechaçar a instrução processual feita por autoridade absolutamente incompetente, destacando-se que a garantia do juiz competente não se restringe ao direito de ser processado e julgado por órgão previamente conhecido, também se aplicando às hipóteses de restrição de direitos fundamentais no curso do processo, notadamente as que pressupõem permissão judicial, como a busca e apreensão e a interceptação das comunicações telefônicas2.
Entrelinhas, a quebra de sigilo telefônico deferida sem fundamentação legal, viola as garantias constitucionais relativas à intimidade e à vida privada (art. 5º, X) e ao sigilo das comunicações telefônicas, telegráficas e de dados (art. 5º, XII), porquanto as hipóteses para que a suspensão das garantias constitucionais fosse afastada não estavam presentes no caso apresentado, quais sejam: a) indícios razoáveis de crime (art. 2º, I da Lei 9.296/96); b) efetiva investigação em andamento (art.3º, I da Lei 9.296/96). Nesse passo, se extrai da notícia aventada no STJ que a motivação para que a interceptação fosse autorizada foi o insucesso no cumprimento de cartas precatórias, fato que demonstra o total desprezo ao devido processo constitucional.
Aliás, foi o próprio STJ que ao julgar o HC 116.375 declarou a nulidade das provas colhidas através de interceptação telefônica colhida sem a devida fundamentação. O relator do caso, ministro LIMONGI, pontuou que outro requisito indispensável para a autorização do meio de prova em questão o é a demonstração de sua indispensabilidade, isto é, que ele seja o único meio capaz de ensejar a produção de provas. Inteligência do artigo 2º, II da lei 9.296/96. Sua Excelência prossegue a sua brilhante exposição afirmando que havendo o Juízo de 1º grau deferido a gravosa medida unicamente em razão da gravidade da conduta dos acusados, do poderio da organização criminosa e da complexidade dos fatos sob apuração, porém, sem demonstrar, diante de elementos concretos, qual seria o nexo dessas circunstâncias com a impossibilidade de colheita de provas por outros meios, mostra-se inviável o reconhecimento de sua legalidade.
Ao nosso juízo, a questão apresentada ao STJ pelo gerente de uma empresa de telefonia deveria ter sido tratada como questão de ordem pública, já que a incompetência absoluta do juízo cível para exercer jurisdição na seara criminal certamente está inserida dentro do contexto ordem pública. E mais, o não conhecimento da ordem de habeas é preocupante, pois implicará na obrigação de cumprimento de ordem judicial manifestamente nula, o que poderá trazer sérios prejuízos para a empresa de telefonia. Aliás, o não conhecimento do writ certamente implicará na nulidade da prova colhida pelo juízo cível, de modo que o único prejudicado será o próprio Estado, que investirá em uma eventual investigação manifestamente nula.
Portanto, não temos dúvidas de que a prova colhida por meios ilícitos é inválida, ou seja, não serve para o uso judicial, bem como para quaisquer efeitos processuais. Ademais, temos a impressão de que decisões dessa espécie são preocupantes em um Estado Democrático de Direito que vem se fortalecendo com o uso indiscriminado do meio gravoso de colheita de prova: a interceptação de comunicação telefônica.
_________
1 A notícia foi publicada no dia 01 de setembro de 2011 no seguinte endereço https://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=103043
2 HC 83.632/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 19/08/2010, DJe 20/9/2010.
_________
*Sócio do escritório Araújo Pinheiro Advocacia Criminal
________________________