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A apreensão do passaporte e a lei 12.403/11

A imposição de condições para a concessão do benefício da liberdade provisória ou para a revogação de prisão preventiva, embora não ofenda os princípios da presunção de inocência e da reserva legal, demanda devida fundamentação que justifique a necessidade da cautela, à luz do disposto no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal.

28/7/2011


A apreensão do passaporte e a lei 12.403/11

Gustavo Britta Scandelari*

A decisão do Superior Tribunal de Justiça, abaixo transcrita, trata da cautela da apreensão do passaporte em processo criminal, assim:

"HABEAS CORPUS. CRIME DE MOEDA FALSA. DIREITO DE APELAR EM LIBERDADE CONCEDIDO PELO TRIBUNAL A QUO, MEDIANTE RETENÇÃO DO PASSAPORTE. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA NECESSIDADE DA MEDIDA. RÉU COM FORTES VÍNCULOS NO DISTRITO DA CULPA, QUE VIAJOU AO EXTERIOR DURANTE A INSTRUÇÃO CRIMINAL, E NÃO DEMONSTRA INTENÇÃO DE SE FURTAR À APLICAÇÃO DA LEI PENAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA.

1. A imposição de condições para a concessão do benefício da liberdade provisória ou para a revogação de prisão preventiva, embora não ofenda os princípios da presunção de inocência e da reserva legal, demanda devida fundamentação que justifique a necessidade da cautela, à luz do disposto no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal.

2. A retenção do passaporte do Paciente, determinada pelo acórdão impugnado para permitir-lhe o apelo em liberdade, além de carecer de fundamentação concreta sobre sua necessidade, não encontra respaldo nas peculiaridades do caso concreto, mormente por se tratar de condenado que viajou ao exterior durante a instrução criminal, sem criar qualquer obstáculo à marcha regular do processo e nem foi demonstrado que pretende se furtar à aplicação da lei penal.

3. Habeas corpus concedido para que seja restituído ao Paciente o passaporte reclamado."

(STJ – HC 106839/AM – 5ª T. – Rel.ª Min.ª Laurita Vaz – DJe de 24.11.08)

Do voto da eminente Ministra Relatora, consta:

"Informam os autos que o Tribunal Regional da Federal da 1ª Região concedeu a ordem de habeas corpus em favor de M.F.M., ora Paciente, para revogar sua prisão cautelar decretada pela sentença que o condenou à pena de 04 anos e 06 meses de reclusão, em regime semi-aberto, como incurso no crime de moeda falsa. Entretanto, condicionou a concessão do benefício ao depósito do passaporte do Paciente em Juízo.

O Impetrante sustenta, em suma, que não há justificativa plausível para a condição, mormente porque o Paciente é cidadão libanês e por diversas vezes durante a instrução criminal se ausentou do país, sem qualquer embaraço à instrução criminal, e nunca demonstrou que pretende obstar a aplicação da lei penal. Pugna, assim, pela devolução do passaporte do Paciente, para que possa visitar sua mãe no Líbano.

O Ex. Min. Rel. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO votou no sentido de denegar a ordem porque os fundamentos trazidos pelo acórdão impugnado 'bastam para determinar o recolhimento do passaporte do réu, como forma de garantir a futura aplicação da lei penal, mormente quando já houve sentença condenatória'.

Peço vênia para divergir, diante das peculiaridades do caso concreto.

A jurisprudência dos Tribunais Superiores é pacífica no sentido de que a imposição de condições para a concessão do benefício da liberdade provisória ou para a revogação de prisão preventiva não ofende os princípios da presunção de inocência e da reserva legal.

Entretanto, deve existir razoabilidade nas restrições ao direito de ir e vir do réu em processo penal, com a devida fundamentação que justifique a necessidade da cautela, à luz do disposto no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal.

No caso, mesmo após o julgamento dos embargos de declaração, o Tribunal Federal a quo não fundamentou nem discorreu sobre a necessidade da retenção do passaporte do Paciente como condição para o benefício de apelar em liberdade, determinada quando da concessão do provimento urgente.

Ademais, ressaltou o próprio acórdão impugnado que 'não há registro nos autos de qualquer dificuldade para a localização do réu durante ou após a instrução criminal' (fl. 66), bem como que o Paciente permaneceu em liberdade durante toda a instrução criminal, tem ocupação lícita e residência fixa no distrito da culpa.

Com efeito, o Paciente mora no Brasil há dezessete anos, aqui trabalha, constituiu família, é pai de um filho brasileiro, além de já ter viajado ao exterior para visitar familiares durante a instrução criminal sem criar quaisquer obstáculos à marcha regular do processo ou demonstrar que pretende se furtar à aplicação da lei penal.

Ante o exposto, CONCEDO a ordem de habeas corpus para que seja restituído ao Paciente o passaporte reclamado.

É o voto" (destacamos)

A decisão é escorreita e está de acordo com a ordem jurídica constitucional e legal, mesmo tendo sido prolatada antes da Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011 – que inseriu, no Código de Processo Penal, um novo sistema de medidas cautelares pessoais.

As cautelares alternativas à prisão são salutares, eis que contribuem para reduzir significativamente o comum abuso de poder que se pratica quando se ordena a prisão provisória de alguém que poderia responder ao processo em liberdade, além de aliviar o brutal abarrotamento dos estabelecimentos prisionais e demais ergástulos públicos brasileiros. No entanto, a nova lei, por si só, não é o suficiente para se corrigirem as arbitrariedades. É de se esperar, da comunidade jurídica, uma mudança na cultura jurídica hoje vigorante, que ainda se caracteriza pelo ranço inquisitório.

Nessa medida, para a fundamentação da necessidade, da adequação e da proporcionalidade da decretação de medida cautelar com a apreensão do passaporte do acusado, não basta a simples menção aos requisitos legais, que estão previstos no art. 282, I e II, do CPP. Esse expediente é vedado em nosso país desde o Código Criminal do Império (16.12.1830), onde se lê que "nenhuma presumpção, por mais vehemente que seja, dará motivo para imposição de pena" (art. 36).

Renato Brasileiro de Lima, Promotor de Justiça em São Paulo, explica: "não se pense que as medidas cautelares diversas da prisão, por não implicarem a restrição absoluta da liberdade, não estejam condicionadas à observância dos pressupostos e requisitos legais. Pelo contrário. À luz da garantia da presunção de não culpabilidade e da própria redação do art. 282 do CPP, nenhuma dessas medidas pode ser aplicada sem que existam os pressupostos do fumus comissi delicti e do periculum libertatis, e desde que efetivamente necessárias ao caso concreto" (Nova prisão cautelar (de acordo com a Lei nº 12.403/11): doutrina, jurisprudência e prática. Niterói: Impetus, 2011, p. 38. Destacamos). Com Pacelli de Oliveira, tem-se que “as novas regras das cautelares pessoais, que surgem precisamente para evitar o excesso de encarcerização provisória, não podem ser banalizadas, somente justificando a sua imposição, sobretudo quando não for o caso de anterior prisão em flagrante, se forem atendidos os requisitos gerais previstos no art. 282, I e II, CPP, fundada, portanto, em razões justificadas de receio quanto ao risco à efetividade do processo” (Separata aos exemplares da 14ª edição e Comentários do Código de Processo Penal – Atualizações do Processo Penal, Lei 12.403 de 05 de maio de 2011, p. 7. Destacamos).

O Juiz de Direito em São Paulo, Guilherme Dezem, lembra que "o art. 282 estabelece os critérios de aplicação das medidas cautelares pessoais, fixando dois dos elementos da proporcionalidade, ou seja, necessidade e adequação: a) necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; e b) adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou do acusado. A proporcionalidade é o critério básico para a aplicação das medidas cautelares pessoais. Proporcionalidade que não é vista tão somente pelo critério do caso concreto, uma vez que a própria legislação estabeleceu alguns critérios já definidos de proporcionalidade" (Medidas cautelares pessoais: primeiras reflexões. In Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, ano 18, n. 223, p. 15-16, jun., 2011. Destacamos).

Que fique clara, aqui, a seguinte premissa: "é evidente que a retenção do passaporte do cidadão compromete o seu direito de ir e vir, pois, para ir ao exterior, deve submeter-se ao alvitre do juiz" (TORON, Alberto Zacharias. Retenção do passaporte do acusado: constrangimento ilegal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.8, n.88, p. 15, mar. 2000. Destacamos). A medida cautelar da apreensão do passaporte é socialmente nociva não quando estraga planos de viagens do indivíduo ao exterior, mas lá onde ela rouba do cidadão a possibilidade de cogitar tais planos. Aí, ela arrebenta a base da sociedade livre e democrática, que é o Estado de Liberdade. A pessoa fica proibida de imaginar sua saída do território nacional – e, às vezes, por tempo indeterminado. Não é à toa que se exigem motivos razoáveis e concretos para a decretação da medida. Eventual "possibilidade financeira" ou notoriedade do acusado, por óbvio, não se enquadram em tais exigências, caso contrário, qualquer réu, no Brasil, que tenha condições de pagar uma passagem de avião ao exterior ou que tenha um mínimo de popularidade deveria ser mantido preso dentro dos limites do território nacional tão logo o Ministério Público oferecesse denúncia em seu desfavor.

Recentemente, o STF reiterou o entendimento de que "a presunção de não culpabilidade prevalece até o momento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória" (STF – HC 106209/SC – 2ª T. – Rel. Min. Ayres Britto – DJe 10.6.11. Destacamos). O TJ/PR, em julgamento ocorrido após a entrada em vigor da lei 12.403/11, também manifestou preocupação em relação à compatibilização das medidas cautelares com o respeito ao princípio da presunção de inocência, ao decidir que "as novas disposições (...) a toda prova buscam seguir o direcionamento irrefutável do princípio da presunção da inocência e evitar de todo modo a segregação" (TJ/PR - HC 789.210-0 - 2ª CR - Rel. Des. Lidio José Rotoli Macedo - J. 07.07.2011. Destacamos). Com esses critérios em mente, indaga-se: seria proporcional cercear a liberdade de um cidadão que sequer foi julgado, que esteve o processo inteiro em liberdade e contra quem não existem quaisquer indícios concretos de que tenta ou pretende se evadir? A resposta é, evidentemente, negativa, e muitos de seus fundamentos estão consubstanciados na decisão que ora se comenta.

Finalmente, e mais especificamente em relação à lei 12.403/11, deve-se compreender o seguinte: a entrega do passaporte somente pode ser determinada como consequência da proibição de se ausentar da Comarca (CPP, arts. 319 e 320). Nota-se que o rol das medidas cautelares pessoais diversas da prisão, constante do art. 319, CPP, não contempla a entrega do passaporte. E ninguém poderá sustentar que tal rol não é taxativo. Ou seja: a entrega do passaporte não é uma medida cautelar alternativa à prisão. É por isso que tal providência está prevista em outro dispositivo – qual seja, o art. 320, CPP.

Guilherme de Souza Nucci, interpretando corretamente a nova lei, explica que o recolhimento do passaporte é, na realidade, uma decorrência da aplicação da medida cautelar de proibição de se ausentar da Comarca (CPP, art. 319, IV), pois, "não sendo permitido deixar o local onde vive, por óbvio, não cabe ao indiciado ou réu ausentar-se do país" (Prisão e Liberdade: as reformas processuais penais..., p. 88. Destacamos). Renato Brasileiro de Lima concorda: "para que a adoção dessa medida [a do art. 319, IV, CPP] não funcione na prática como uma mera advertência ao acusado, e objetivando assegurar sua operacionalidade e eficácia, o art. 320 do CPP prevê que a proibição de ausentar-se do País será comunicada pelo juiz às autoridades encarregadas de fiscalizar as saídas do território nacional, intimando-se o indiciado ou acusado para entregar o passaporte, no prazo de 24 horas" (Nova prisão cautelar (de acordo com a Lei nº 12.403/11): doutrina, jurisprudência e prática. Niterói: Impetus, 2011, p. 361. Destacamos). Desde a entrada em vigor da nova lei das cautelares, portanto, não poderá ser decretada, isoladamente, a apreensão do passaporte, sob pena de o acessório (apreensão do passaporte), tornar-se o principal (proibição de ausentar-se da Comarca) – algo inadmissível em Direito.

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*Advogado do Escritório Professor René Dotti, pós-Graduado em Direito Constitucional pela Unibrasil, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC/UFPR e mestre em Direito do Estado pela UFPR

 

 

 

 

 

 

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