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“Bafômetro”, intervenções corporais e direitos fundamentais – Parte I

Dizíamos na primeira parte deste artigo que tem sido dada uma incabível elasticidade à norma constitucional sobre o direito de permanecer calado, no sentido de que ela isentaria o réu de colaborar para a formação de prova contra si.

16/6/2005


“Bafômetro”, intervenções corporais e direitos fundamentais – Parte I

José Barcelos de Souza*

Nosso velho Código de Processo Penal, há mais de meio século, já determinava, no art. 186, que o juiz advertisse o réu, ao início de seu interrogatório, de que não estava obrigado a responder às perguntas que lhe fossem feitas. Mas com o esclarecimento de que seu silencio poderia ser interpretado em desfavor de sua defesa. Esse preceito se aplicava também ao interrogatório na polícia, mas por muito tempo foi em geral ignorado, o que mostra a falta que faz a assistência de um advogado a quem é alvo de uma investigação.

Pois bem. A Constituição vigente elevou aquele direito ao silêncio à categoria de norma constitucional, inscrita no inciso LXIII do art. 5º, sem, porém, a inclusão daquela advertência. Entende-se, por isso mesmo, que não mais poderia ser feita. E recente lei ordinária já retirou aquele acréscimo que estava no Código de Processo.

É claro que aquele direito constitucional de permanecer calado se aplica a qualquer outro ato em que, a exemplo do interrogatório judicial ou policial, possa incidir, como é o caso da reprodução simulada do fato, também dita reconstituição do crime, e da acareação. Mas tem sido dada na doutrina uma incabível elasticidade à norma constitucional sobre o direito de permanecer calado, para entender que ela compreende também um direito de não contribuir o acusado ativamente para a formação de prova contra si. Isso decorreria também do princípio nemo se detegere tenetur (isto é, ninguém é obrigado a se acusar). Descabe, porém, invocar esse princípio, que engloba, é certo, o do direito ao silêncio, mas que só nessa parte foi elevado a preceito constitucional. Já existe, todavia, uma decisão do Supremo Tribunal Federal, a meu ver equivocada, no sentido de que assiste ao réu, por força do mencionado princípio nemo se, o direito de não fornecer padrões gráficos (será que vão pôr isso na súmula?) para comparação em exames periciais.

É verdade que tenho sustentado assim numa palestra e em entrevista à conhecida Rádio Itatiaia que, no estado atual de nossa legislação, até que assiste ao cidadão o direito de negar-se a se submeter a exames invasivos, ou a colaborar para provas, a não ser passivamente, como na prova de reconhecimento por pessoas ou no exame simplesmente clínico. Isso não por aquele fundamento do direito ao silêncio, mas por força do princípio da legalidade, visto que a Constituição dispõe, no inc. II do art. 5, que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, sendo certo que não temos, para fins de processo, lei própria impondo a obrigação e regulando os exames.

Dir-se-á que é a mesma coisa, que tanto faz como fez. Não é assim, porém. No primeiro caso, o direito da pessoa não poderia ser alterado senão por nova Constituição; no outro, de falta de lei impondo a obrigatoriedade do exame, bastará elaborar a lei.

E a falta de lei específica pode favorecer a legião de motoristas irresponsáveis que andam matando até pedestres nas calçadas. E também aqueles que podem ser processados pelo delito de embriaguez ao volante. Ou pelo crime militar de “embriaguez em serviço”.

É certo que um acórdão do Superior Tribunal de Justiça proclamou que mesmo o exame pericial não é essencial, porque a situação de embriaguez poderia ser comprovada por outros meios. Mas pode faltar uma boa prova, como a testemunhal. E o juiz poderá não se contentar, para proferir sentença condenatória, com um exame visual, ou “exame observacional pouco elucidativo, sem contar, se não com um tranqüilizador exame de laboratório, pelo menos com um laudo pericial.

Voltaremos ao assunto, ainda novo em nosso Direito, com a parte final deste artigo, em que também diremos alguma coisa sobre o uso do alcoômetro, ou etilômetro, popularmente conhecido como “bafômetro”, que ninguém pode ser obrigado a usar.
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*Artigo publicado no jornal O Tempo – edição de 22 de março de 2005
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*Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Diretor do Departamento de Direito Processual Penal do IAMG - Instituto dos Advogados de Minas Gerais








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