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Da proibição de patentes relativas a medicamentos destinados ao combate da Aids

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, em reunião realizada no dia 1º de junho de 2005, aprovou, por unanimidade, o Projeto de Lei nº 22/2003 (“Projeto”), de autoria do Deputado Roberto Gouveia (PT-SP), que inclui entre as matérias não patenteáveis, previstas na Lei 9.279/96 – Lei da Propriedade Industrial, “a invenção de medicamento para prevenção e tratamento da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida – SIDA/AIDS e de seu processo de obtenção.”

13/6/2005


Da proibição de patentes relativas a medicamentos destinados ao combate da Aids

Mauro J.G. Arruda*

Márcio Junqueira Leite*

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, em reunião realizada no dia 1º de junho de 2005, aprovou, por unanimidade, o Projeto de Lei nº 22/2003 (“Projeto”), de autoria do Deputado Roberto Gouveia (PT-SP), que inclui entre as matérias não patenteáveis, previstas na Lei 9.279/96 – Lei da Propriedade Industrial, “a invenção de medicamento para prevenção e tratamento da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida – SIDA/AIDS e de seu processo de obtenção.”

O Projeto tem como justificativa ampliar o acesso ao tratamento para os mais de 600.000 (seiscentos mil) portadores do vírus da AIDS no Brasil. Entretanto, caso venha a ser aprovado na forma em que está atualmente redigido, poderá ter um efeito inverso, além de gerar graves conseqüências políticas para a imagem do Brasil no âmbito internacional.


I. - As Patentes como estímulo ao desenvolvimento tecnológico


Em primeiro lugar, é importante observar que não é correta a assertiva de que as patentes seriam instrumentos para a manutenção de “exorbitantes preços dos medicamentos” como aduz o autor do projeto em sua “justificação”. Na realidade, é a existência das patentes que estimula os inventores e as empresas a despender vultosas somas em investimentos e pesquisas na busca da solução para os males que assolam a humanidade. Quando essas pesquisas resultam em um produto novo e revolucionário, a Patente garante o retorno ao inventor e ao empresário, como ocorre em qualquer tipo de investimento.


O Estado confere tal proteção aos inventores e às empresas em contrapartida ao aporte tecnológico que fazem à coletividade, em estímulo à produção de inventos e à obtenção de novas tecnologias, sempre com limitação de tempo e a necessidade do preenchimento de certos requisitos. Há assim, um ganho tanto para os inventores e as empresas que, com a exclusividade de exploração dos seus inventos, recuperam os gastos despendidos em pesquisas e desenvolvimento, como para a sociedade, que, além de se beneficiar da invenção, poderá explorá-la livremente após a expiração da patente.

Caso o inventor não pudesse recuperar o seu investimento através da patente, certamente não haveria interesse na pesquisa e no desenvolvimento de novos medicamentos, causando sérios prejuízos para a sociedade.

II. - Da equivocada premissa de que partiu o Projeto


Por ser um mecanismo de restrição à concorrência, a patente deve atender à sua função social. Assim, como qualquer direito, a patente está, em tese, sujeita à limitação constitucional ao direito de propriedade, ainda que não exista nenhum abuso por parte de seu titular.


Na justificação do Projeto, aduz o seu autor que “o exame da Lei nº 9.279/96 (Lei da Propriedade Industrial) leva à conclusão que as proteções conferidas, direta ou indiretamente, a inventor de produto ou processo, nos artigos 42, 44, 68, 69, 73 em dispositivos dispersos são tão amplas que, em muitos casos, podem levá-lo a praticar abuso econômico ou comerciais com o amparo da própria lei(sem ênfase no original).

Não observou o legislador, contudo, que a legislação já previu os mecanismos necessários e eficientes para combater os possíveis abusos, quer econômicos, quer comerciais, que venham a ser praticados pelo titular da patente. Trata-se do instituto da licença compulsória, previsto nos artigos 68 a 74 da Lei da Propriedade Industrial, bem como no artigo 24, inciso IV, alínea “a” da Lei nº 8.884/94 (“Lei Antitruste”).


A licença compulsória de uma patente consiste, em síntese, na possibilidade da sua exploração ser feita por terceiro, sem a anuência do seu titular, se ficar caracterizada a prática de abuso de direito ou abuso do poder econômico, em razão da sua não exploração no Brasil, do não abastecimento satisfatório do mercado, ou, ainda, em casos de emergência nacional ou interesse público.


Tendo em vista a inexistência de definição na Lei da Propriedade Industrial, o Decreto Presidencial nº 3.201/99, editado especialmente para essa finalidade, qualificou a “emergência nacional” como “o iminente perigo público, ainda que em parte do território nacional”, enquanto que “interesse público” seriam “os fatos relacionados, dentre outros, à saúde pública, à nutrição, à defesa do meio ambiente, bem como aqueles de primordial importância para o desenvolvimento tecnológico ou sócio-econômico do País” (destacamos).

Tal decreto foi posteriormente alterado pelo Decreto Presidencial nº 4.830, de 4.9.2003, editado para se beneficiar dos preceitos da Declaração Ministerial de Doha relativa ao Acordo TRIPs1 e a Saúde Pública de 2001, da Organização Mundial do Comércio. O artigo 2º do referido decreto estabelece que “Poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória de patente, nos casos de emergência nacional ou interesse público, neste último caso somente para uso público não-comercial, desde que assim declarados pelo Poder Público, quando constatado que o titular da patente, diretamente ou por intermédio de licenciado, não atende a essas necessidades.”

Depreende-se, assim, que, embora alguns preceitos legais sejam passíveis de questionamento, a licença compulsória é o instrumento destinado especificamente a punir os eventuais abusos cometidos pelo titular da patente, bem como a garantir o abastecimento de produto patenteado em casos de emergência nacional ou interesse público, sempre de modo a adequar os direitos do titular da patente com a sua função social.

Contudo, a implementação da licença compulsória requer o devido processo legal e o cumprimento de alguns requisitos, como (i) a comprovação consistente dos abusos cometidos pelo titular da patente; (ii) a prova da capacidade técnica e econômica pelo terceiro que desejar explorar o objeto da patente (no caso de abuso de direito ou abuso de poder econômico); e (iii) a justa remuneração do titular da patente.

Ocorre que, desprezando os dispositivos legais que garantem uma flexibilização de garantias constitucionais, o autor do Projeto, em uma postura radical, optou simplesmente por tolher os direitos daqueles que trabalham no desenvolvimento de medicamentos destinados à prevenção ou combate à AIDS, tornando-os “matéria não patenteável”.

Dada a relevância do assunto, não é demais imaginar a existência de grandes interesses políticos a serem atingidos caso o Projeto venha a ser convertido em lei. Ora, o sistema de patentes é igual para quaisquer matérias, medicamentos ou não. Será que só no caso dos medicamentos destinados ao combate da AIDS é que existiriam tais abusos? Ou ainda, seria a AIDS uma doença mais calamitosa que o câncer, a malária ou outras doenças que assolam o país? São efetivamente questões que deveriam ter sido abordadas no Projeto.


III. - Da inadequação do Projeto em relação ao TRIPS


Não obstante os questionamentos relativos à origem do projeto e à sua constitucionalidade, o fato é que, caso implementado da forma como está redigido, o projeto poderá gerar retaliações comerciais ao Brasil no âmbito internacional.

Com efeito, o TRIPS, como um acordo destinado aos Estados-Parte, estabeleceu os “requisitos mínimos” a serem seguidos pelas leis nacionais, sob pena de sua violação. Assim, o conflito entre a legislação nacional e os termos do TRIPS, aos quais o Brasil aderiu, constituirá violação ao próprio Acordo, o que sujeitaria o Brasil a responder por essa violação perante o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC.

Isso porque, de conformidade com o seu artigo 27, o TRIPS estabeleceu que “sem prejuízo do disposto nos parágrafos 2 e 3 abaixo, qualquer invenção, de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, será patenteável, desde que seja nova, envolva um passo inventivo e seja passível de aplicação industrial” (destacamos). Além disso, o Artigo 31, alínea “k”, do TRIPS, dispõe que:

“Quando a legislação de um Membro permite outro uso do objeto da patente sem a autorização do seu titular, inclusive o uso pelo Governo ou por terceiros autorizados pelo governo, as seguintes disposições serão respeitadas:

(...)

k) os Membros não estão obrigados a aplicar as condições estabelecidas nos subparágrafos (b) e (f) quando esse uso for permitido para remediar um procedimento determinado como sendo anticompetitivo ou desleal após um processo administrativo ou judicial. A necessidade de corrigir práticas anticompetitivas ou desleais pode ser levada em conta na determinação da remuneração em tais casos. As autoridades competentes terão o poder de recusar a terminação da autorização se e quando as condições que a propiciaram forem tendentes a ocorrer novamente;”

Vale notar que a Declaração de Doha não alterou tais dispositivos do TRIPS, na medida que não dispensou a licença compulsória ou a importação paralela como meios de se proteger a saúde pública e promover o acesso de medicamentos para a população.

Dessa forma, ao não justificar, de forma consistente, as razões pelas quais apenas os medicamentos destinados ao combate da AIDS seriam matéria não patenteável, o Projeto está em desacordo com o TRIPS, sujeitando o Brasil a uma situação política constrangedora, além da exposição a retaliações comerciais no âmbito internacional.

IV. - Conclusão

Em razão desses argumentos, conclui-se que o Projeto, a despeito da sua finalidade, constitui um retrocesso, ignorando o instituto da licença compulsória e servindo como um precedente para o não patenteamento de quaisquer medicamentos, como ocorria anteriormente a 1996, ano da promulgação da Lei da Propriedade Industrial.

Uma vez aprovado o Projeto, fatalmente os laboratórios farmacêuticos deixarão de investir no Brasil, que voltará a ter a pecha de país que não respeita a propriedade intelectual, fato que prejudica a credibilidade e o desenvolvimento tecnológico e econômico nacionais.

Além disso, dificilmente as empresas e os fornecedores de matéria-prima concordarão em comercializar os seus produtos com o Brasil, sabedores de que, por aqui, eles serão livremente copiados, como ocorreu nos 50 anos anteriores a 1996, nos quais não se concedeu patentes para esses produtos no Brasil. Assim, ao contrário do que previu, o Projeto poderá acarretar um desabastecimento do mercado nacional, causando estagnação tecnológica, em prejuízo daqueles que visava proteger.

O Projeto irá agora à apreciação do Senado e o que se espera é que, na hipótese de não ser rejeitado, o seu texto sofra as alterações necessárias, de modo a adequá-lo à suas finalidades, ao texto constitucional e aos interesses do Brasil no contexto internacional.
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1Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, incorporado ao ordenamento interno por meio do Decreto nº 1.355, de 30.12.1994.
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*Advogados do escritório Pinheiro Neto Advogados

* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

© 2005. Direitos Autorais reservados a PINHEIRO NETO ADVOGADOS









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