Migalhas de Peso

Basuras

Confira as histórias por trás do lixo, seja como alvo dos miseráveis em busca de alimentos, como fonte de informações para jornalistas invasivos ou como matéria-prima para reciclagem.

4/8/2011

Basuras

Edson Vidigal*

Um pouco antes da meia-noite, sempre, se ouve vindo da rua lá embaixo o rangido. Um som agressivo como se fosse de alguma engenhoca a extrair dos vestígios do dia uma garapa absurda.

Quem não está acostumado demora a concluir que aquele barulho intenso a sufocar o sossego noturno e frio, muito frio, na minha rua provisória vem do caminhão que recolhe o lixo.

O caminhão que aprisiona e sufoca lá embaixo o silêncio da noite, conferi depois, ostenta um triturador, que me faz lembrar antigas cápsulas espaciais que os paulistas na gozação chamam ainda hoje de sputinik de baiano.

Na limpeza urbana, esse tipo de caminhão parece prático porque vai moendo o lixo no mesmo tempo em que é recolhido nas calçadas.

Bem antes da meia-noite, porém, logo assim que escurece, despontam céleres mulheres, homens e até crianças enfiando as mãos nos sacos de lixos e nas enormes lixeiras. Separam latas, garrafas, papéis. Buscam também coisas de comer.

As lixeiras das calçadas funcionam hoje nas cidades como o ponto de interseção entre o destino final dos restos dos que ainda podem e o começo do aproveitar pelos que ainda continuam não podendo nada.

Vagam em silêncio pelas sarjetas sob os pontos de lixo menos iluminados. Barulho só o do caminhão. Assim disfarçam, talvez, a vergonha de sendo gente agirem como se competissem com os bichos, os cães sem donos, os gabirus notívagos.

O lixo de uma casa é o maior revelador dos hábitos dos seus moradores.

Houve tempo em que a Veja destacava repórteres para fuçarem os lixos das casas na Península dos Ministros, em Brasília.

Uma vez acharam no lixo da casa do ministro do Planejamento de então três garrafas vazias, é claro, de Cutty Sark Blended, o uísque dos Kennedys. Juntaram com outros lixos de outras casas de ministros e produziram um escândalo.

Aquilo visto hoje até parece angelical se comparadas com algumas práticas desse jornalismo que se acredita investigativo hoje em dia, praticado, aliás, não só pela maioria dos tablóides na Europa como também por alguns não tablóides em si no Brasil.

Já está em vigor uma lei mandando acabar com os lixões, aqueles lugares um pouco distantes do centro das cidades.

Na sua segunda e última visita à ilha de São Luís, quando nem se falava que ele seria presidente, o doutor Tancredo foi levado por mim a conhecer o lixão do Sá Viana nos fundos da Universidade Federal, no Bacanga.

Éramos da Oposição ao regime, organizávamos um partido, o Partido Popular, para a transição democrática. A sua vinda era para me empossar na presidência regional, mas depois disso ainda ficamos com um tempo ocioso até embarcarmos no voo de volta a Brasília, no dia seguinte.

Inventei uma agenda de visita à Assembleia onde ele fez palestra sobre a conjuntura nacional para os deputados, palestra da qual não restaram sequer notas taquigráficas, e uma coletiva à imprensa, entrevista da qual restou apenas um discreto registro em algum jornal. No Maranhão naquele tempo, como ainda hoje, estava tudo dominado.

Foi assim que depois da Assembleia o futuro presidente da República foi ver no lixão dos fundos da Universidade meninos e mulheres disputando a pau e pedra restos de comida com os urubus em alvoroço. Comovido, o doutor Tancredo me disse nunca ter visto coisa igual na vida.

O lixo que, segundo a lei, passa a se chamar resíduo sólido pode deixar de ser o alvo noturno dos entocados da miséria e da fome ou a fonte de informações dos mercadores da privacidade alheia para ser matéria-prima em reciclagens de profissionais para grandes lucros.

Até a que essa bem-intencionada lei saia por inteiro do papel se impondo em novas realidades ainda continuaremos a ver isso tudo como nestas noites.

Ontem alguém encontrou numa lixeira quatro filhotes de cães, que nem eram vira-latas, ainda com vida. Vez em quando encontram também crianças, recém-nascidas, ainda com vida.

Coisas abjetas do ser humano. Pessoas nefastas que atiram na lixeira cães e crianças. A sorte é que sempre são achados ainda com vida. Ponto positivo para o pessoal da limpeza pública.

Não se tem notícia, graças a Deus, que algum desses achados tenha sido triturado no sputinik de algum caminhão rangedor que nem esse que toda noite, sufocando o silêncio nesta minha rua provisória, me excita as preocupações sobre as vidas e seus destinos e o lixo noturno das sarjetas.

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*Ex-Presidente do STJ e Professor de Direito na UFMA


 

 

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