Considerações sobre multas aplicadas pelo BACEN em operações de importação
Marcos Colares*
Graciema A. A. Galvão*
As primeiras decisões do BACEN, no sentido de aplicar pesadas multas1 com base em dispositivos da Lei nº 9.817, de 23.8.1999 (“Lei nº 9.817/99”), revogada pela atual Lei nº 10.755, de 3.11.2003 (Lei nº 10.755/03”), têm causado discussão no setor importador, seja pelo questionável mecanismo de apuração das multas previsto na lei, seja porque a atual política brasileira busca desonerar o setor de comércio exterior, ao passo que o que se verifica das primeiras decisões dessa Autarquia é exatamente o contrário.
A exposição de motivos que redundou na Lei nº 9.817/99 dispunha que o propósito de se estabelecer multa em operações de importação era o de: (i) equiparar o tratamento conferido a importações e exportações no que se refere aos adiantamentos e/ou atrasos em seus respectivos pagamentos; assim como, por outro lado, (ii) evitar que diferenciais de taxas de juros internas e externas e as condições financeiras especialmente favoráveis disponíveis no exterior para os produtores ou compradores estrangeiros pudessem resultar em desequilíbrio entre os importadores e a produção nacional.
Assim, referida Lei definiu que diante do não-pagamento de importação até 180 dias após o primeiro dia do mês subseqüente ao previsto para o pagamento na DI, o importador sujeitar-se-ia ao pagamento de multa diária, sob a modalidade de encargo financeiro, a ser recolhida ao BACEN. O legislador pretendeu que a multa compreendesse a remuneração obtida caso o importador aplicasse os reais correspondentes no mercado financeiro desde a data em que se verificou o atraso, deduzida a correção cambial, de forma a eliminar eventuais vantagens auferidas pelo importador através da arbitragem entre as taxas de juros internas e externas.
A partir de 1999, diante de uma nova conjuntura econômica que adotou o regime cambial flutuante e que buscou equilíbrio na variação de preços do mercado externo, houve a necessidade de modificações e ajustes na forma de cobrança da referida multa. Foi este o contexto da promulgação da Lei nº 10.755/03, que objetivou eliminar o ônus administrativo na cobrança de multas de valor reduzido e atenuar a onerosidade excessiva das multas aplicadas, não raro superiores ao valor da importação. Para tais fins, isentou de cobrança multas inferiores a R$ 1.000,00 (suprindo uma omissão da Lei nº 9.817/99, que não estabelecia valor mínimo para recolhimento da multa, o que provocou a obrigatoriedade de cobrança sistemática de quaisquer valores apurados), e estabeleceu que para a mesma hipótese de atraso de pagamento prevista na lei anterior, entre outras, a multa aplicada pelo BACEN terá o seu valor limitado a cem por cento do valor em reais equivalente à respectiva importação.
O legislador inovou, ainda, ao estabelecer que essa multa não se aplica: (i) aos pagamentos de mercadorias embarcadas no exterior até o dia 31.3.1997; (ii) aos pagamentos de importações de petróleo e derivados especificados pelo BACEN; (iii) aos pagamentos de importações efetuadas sob o regime de drawback e outros estabelecidos pelo Ministério da Fazenda; (iv) às importações cujo saldo de pagamento seja inferior a US$ 10.000,00 ou equivalente em moeda nacional; (v) aos pagamentos de importações de produtos de consumo alimentar básico, visando ao atendimento de aspectos conjunturais de abastecimento definidos pelo Ministério da Fazenda; e (vi) às importações, financiadas ou não, cujo pagamento seja de responsabilidade da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, suas fundações e autarquias, inclusive aquelas efetuadas em data anterior à publicação da Lei.
Some-se a estas a norma estabelecida no Regulamento do Mercado de Câmbio e Capitais Internacionais anexo à Circular nº 3.280/05 do BACEN, que limita a multa em questão a 0,5% do equivalente em reais ao valor em atraso da importação2, e tem-se um quadro normativo que poderia indicar uma mudança na mens legis em prol da desoneração das importações brasileiras, a partir da edição da Lei nº 10.755/03.
Por outro lado, o legislador perdeu a oportunidade de oferecer tratamento isonômico entre as operações de importação realizadas ainda na vigência da Lei n º 9.817/99 e as operações realizadas no curso da nova. O artigo 4º da Lei nº 10.755/03 estabelece que “para as importações com DI já registrada no Siscomex e com vencimento até o centésimo octogésimo dia contado da data de publicação desta Lei, sujeita-se, o importador, ao pagamento de multa diária, sob a modalidade de encargo financeiro, a ser recolhida ao Banco Central do Brasil, em conformidade com a legislação aplicável até a data de publicação desta Lei.” (grifamos)
Independentemente do caráter inconstitucional de que o artigo 4º da Lei nº 10.755/03 possa estar revestido, pois, em princípio, impede a retroatividade benéfica de lei posterior prevista no artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal de 19883, o BACEN tem aplicado o referido dispositivo legal para a formação de elevadíssimas multas por inadimplemento em operações de importação supostamente descobertas.
Além do princípio constitucional citado no parágrafo anterior, pode-se aduzir que esta orientação atinge também uma série de outros preceitos de direito interno e internacional. Cite-se, a título de exemplo, a regra, em nosso ordenamento, decorrente da garantia constitucional ao direito à propriedade privada4, que veda ao Estado o confisco de bens de particulares – expressa na Constituição Federal relativamente à arrecadação de tributos5 e quanto à matéria penal, vez que apenas excepcionalmente se admite o confisco dos produtos de crime6. Ora, uma multa que exceda o valor das importações sobre cujo atraso no pagamento incide (como é o caso da legislação em comento) reveste-se desse caráter confiscatório refutado pelo ordenamento brasileiro.
Outro aspecto digno de nota é o fato de que a aplicação da multa como prevista na legislação vigente contraria os princípios de Direito Administrativo da finalidade, proporcionalidade e razoabilidade.
O princípio da finalidade corresponde ao atendimento do objetivo para o qual a lei foi criada; conseqüentemente, utilizar uma lei como suporte para a prática de ato diverso da sua finalidade (no caso, desviar-se do propósito de sancionar o inadimplemento e ressarcir o dano resultante de tal inadimplemento) não é aplicar a lei, mas sim desvirtuá-la. Por tal motivo, os atos administrativos incursos neste vício – desvio de poder ou desvio de finalidade – são nulos.
Por sua vez, o princípio da razoabilidade objetiva aferir a compatibilidade entre os meios e os fins do ato administrativo, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas por parte da Administração Pública. Desnecessário reiterar que o meio utilizado, isto é, a multa aplicada, não se coaduna com sua finalidade, isto é, a obtenção da conduta desejada, a saber, a observância dos prazos de pagamento de importações.
Finalmente, o princípio da proporcionalidade estabelece que as competências administrativas só podem ser validamente exercidas em extensão e intensidade proporcionais ao que seja realmente demandado para o cumprimento da finalidade do interesse público. Em outras palavras, se o ato administrativo ultrapassar o necessário para atingir seu objetivo, estará eivado de ilegalidade e, portanto, se tornará passível de anulação.
Acrescente-se a isso o fato de que a ingerência do Poder Público nas condições contratuais pactuadas entre particulares (que deveriam ter a liberdade de aditar os prazos de pagamento contratualmente estipulados em operações de importação) representa uma ameaça ao direito constitucional ao livre exercício da atividade econômica7, e que, ao impor aos produtos importados cujo pagamento tenha sido efetuado em atraso uma multa que não se aplica ao atraso no pagamento de produtos nacionais, a legislação brasileira vai de encontro ao Princípio do Tratamento Nacional8 e a outros dispositivos do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – GATT 1994, firmado pelo Brasil, e teremos um quadro não só de questionabilidade da legislação em tela sob a ótica constitucional, como também sob a ótica do comércio internacional, situação francamente desfavorável às pretensões brasileiras de liderança mundial nesse cenário.
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1Estima-se que o somatório das condenações até a presente data gire em torno de R$ 4 bilhões.
2Item 3 da Subseção 1 da Seção 13 do Capítulo 12 do Título 1.
3“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. (...)”
4CF/88, art. 150, inc. IV.
5CF/88, art. 5º, inc. XXII
6Como é o caso da desapropriação de bens ligados ao tráfico de entorpecentes (CF/88, art. 243 § único).
7CF/88, art. 170 § único.
8Artigo III.4.
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*Advogados do escritório Pinheiro Neto Advogados
* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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