Prisão domiciliar: a tendência de seu emprego estratégico na redução da superpopulação carcerária
Adel El Tasse*
Recentemente os noticiários retrataram uma senhora, diante de um ataque de uma cobra, em uma região de mata brasileira, que gritava para a imprensa e exigia justiça e que não dava mais para aceitar tamanha impunidade, como se possível fosse capturar cobras, interrogá-las e descobrir a responsável pelo ataque e, então, fixar-lhe talvez pena de prisão em alguma das fétidas cadeias brasileiras.
Em verdade, o grito de combate à impunidade pelo ataque da cobra demonstra claramente que o discurso anti-impunidade assumiu, na sociedade brasileira contemporânea, o papel que tinha o demônio na Idade Média, ou seja, o de ser abstrato, não palpável, mas que desperta pânico e com isso faz as pessoas aceitar as torturas, as prisões de inocentes, as condenações com provas frágeis e viciadas, enfim, uma série de atrocidades que ocorreram em nome do enfrentamento ao diabo no passado e que, de maneira preocupante, voltam a ocorrer em larga escala para combater a impunidade.
Evidente que nessa realidade é bastante difícil propor, por exemplo, redução de prisões, alteração da política de drogas, ou qualquer evolução no sistema no sentido de torná-lo menos punitivo e mais apto à real abordagem dos problemas sociais.
Inobstante a dificuldade existente para racionalizar os conflitos sociais e propugnar por efetivas medidas para sua minoração, felizmente ainda resistem, como sempre resistiram, lúcidas posições que não permitem que a sociedade seja entregue, novamente, às trevas.
Nesse sentido, destaque especial merece o redesenho que a legislação e a jurisprudência mais avançada vêm ofertando para a prisão domiciliar, historicamente reduzida a casos muito particulares e que hoje se apresenta como efetiva medida de aprisionamento cautelar e de cumprimento da pena privativa de liberdade, para fazer frente ao caótico problema da superpopulação carcerária.
Vale mencionar que os pensadores conservadores brasileiros, quando tratam do problema do cárcere, sempre gostam de referir aos Estados Unidos da América, como país desenvolvido, em que a pena privativa de liberdade é a central do sistema.
Esquecem-se, porém, de referir que a efetivação do encarceramento fica vinculada à expedição de atestado de vaga pelo diretor do estabelecimento, ou seja, caso não haja vaga, dentro do que estabelecem as convenções internacionais (cela individual ou, no máximo, dupla, condições de higiene, vagas para trabalho e estudo, entre outras), a execução da prisão fica suspensa ou se converte em aprisionamento domiciliar.
No Brasil, por outro lado, o que se observa é que o prazer nacional é decretar a prisão, sem saber exatamente o que fazer com a pessoa depois, o que é o grande responsável pelo quadro carcerário caótico existente no país.
O rompimento tem se dado, justamente, pela implementação de avanço na prisão domiciliar, quer sob o ponto de vista cautelar, quer como forma de cumprimento da pena privativa de liberdade.
A esse propósito, a recém editada lei 12.403 (clique aqui), de 4 de maio de 2011, que modifica o regime de cautelares no processo penal brasileiro, estabelece claramente que somente deve ser decretada a prisão processual quando as demais medidas cautelares se mostrarem frustradas para atingir os objetivos processuais, além de fixar o dever, em determinadas hipóteses, do magistrado preferir a prisão domiciliar à prisão comum.
Essa é a disciplina que a lei acima em destaque impõe ao novo artigo 308, do Código de Processo Penal:
Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:
I - pessoa maior de 80 (oitenta) anos;
II – extremamente debilitado por motivo de doença grave;
III – imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência;
IV - gestante a partir do 7° (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco.
Mais substancial, porém, é a corrente hermenêutica que vem sendo determinada pelo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, em que o encarceramento depende de vaga e a inexistência desta deve representar a substituição por prisão domiciliar.
O entendimento consolidado há muitos anos pelas Cortes Superiores já é no sentido de que a inexistência de casa do albergado, para cumprimento do regime aberto, não pode ser estabelecida em sentido prejudicial ao condenado, que não é o responsável por prover vagas no sistema punitivo estatal, porém, na atualidade, consolida-se a posição de que igual raciocínio deve ser empregado para a pena em regime semiaberto.
Ainda, no último dia 4 de junho, foi publicada decisão da 6ª turma do STJ, em que a Corte coloca, em manifesto, que a inexistência de vaga no regime semiaberto não pode importar manutenção da pessoa no regime fechado, quando já cumpriu o lapso temporal exigível para progressão:
HABEAS CORPUS. PENAL. PROGRESSÃO AO REGIME SEMIABERTO. IMEDIATA REMOÇÃO. INEXISTÊNCIA DE VAGA EM ESTABELECIMENTO COMPATÍVEL AO REGIME INTERMEDIÁRIO DETERMINADO PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO CRIMINAL. PRISÃO EM REGIME ABERTO OU PRISÃO DOMICILIAR. POSSIBILIDADE. 1. O Superior Tribunal de Justiça já firmou compreensão no sentido de que, tendo sido o paciente condenado a regime prisional semiaberto ou aberto ou lhe tendo sido concedida a progressão para o regime mais brando, constitui ilegalidade submetê-lo, ainda que por pouco tempo, a local apropriado a presos em regime mais gravoso, em razão da falta de vaga em estabelecimento adequado. 2. Ordem concedida para determinar a imediata remoção do paciente para o regime semiaberto ou, caso não haja vaga no estabelecimento adequado ao regime intermediário, que aguarde, sob as regras do regime aberto, até que surja vaga. Caso não haja vaga também no regime aberto, que aguarde em regime domiciliar1.
O relator do caso destacado, ministro OG FERNANDES, ao analisar a questão, rechaçou, de forma tranquila e incisiva, a argumentação de que a ausência de vagas em regime mais benéfico faria com que o condenado tivesse que ficar no mais gravoso a espera da abertura de vaga, ao externar: "Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça já firmou compreensão no sentido de que, tendo sido o paciente condenado a regime prisional semiaberto ou aberto ou lhe tendo sido concedida a progressão para o regime mais brando, constitui ilegalidade submetê-lo, ainda que por pouco tempo, a local apropriado a presos em regime mais gravoso, em razão da falta de vaga em estabelecimento adequado."
Assim, do conjunto da jurisprudência que se forma nas Cortes Superiores pode-se visualizar uma nova compreensão em torno do cumprimento da pena privativa de liberdade, qual seja, o de que a existência de vaga no regime específico a que se acha inserido o condenado é condição necessária para o encarceramento e sua inexistência não deve impor nem o cumprimento em regime mais severo, nem a espera interminável de vaga para eventualmente iniciar o cumprimento da pena, mas a execução em regime de prisão domiciliar.
O avanço representado por essa compreensão da matéria é significativo e pode ser importante propulsor para a redução da superpopulação carcerária, permitindo que o cumprimento da pena de prisão seja dotado da garantia às condições humanas essenciais.
Bem a propósito, convém mencionar que não se deve associar a pena privativa de liberdade com sofrimentos adicionais que não a própria limitação na capacidade de ir e vir da pessoa, de sorte que a prisão domiciliar bem pode cumprir esta função para condenados em que o crime praticado não esteja inserido no universo criminal em que o não recolhimento ao cárcere permita que a pessoa possa continuar a delinquir, como na hipótese das grandes quadrilhas especializadas em tráfico de drogas ou ações de extermínio.
Por outro lado, uma ação isolada na vida de uma pessoa socialmente integrada, não representativa de ameaça concreta para a coletividade, pode ter no aprisionamento domiciliar medida punitiva bastante efetiva, pois se de um lado sofre a pessoa com a sempre dolorosa restrição de sua liberdade, não fica submetida a processos de degradação inerentes ao cárcere e já infinitas vezes denunciados.
Há que se considerar com seriedade, no universo da sanção penal, os avanços tecnológicos experimentados nos últimos anos e que permitem fazer da prisão domiciliar, injustamente dotada de descrédito, o eixo central da execução da pena privativa de liberdade.
CLAUS ROXIN, ao analisar o desenvolvimento que deverá ser seguido pelo Direito Penal no atual século, trata da prisão domiciliar com entusiasmo: “pode-se imaginar a prisão domiciliar como a nova pena, atenuada frente a privação da liberdade, cujo controle não será nenhum problema graças aos modernos sistemas eletrônicos de controle. Esta sanção tem a vantagem de não custar nada, de não trazer consigo nenhum perigo de contaminação criminal e de dar forma mais humana à privação da liberdade, de qualquer forma, é sentida como grave2".
Esse conjunto de ideias não pode ser ignorado e, ao contrário, deve ser objeto de detida reflexão para impulsionar os avanços ao uso da prisão domiciliar, quer como medida cautelar de garantia do processo penal, na forma propugnada pena nova redação do Código de Processo Penal, quer como mecanismo de cumprimento da pena privativa de liberdade para os condenados em que o regime carcerário não se faça em especial necessário.
Conforme já destacado, o custo da prisão domiciliar para o Estado, uma vez implantado o sistema eletrônico de controle, passa a ser nulo, arcando o apenado com as suas despesas e permanecendo longe do meio corruptor carcerário.
Assim, os esforços dos Tribunais Superiores em ampliar e viabilizar a utilização da prisão domiciliar são extremamente positivos e corajosos em um momento em que a sociedade, imersa na interiorização do pânico anti-impunidade, associa a sanção criminal como aflição extrema e desumana.
Mas é justamente o momento de maior perigo para as liberdades que a genialidade humanista faz a sociedade evoluir, afinal convém relembrar, parafraseando ZAFFARONI, que nenhuma escola, centro jurídico ou de desenvolvimento humano tem o nome de Torquemada, Hitler ou Mussolini, mas são milhares, ao longo do planeta, que prestam homenagens a BECCARIA, WELZEL e todos os próceres da liberdade. No Brasil não se conhece o nome de nenhum ditador homenageado em casas de edificação do conhecimento humano, mas são inúmeros os locais que com honra são nominados de TOBIAS BARRETO, SOBRAL PINTO, EVANDRO LINS E SILVA, entre outros ardorosos defensores do humanismo.
E assim o é, a história não perdoa os seus traidores e estes são sempre os que embalados pelo discurso do pânico tentam fazer do ser humano um objeto de martírio e sofrimento. Podem até gozar de algum prestígio momentâneo, enquanto o discurso que os sustenta é interiorizado, mas a realidade é que o seu destino é tornarem-se símbolos de vergonha e exemplos do que pior a espécie humana é capaz de fazer.
Vale mais, como ABRAHAM LINCOLN, ter sempre em mente que "você pode enganar uma pessoa por muito tempo; algumas por algum tempo; mas não consegue enganar todas por todo o tempo", e, portanto, não imaginar que a mentira do Direito Penal super punitivo e cerceador das liberdades se sustentará por muito tempo, pois a humanidade sempre desperta e ao despertar sempre lembra de haver sonhado com o mesmo: Liberdade!
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1 HC 193394/SP. HABEAS CORPUS 2010/0229820-1. Relator: Ministro OG FERNANDES. Órgão Julgador - T6 - SEXTA TURMA. Data do Julgamento: 17/03/2011. Data da Publicação/Fonte: DJe 04/04/2011.
2 ROXIN, Claus, Dogmática penal y política criminal. Lima/Peru: Moreno, 1998, p.453-454. Livre tradução.
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*Procurador Federal. Professor de Direito Penal, em cursos de graduação e pós-graduação, em diferentes instituições de ensino superior. Professor nas Escolas da Magistratura Federal e Estadual do Estado do Paraná. Professor do Curso LFG/São Paulo. Coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais
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