Ortotanásia e a eutanásia no Brasil
Mauro César Bullara Arjona*
Tal previsão considera a situação do doente, quando estiver sem condições de se automedicar, necessitar da ajuda de outrem para abreviar sua vida e acabar com a sua dor (eutanásia), ou de cuidados médicos para se manter vivo (ortotanásia). Ao deixar de fazê-lo "desligando os aparelhos" ou "não aplicando a medicação necessária", a pessoa que tem a responsabilidade para tanto, normalmente familiares e médicos, estaria se omitindo, o que, para o Direito Penal, equivaleria a causar a morte.
Tecnicamente, não podemos dizer que a morte foi "causada" pela pessoa que se omitiu, já que a causa mortis foi a doença. Diferente é o caso do cidadão que recebe um tiro de outro, pois daí a morte é causada pelos ferimentos decorrentes desse tiro.
No caso da omissão, essa regra não se aplica, já que não há relação de causa e efeito, uma vez que a omissão não "causou" a morte, mas sim a doença. Para tais crimes, os chamados omissivos impróprios ou omissivos por omissão, o CP estabelece em seu artigo 13 a relevância da omissão, fazendo com que as pessoas que se omitem tendo a obrigação de agir respondam pelo resultado (crime) não porque o causaram, mas sim porque não tentaram evitá-lo. É claro que essa regra se aplica apenas aos doentes terminais ou irrecuperáveis que necessitem de assistência para a manutenção de sua vida. Não há que se falar em crime caso alguém, em estado terminal ou sabedor de que tem uma doença irrecuperável, sem o auxílio de qualquer pessoa, resolve tirar a própria vida.
A causa de diminuição se aplica já que a motivação do crime é "nobre", visa diminuir a dor do paciente, minorar seu sofrimento. Nelson Hungria, citando a exposição de motivos do Código Penal, cita como exemplo de causa de diminuição no homicídio o chamado "homicídio eutanásico ou piedoso", justificando a diminuição pela piedade, provocada por situação "irremediável de sofrimento em que estivesse a vítima e às suas súplicas".
O espírito da lei é apenar o autor do homicídio piedoso, porém reconhecendo que seus atos foram motivados por sentimentos bons, nobres, os quais justificam pena menor, posto que o grau de periculosidade do autor é também menor.
O projeto de lei 6.715/2009 (clique aqui), aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, pretende regular a prática dessas condutas. Ele prevê o acréscimo de um artigo no Código Penal, o 136-A, com a seguinte redação: "Não constitui crime, no âmbito dos cuidados paliativos aplicados a paciente terminal, deixar de fazer uso de meios desproporcionais e extraordinários, em situação de morte iminente e inevitável, desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão".
O projeto não trata com clareza a situação, posto que, além de não tipificar eutanásia e ortotanásia, confunde ou equipara os dois conceitos para o efeito de sua aplicabilidade. O texto é amplo e abre a possibilidade de aplicação a ambos os casos, até mesmo porque prevê a hipótese de o próprio paciente consentir com a sua prática, o que só ocorreria, evidentemente, se o mesmo não estivesse em estado vegetativo, ou seja, na eutanásia.
Mais que isso, ao querer permitir a prática da ortotanásia ou da eutanásia (ou ambas), propõe a modificação do artigo 136 do Código Penal (maus-tratos), sendo que a sua prática é considerada homicídio. Qualquer atitude visando à liberação da ortotanásia ou eutanásia deveria estar inserida no artigo 121 (homicídio) e não no 136 (maus tratos).
Obviamente, alguns dirão que esse problema de posição no Código Penal é de somenos importância, já que a lei (se aprovada) diz não constituir crime, seja ele maus-tratos ou homicídio, porém estaríamos, mais uma vez, legislando mal, sem a menor técnica, possibilitando interpretações dissonantes e até mesmo conflitantes sobre o seu conteúdo.
Não sabemos se a intenção da lei é permitir somente a ortotanásia ou também a eutanásia, mas já sabemos de antemão que, se o projeto for aprovado com essa redação, teremos muita discussão nos tribunais sobre sua abrangência e aplicação.
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*Advogado criminalista do escritório Salusse Marangoni Advogados e professor de Direito Penal e Prática Penal e Processual Penal da PUC/SP
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