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A banalização do dano moral

Em que pese não houvesse no ordenamento jurídico pátrio, antes de 1988, qualquer previsão acerca dos danos de natureza moral, a sua existência e necessidade de reparação já eram vastamente defendidas pela melhor doutrina e aceitas pelas Cortes nacionais.

12/5/2011

A banalização do dano moral

Marina Pereira Santos*

I) Introdução

Em que pese não houvesse no ordenamento jurídico pátrio, antes de 1988, qualquer previsão acerca dos danos de natureza moral, a sua existência e necessidade de reparação já eram vastamente defendidas pela melhor doutrina e aceitas pelas Cortes nacionais.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (clique aqui), o dano moral foi formalmente reconhecido no complexo normativo brasileiro, porquanto consagrado no artigo 5º, incisos V e X, da Lei Maior1.

A partir desse explícito reconhecimento, aliado à garantia constitucional de acesso ao Poder Judiciário2, observou-se um grande aumento no número de ações judiciais visando a reparação de danos de dada natureza – o que cresceria ainda mais com o advento do atual Código Civil (clique aqui), em vigência desde 20033,4; além de diversas outras leis específicas de temas diversos que determinam a necessidade de reparação de qualquer dano ocasionado, inclusive o de ordem moral, seguindo a ordem constitucional.

Tem-se, pois, que a maior garantia de acesso ao Poder Judiciário conferida pela Constituição de 1988, aliada à conscientização da população no sentido de buscar e lutar por seus direitos, repercutiu de forma direta no Poder Judiciário, tanto quantitativamente, diante do enorme do acúmulo de ações ajuizadas; como na falta de harmonia jurisprudencial, dada a grande disparidade entre os distintos valores fixados judicialmente a título de reparação de danos morais.

Claro está que o direito de ação por danos morais é indiscutível. Mas o que se entende juridicamente por dano moral?

II) Conceito

O dano moral pode ser considerado como uma lesão de cunho não-patrimonial capaz de abalar a honra subjetiva do outro sujeito, afetando o seu ânimo psíquico e intelectual, ocasionando-lhe uma dor intensa, um sofrimento que foge à normalidade.

Segundo Maria Helena Diniz, o dano moral é uma "lesão a um interesse que visa a satisfação ou gozo de um bem jurídico extrapatrimonial contido nos direitos da personalidade (...) ou nos atributos da pessoa5".

Dois princípios estão intrinsecamente relacionados ao tema, o da razoabilidade e da proporcionalidade, pois um mero aborrecimento, dissabor, mágoa ou irritação do cotidiano não é capaz de configurar dano moral e, ainda, quando este restar configurado, o valor deve ser proporcional à dor causada, não podendo de maneira nenhuma gerar enriquecimento ilícito, o que é expressamente vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro.

O dano moral deve ser claro e efetivo, não podendo enquadrar-se em uma pequena contrariedade à qual todos estão sujeitos no dia a dia, e o que se deve buscar efetivamente é a compensação do sentimento ocasionado quando o sujeito for agredido moralmente.

III) A busca pelo ganho fácil

Ao lado de casos nos quais o pleito é legítimo, existem inúmeros casos abusivos, que degradam as relações sociais.

De um modo geral, as pessoas são incentivadas a buscar o Poder Judiciário para a reparação de supostos danos morais percebidos em razão de qualquer e banal divergência (como um descumprimento contratual, por exemplo), ao invés de recorrerem ao litígio processual quando realmente viverem situações que ensejam dano moral.

Por isso muito se fala em uma "indústria do dano moral", na qual as pessoas buscam o Judiciário como se fosse um jogo de loteria, numa ânsia desenfreada por auferir ganhos fáceis.

A facilidade em postular em juízo sem dispêndio financeiro, sobretudo no âmbito dos Juizados Especiais, nos quais em determinadas circunstâncias sequer é necessário o patrocínio processual por advogado, além da impunidade pelas ações infundadas acabam por incentivar o crescente número de ações.

IV) Conclusão

Necessário, então, que se tornem pacíficas a doutrina e jurisprudência acerca da caracterização e da quantificação do dano moral, que haja conscientização social a respeito do assunto e, ainda, que os magistrados comecem a enquadrar os comportamentos indevidos como litigância de má-fé (oportunidade em que a parte que utiliza indevidamente o Judiciário deverá indenizar a outra parte e arcar com as custas processuais e honorários advocatícios, conforme o previsto nos artigos 16 a 18 do Código de Processo Civil) a fim de reduzir o exacerbado número de ações abusivas visando o enriquecimento ilícito com fulcro em infundados pleitos de reparação por danos morais que sobrecarregam o nosso Judiciário.

Vale lembrar que, nesse sentido, o abuso da máquina do Judiciário vem gerando demora na prestação jurisdicional, o que prejudica aqueles que efetivamente têm direitos devidos a serem apreciados, além dos gastos que representam para o Estado e desgastes psicológicos dos envolvidos na lide, aí incluso o magistrado, que deverá fazer uma análise subjetiva do fato a ser examinado.

Enfim, conclui-se que a busca pela vantagem indevida acaba por banalizar um instituto tão importante e que demorou tanto tempo para ser reconhecido pelo nosso ordenamento jurídico.

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1 Art. 5º da Constituição Federal de 1988: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (...)".

2 Vide art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal de 1988.

3 Art. 186 do Código Civil: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

4 Art. 927 do Código Civil: "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".

5 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 7: Responsabilidade Civil, 17ª edição, São Paulo: Saraiva, 2003.

______________

*Advogada da área cível do escritório Almeida Advogados

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