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Tempos teratológicos

O inexplicável ocorre em todas as áreas e faltam-nos receitas intelectuais para equacioná-lo. A partir desta ponderação, o autor destaca a ineficiência dos paradigmas para lidar com os acontecimentos teratológicos atuais.

4/8/2011

Tempos teratológicos

Gilberto de Mello Kujawski*

Na Grécia antiga, chamava-se teratologia a narrativa de fatos espantosos, anomalias inexplicáveis, coisas monstruosas, episódios horrendos e terríveis. Posteriormente, chamou-se "teratologia" a especialidade médica dedicada ao estudo das anomalias e malformações anatômicas. Por extensão, a palavra passou a denominar tudo o que se refere aos monstros e às monstruosidades de todo tipo, crimes, condutas, ações, acontecimentos teratológicos, ou seja, espantosos, inexplicáveis ou revoltantes.

O final do século XX e o início do século XXI estão marcados a ferro em brasa pela sucessão de alguns acontecimentos repetitivos e em escala crescente que nos levam à convicção de que vivemos, todos os países e o planeta inteiro, tempos teratológicos. A vida nunca foi, no passado, muito pacífica e estável. Mas, por longos períodos, gozava-se de relativa paz e estabilidade histórica, geográfica e meteorológica.

Mas agora, talvez em função do ritmo cada vez mais acelerado do tempo, assistimos, ou melhor, participamos de anomalias macro em todos os setores, e não isoladas, mas repetidas e em série. A história e a geografia celebram um conluio impiedoso contra toda a humanidade.

As perturbações da meteorologia, inundações diluvianas em toda parte, invernos siberianos, com nevascas assustadoras, verões incandescentes, incêndios pavorosos, tempestades catastróficas acompanhadas de ventos cada vez mais vertiginosos, frio quando deveria fazer calor e vice-versa, correspondem às arritmias imprevistas no campo da economia, da política, dos massacres cada vez mais frequentes e extensos contra vítimas inocentes, e aos desvios criminosos em número crescente na conduta pública e privada, como o aumento da corrupção, o consumo descontrolado de drogas, a crueldade doméstica e a pedofilia. E tsunamis, e desastres nucleares, a poluição galopante e incontrolável, lembrando-se, ainda o vandalismo dos hackers e a crise generalizada na normalidade dos serviços, como o correio e a aviação.

Tudo somado, o cenário atual do planeta é de fim de mundo, um panorama apocalíptico de insegurança cada vez maior e pânico elemental, com total imprevisibilidade do futuro. A máquina do mundo deu pane, e os paradigmas dominantes não bastam para reparar o estrago universal. Parece que estamos todos a bordo de um Titanic perdido em alto mar, rumo ao desconhecido. Não são desgraças banais as que nos envolvem, mas prenúncios de colapso na pulsação do cosmos e no ritmo da natureza, e de incompetência no controle da Economia, do Direito, da Política e de todas as coisas humanas, inclusive as emoções e os padrões científicos, filosóficos e religiosos de interpretação do mundo e da vida. A natureza e a história fecham seu cerco ao homem em todos os países, e repetem a intimação da Esfinge: decifrem-me ou vos devoro.

A propósito do recente massacre de 77 pessoas na pacífica e bucólica Noruega, por um agente dentro do sistema, branco, nórdico, cristão, o professor de filosofia Denis Lerrer Rosenfield escreve um artigo impecável, acentuando nossa dificuldade em explicar o inexplicável, "talvez porque nossos parâmetros de compreensão do que foge à normalidade sejam muito estreitos" (artigo "Crime e mal", O Estado de S.Paulo, 1 de agosto de 2011). Disso se trata.

Vivemos tempos profundamente conturbados, nos quais o inexplicável ocorre em todas as áreas e nos faltam receitas intelectuais para equacioná-lo. Não seria o caso de revermos nosso inadequado modo de pensar para tentarmos entender as coisas estranhas que se passam, de modo a que não se repitam indefinidamente no futuro?

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*Ex-promotor de Justiça. Escritor e jornalista



 

 

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