Embusteiros estrangeiros
Durval de Noronha Goyos*
Os estrategistas dos países hegemônicos vislumbraram essa perda de competitividade há mais de 20 anos. De fato, na Rodada Uruguai do GATT, lançada em 1986 e concluída em 1993, foi incluída na pauta das negociações a liberalização dos serviços legais. Na ocasião, os EUA e a União Europeia (UE) pretenderam a abertura dos mercados dos países em desenvolvimento, enquanto mantinham os seus fechados.
Desmascarada a posição hegemônica durante as tratativas, a questão não evoluiu no âmbito multilateral. Isso não impediu que os agentes governamentais dos EUA e do Reino Unido procurassem obter vantagens para o acesso ao mercado por seus provedores de serviços legais no âmbito bilateral.
Ao mesmo tempo em que lançavam tais iniciativas, mantinham os seus mercados fechados aos consultores jurídicos de outros países, principalmente daqueles em desenvolvimento. A principal barreira tem sido a horizontal: restrições à movimentação de advogados. É assim nos EUA e é assim na UE.
Escritórios brasileiros com operação na UE enviam advogados com dupla nacionalidade, uma delas europeia, para seus gabinetes no bloco. No Reino Unido, advogados brasileiros que desejam se qualificar no país devem tomar um número muito maior de exames do que aqueles vindos de outras regiões, em violação ao princípio da cláusula da nação mais favorecida do sistema multilateral de comércio.
Nos EUA, alguns Estados, como a Flórida, impedem que escritórios estrangeiros contratem advogados locais. As normas de imigração compõem também ali uma grande barreira ao estabelecimento de escritórios de países em desenvolvimento, como o Brasil.
Em algumas jurisdições estrangeiras, como no Reino Unido, os provedores de serviços jurídicos não mais são advogados, de acordo com os tratados internacionais de regência sobre a matéria, conforme já decidiu o próprio Conselho de Ordens da União Europeia (CCBE). Moldadas como bancos de investimentos, podem tais firmas ter sócios e prestadores de serviços não advogados.
A orientação profissional de tais organismos difere da advocacia e se aproxima daquela dos bancos de investimentos, que tantos prejuízos causaram à economia mundial manifestos na crise econômica e financeira de 2008, cujos efeitos persistem até hoje.
O estabelecimento de tais entidades no Brasil diretamente, ou mediante o uso de interpostas pessoas, ainda que advogados, não apenas constitui fraudes diversas, em violação ao Direito Penal pátrio, mas apresenta graves riscos de ordem pública.
Sem a qualificação e o compromisso com o ordenamento jurídico brasileiro, tais entidades confundirão o público consumidor apresentando-se como advogados, qualidade que não possuem. Mais ainda, poderão, como fazem mundo afora, instruir o crime organizado, a fraude fiscal institucionalizada, a fraude do mercado de capitais, os crimes financeiros, a corrupção e o desvio do foro natural brasileiro para o exterior, entre outras anomalias.
A situação se apresenta tanto mais grave porque a OAB tem uma excelente regulamentação a permitir o funcionamento do consultor em direito estrangeiro, há mais de dez anos, outorgada unilateralmente, bem como a regular de maneira equilibrada e não discriminatória a qualificação de advogados estrangeiros no Brasil. Assim, o uso de subterfúgios para fraudar
a ordem jurídica doméstica, dramático para advogados, é indicativo das piores intenções.
Algumas vozes pouco esclarecidas no Brasil acham que o fenômeno é uma manifestação da globalização. Tais pessoas não enxergam que, nos países dessas organizações, a chamada globalização não é possível, pelo protecionismo institucionalizado, pois valem apenas os próprios interesses. Mais ainda, não vislumbram a ameaça enorme que se apresenta à ordem pública brasileira.
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*Advogado do escritório Noronha Advogados. Foi representante do governo brasileiro para as negociações de serviços na Rodada Uruguai do GATT
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