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A taxa de juros aplicável aos mútuos entre sociedades à luz do nCC

O presente artigo propõe-se a analisar as recentes alterações introduzidas pelo novo Código Civil, no que diz respeito à taxa de juros aplicável aos contratos de mútuo entre pessoas jurídicas não financeiras. São consideradas "pessoas jurídicas não financeiras" aquelas que não integram o Sistema Financeiro Nacional.

27/3/2003

A taxa de juros aplicável aos mútuos entre sociedades à luz do novo Código Civil

Walter Douglas Stuber

Marcos Botter*

O presente artigo propõe-se a analisar as recentes alterações introduzidas pelo novo Código Civil – NCC (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), que revogou o Código Civil anterior (Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916), no que diz respeito à taxa de juros aplicável aos contratos de mútuo entre pessoas jurídicas não financeiras. São consideradas "pessoas jurídicas não financeiras" aquelas que não integram o Sistema Financeiro Nacional1.

1. Da natureza jurídica do mútuo

Seguindo os dispositivos legais que já haviam sido consagrados em nossa legislação pelo Código Civil anterior, os artigos 579 a 592 do NCC prevêem duas espécies de empréstimos, quais sejam o comodato e o mútuo.

O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis, e perfaz-se com a tradição do objeto. Coisas não fungíveis são as que não podem ser substituídas por outras do mesmo gênero, qualidade e quantidade, como, por exemplo, um quadro de Picasso.

O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis, como é o caso do dinheiro, no qual o mutuário (devedor) é obrigado a restituir ao mutuante (credor) o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade.

Dado o caráter pecuniário do empréstimo entre pessoas jurídicas, pode-se concluir que este constitui-se numa operação de mútuo. E, conforme consta expressamente do NCC, destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos os juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder àqueles previstos no artigo 406 do NCC, sobre o qual discorreremos a seguir.

2. Dos aspectos legais relativos à taxa de juros

O Código Civil anterior determinava, em seu artigo 1.062, que os juros devidos por força de lei, quando não convencionados, seriam de 6% ao ano, inexistindo tal limitação nos casos em que as partes mencionassem no contrato a taxa de juros a ser utilizada.

Por sua vez, o artigo 1º do Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933 (Lei de Usura) proibia a estipulação de taxa de juros superiores ao dobro da taxa legal, ou seja, independentemente da existência ou não de previsão contratual, esta taxa não poderia ser superior a 12% ao ano, sob pena de ser considerado nulo o contrato, além das penalidades previstas na própria Lei da Usura. A Lei de Usura vedava a capitalização de juros (anatocismo), admitindo, todavia, a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta-corrente de ano a ano.

Essa sistemática foi alterada pelo NCC, que disciplinou a matéria, em seu artigo 406, como segue:

"Artigo 406 - Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional."

Em razão de o artigo 406 do NCC prever a sua regulamentação por norma relativa ao "pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional", cumpre-nos analisar o disposto no Código Tributário Nacional – CTN (Lei nº 5.172, de 25 de dezembro de 1966).

Nesse sentido, o parágrafo 1º do artigo 161 do CTN estabelece que o crédito não integralmente pago no vencimento será acrescido de juros de mora, calculados à taxa de 1% ao mês, nos casos em que a lei não dispuser de modo diverso. Diante disso, a questão restou aparentemente solucionada no sentido de que a taxa de juros deveria ser aplicada à razão de 12% ao ano.

Posteriormente, com a edição do artigo 13 da Lei nº 9.065, de 20 de junho de 1995, e reedições do dispositivo que culminou no artigo 30 da Medida Provisória nº 2.176-79, de 23 de agosto de 2001 (posteriormente convertida na Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002), a taxa de juros moratórios dos tributos devidos à Fazenda Nacional passou a ser equivalente à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente2.

Muito se discutiu a respeito da aplicabilidade ou não da taxa SELIC como índice de apuração dos juros legais, uma vez que, além de impedir o prévio conhecimento dos juros, posto que é publicada mensalmente, esta taxa abrange, não só os juros propriamente ditos, como também a correção monetária do período.

Entretanto, por ser a aplicação da taxa SELIC expressamente prevista na legislação federal para o pagamento de impostos federais em atraso, somos da opinião de que esta taxa deverá ser considerada pelas empresas como limitadora dos juros contratuais, atendendo-se, desta forma, o disposto no artigo 406 do NCC3.

Interessante salientar, ainda, que o artigo 591 do NCC permite agora a capitalização anual dos juros, no caso de mútuos.

3. Das instituições financeiras

As operações de mútuo realizadas por instituições financeiras, assim entendidas como aquelas que integram o Sistema Financeiro Nacional, não estão sujeitas à Lei de Usura e são regidas por regras próprias, estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional. Consoante a Súmula 596, de 15 de dezembro de 1976, do Supremo Tribunal Federal (STF), as disposições da Lei da Usura não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integrem o Sistema Financeiro Nacional.

Posteriormente, ao dispor sobre o Sistema Financeiro Nacional, o parágrafo 3º do artigo 192 da Constituição Federal de 1988 (CF) determinou que as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderiam ser superiores a 12% ao ano. Segundo esse mesmo dispositivo constitucional, a cobrança acima desse limite seria conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos em que a lei determinasse.

A aplicabilidade desse dispositivo constitucional causou controvérsia, posto que o caput do mesmo artigo 192 da CF previa que o Sistema Financeiro Nacional seria regulado por lei complementar, a qual até hoje não foi trazida ao ordenamento jurídico brasileiro. Não existe, portanto, definição legal de "taxa de juros real".

Há quem entenda que, pelo fato de o mencionado parágrafo 3º do artigo 192 da Constituição Federal possuir um caráter de norma autônoma, este não se subordina ao caput do artigo, de forma que os seus dispositivos deveriam ser aplicados de forma imediata4.

Em sentido contrário, entretanto, manifestou-se a doutrina de forma majoritária5, com a qual concordamos.

Nesse sentido, entendemos que: (i) com base na Súmula 596 do STF, não se aplicam os dispositivos da Lei da Usura às operações realizadas por instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional; e (ii) por conta da não edição, até o presente momento, da lei complementar prevista em seu próprio caput, não se aplica às referidas operações o disposto no parágrafo 3º do artigo 192 da CF.

4. Aspectos tributários

De maneira geral, os juros cobrados num contrato de mútuo devem ser coerentes com a necessidade de remuneração da mutuante, de maneira que a mutuante possa, mais tarde, fazer frente às suas obrigações com terceiros.

Assim, além da limitação da taxa de juros ao valor da taxa SELIC, caso o passivo de uma determinada pessoa jurídica (Empresa "A") a esteja obrigando a encargos de variação cambial (sendo o valor do empréstimo expresso em dólares norte-americanos) mais uma taxa de juros praticada no mercado financeiro internacional (como é o caso da taxa Libor), se a Empresa "A" conceder um empréstimo que lhe traga uma remuneração inferior a esses encargos, a diferença entre os juros pagos e recebidos poderá ser considerada pelas autoridades fiscais como indedutível para fins da determinação do lucro real, por não constituir uma despesa usual e necessária à manutenção da fonte produtiva.

Nesse sentido manifestou-se o do 1° Conselho de Contribuintes (Acórdão nº 103-9.507/89):

"ENCARGOS FINANCEIROS DE EMPRÉSTIMO REPASSADO - Não são dedutíveis do lucro da repassadora os encargos financeiros atinentes às parcelas de empréstimos repassados, se a repassadora não exigir das recebedoras dos repasses o ressarcimento dos ônus na proporção dos capitais repartidos."

Dessa forma, a limitação imposta pelo artigo 406 do NCC deve ser observada em conjunto com os demais direitos e obrigações da pessoa jurídica. Em se tratando de um mútuo passivo, assim entendido como aquele em que a pessoa jurídica recebeu dinheiro e, consequentemente, assumiu a obrigação de restituí-lo ao credor, há que se observar as taxas de juros que a pessoa jurídica impõe em seus contratos ativos.

Sendo ativo o mútuo, ou seja, se a pessoa jurídica emprestou dinheiro, tendo o direito de vê-lo restituído pelo devedor, devem ser observadas as taxas a que a pessoa jurídica encontra-se obrigada em seus contratos passivos.

Outra questão que deve ser observada adicionalmente à limitação imposta pelo artigo 406 do NCC é a relativa aos preços de transferência (transfer pricing). Com efeito, o artigo 22 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, determinou que os juros pagos a pessoa jurídica no exterior, considerada vinculada, somente serão dedutíveis, na apuração das bases de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), até o limite da taxa Libor, acrescida de 3% ao ano, calculados proporcionalmente em função do período a que se referirem os juros6.

Da mesma forma, nos casos de mútuo ativo, deverá a empresa brasileira reconhecer, para fins dos mencionados tributos, uma receita mínima correspondente à taxa Libor, acrescida de 3% ao ano.

Nos casos de empréstimos em moeda estrangeira, em que a taxa de juros contratada é registrada no Banco Central do Brasil (BACEN), não se aplica o disposto acima, prevalecendo nessa hipótese as taxas normalmente aceitas e praticadas no mercado financeiro internacional.

5. Conclusão

Diante de todo o exposto, concluímos que, nos contratos de mútuo firmados entre pessoas jurídicas não financeiras, recomenda-se que a taxa de juros seja estipulada no próprio contrato. Em qualquer hipótese, tenham sido ou não os juros estipulados no contrato de mútuo, estes ficarão sempre limitados à taxa SELIC do período, por força do disposto no artigo 591 do NCC.

Do ponto de vista tributário, a limitação imposta pelo artigo 406 do NCC deve ser observada em conjunto com a necessidade de remuneração da mutuante, de maneira que a mutuante possa fazer frente às suas obrigações com terceiros.

Além disso, nos casos de mútuo com pessoas jurídicas consideradas vinculadas no exterior, a taxa de juros poderá implicar em ajuste de transfer pricing nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.

Os mútuos são operações legítimas e eficazes, que garantem a transferência de recursos financeiros entre pessoas jurídicas não financeiras e deverão continuar sendo amplamente praticadas no Brasil e no exterior, sempre respeitados os aspectos e as limitações aqui comentados.

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1. Integram o Sistema Financeiro Nacional as instituições financeiras ou a elas equiparadas: bancos múltiplos; bancos comerciais; bancos de investimento; bancos de desenvolvimento; sociedades de crédito, financiamento e investimento; sociedades de crédito imobiliário; companhias hipotecárias; agências de fomento; sociedades de arrendamento mercantil; sociedades de títulos e valores mobiliários; sociedades distribuidoras de títulos e valores mobiliários; e sociedades corretoras de câmbio.

2. As taxas SELIC relativas aos meses de janeiro e fevereiro de 2003 são de 1,97% e 1,83%, respectivamente. Ou seja, a taxa SELIC tem oscilado sempre acima de 1% ao mês.

3. O fato de a aplicação da taxa SELIC poder resultar em juros superiores a 12% ao ano não afronta o mencionado no parágrafo 3º do artigo 192 da Constituição Federal, uma vez que esse dispositivo constitucional refere-se tão somente aos contratos firmados por empresas integrantes do Sistema Financeiro Nacional e sequer chegou a entrar em vigor, pois depende de uma lei complementar que ainda não foi editada.

4. Nesse sentido, opina o professor José Afonso da Silva, in "Curso de Direito Constitucional Positivo", decima sexta edição, página 801: "Se o texto, em causa, fosse um inciso do artigo, embora com normatividade formal autônoma, ficaria na dependência do que viesse a estabelecer a lei complementar. Mas, tendo sido organizado num parágrafo, com normatividade autônoma, sem referir-se a qualquer previsão legal ulterior, detém eficácia plena e aplicabilidade imediata."

5. Assim, por exemplo, dispôs o professor Celso Ribeiro Bastos, in "Comentários à Constituição do Brasil", 7º volume, capítulo IV, página 444: "Não há qualquer vislumbre de procedência na argumentação de que, por constar de parágrafo próprio, a fixação dos limites dos juros reais também não estivesse sujeita á disposição preambular do artigo. Este é um todo complexo que decompõe-se em cabeça, parágrafos, incisos e alíneas. Mas, como partes de um todo, quaisquer que sejam esses preceitos, não importando a sua categoria ou qualificação, todos subordinam-se à regra fundamental contida no caput. Não há, portanto, uma autonomia do parágrafo a ponto de poder colocá-lo em conflito com o preceito maior que o encabeça."

6. O conceito de "taxa Libor" para fins de transfer pricing é a taxa de juros oferecida no Mercado Interbancário de Londres (London Interbank Offered Rate) para depósitos em dólares norte-americanos, pelo prazo de seis meses.

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*sócio fundador e advogado associado da Amaro, Stuber e Advogados Associados.

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