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A autonomia financeira da defensoria pública estadual e sua iniciativa reservada para projetos

Questiona-se a constitucionalidade do anteprojeto de Emenda à Constituição Estadual que visa concretizar a autonomia funcional, administrativa e financeira da Defensoria Pública Estadual, conforme as novas regras da Emenda 45/2004 à Constituição Federal. Passo a emitir opinião jurídica a respeito.

1/6/2005


A autonomia financeira da defensoria pública estadual e sua iniciativa reservada para projetos de leis

André L. Borges Netto*

I – Introdução

Questiona-se a constitucionalidade do anteprojeto de Emenda à Constituição Estadual que visa concretizar a autonomia funcional, administrativa e financeira da Defensoria Pública Estadual, conforme as novas regras da Emenda 45/2004 à Constituição Federal. Passo a emitir opinião jurídica a respeito.

Referida Emenda (chamada de “Reforma do Judiciário”), quanto à Defensoria Pública Estadual, trouxe as seguintes previsões:

Art. 134 (...)

(...)

§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º”.

“Art. 168 – Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º”.

No âmbito da PGE, houve parecer do Procurador MARCOS COSTA VIANNA MOOG pela constitucionalidade do anteprojeto, especialmente quanto à iniciativa de sua apresentação à Assembléia Legislativa (art. 66, I, da Constituição Estadual).

Mas o parecer do Procurador-Geral do Estado, Dr. JOSÉ WANDERLEY BEZERRA ALVES, além de ter apontado a necessidade de algumas correções formais no anteprojeto (o que já foi acolhido), sustenta, em resumo, que:

a) a Emenda não concedeu autonomia financeira à Defensoria Pública Estadual;

b) a alteração proposta quanto a dar iniciativa reservada para apresentar projetos de leis à Defensoria Pública Estadual, para cuidar de seus assuntos internos, afronta o art. 61, “caput”, da Constituição Federal.

A partir desse importante posicionamento do Procurador-Geral do Estado, que goza de merecido respeito junto aos operadores do direito, é que passaremos à nossa análise e conclusões.

II – A autonomia financeira da Defensoria Pública Estadual

As regras da Reforma do Judiciário sobre a Defensoria Pública Estadual visaram, essencial e especificamente, dar condições ao órgão de ser mais eficiente na prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (na forma do inciso LXXIV, do art. 5º, da CF/88).

Isto é inequívoco. Quando se discutia o Projeto da Emenda, o Ministro Márcio Thomaz Bastos, reunido na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, em 10.2.04, posicionou-se favoravelmente à autonomia da Defensoria Pública, considerando que o órgão deveria ser um espelho do Ministério Público. O jornal Folha de S. Paulo, edição de 16.11.03, também revelou ser prioridade do Governo Federal a Emenda da Reforma do Judiciário, listando como ponto essencial a autonomia da Defensoria Pública. Já o jornal Correio Braziliense, de 17.3.04, revelou: “a Defensoria terá autonomia para definir seu próprio orçamento. Terá uma autonomia semelhante à do MP”.

A literatura jurídica recente, interpretando o que é claro, tem revelado, quanto às novidades da Emenda de que se fala, “a previsão do real cumprimento do princípio de acesso à ordem jurídica justa, estabelecendo-se a Justiça Itinerante e a sua descentralização, como a autonomia funcional, administrativa e financeira da Defensoria Pública Estadual” (PEDRO LENZA, “Reforma do Judiciário”, jus.com.br). No mesmo sentido: “Às Defensorias Públicas Estaduais são agora asseguradas autonomia funcional, administrativa e financeira e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, §2°, devendo os recursos e as dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares, ser-lhes entregues, igualmente como ao Judiciário e Ministério Público, até o dia 20 de cada mês, em duodécimos na forma de Lei Complementar, conforme art.168” (AGAPITO MACHADO, “A nova reforma do Poder Judiciário”, jus.com.br).

Esta conclusão decorre da interpretação conjunta das novidades jurídicas sob comento (§ 2º do art. 134, c/c art. 168). Garantiu o Constituinte Derivado, é certo, autonomia funcional e administrativa à Defensoria Pública, além da autonomia financeira, decorrente das menções expressas à iniciativa para elaboração de sua proposta orçamentária e à entrega mensal de seu duodécimo, da mesma forma como ocorre com o Legislativo, com o Judiciário e com o Ministério Público.

Aqui é de lembrar, sempre e sempre respeitosamente, que “quando o texto dispõe de modo amplo, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo a todos os casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral prevista explicitamente” (“odiosa restringenda, favorabilia amplianda”, CARLOS MAXIMILIANO, “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, Forense, 10ª ed., p. 246-247). Se a Constituição passou a falar em iniciativa para elaboração de proposta orçamentária e em entrega mensal do duodécimo à Defensoria Pública, é necessário extrair dessas noções jurídicas que o órgão, efetivamente, passou a gozar também de autonomia financeira.

Realmente, de que terá adiantado todo o firme propósito do Governo Federal (que levou adiante o claro compromisso político de dar autonomia à Defensoria Pública), além de tudo o que restou legislado, se das inovações jurídicas em questão não se puder extrair a autonomia financeira do órgão? De que adiantará reconhecer que a Defensoria Pública tem autonomia funcional e administrativa, além de ter o direito de elaborar sua proposta orçamentária e de receber mensalmente seu duodécimo, se daí não se concluir (por imperativo até da lógica formal) que a mesma também passou a ter autonomia financeira? De novo é possível invocar CARLOS MAXIMILIANO, no sentido de que todos que atuam na área jurídica sabem que O DIREITO DEVE SER INTERPRETADO INTELIGENTEMENTE, "não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo" (ob. cit., p. 166).

É verdade que o constituinte, quando tratou da autonomia financeira do Judiciário, o fez expressamente (art. 99, “caput”), mas também não é menos verdade que ao tratar da autonomia financeira do Ministério Público tal não se deu de forma expressa (§ 2º do art. 127).

Tudo no Direito, até as regras aparentemente claras, devem ser interpretadas. O legislador é um leigo. Muitas vezes diz mais do que quis ou menos do que pretendeu. Veja-se um exemplo (com o que está de acordo o eminente Procurador-Geral do Estado, conf. nota 1, pág. 2, da Manifestação 014/05): a menção, na parte final do § 2º do art. 134, à regra do art. 99, § 2º, não pode, de forma alguma, significar que a proposta orçamentária da Defensoria Pública será encaminhada por intermédio do Presidente do Tribunal de Justiça, porque isto não faz sentido algum, já que o encaminhamento da proposta orçamentária da Defensoria Pública deverá se dar por ato da Chefia da Instituição.

Para finalizar o tópico, eis as importantes considerações do Juiz Federal DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR:

“Ora, como de conhecimento convencional, é por meio das Defensorias Públicas que o Estado cumpre o seu dever constitucional de garantir o acesso à Justiça das pessoas desprovidas de recursos financeiros para fazer frente às despesas com advogado e custas do processo. Nesse contexto, as Defensorias Públicas revelam-se como um dos mais importantes e fundamentais instrumentos de afirmação judicial dos direitos humanos e, consectariamente, de fortalecimento do Estado Democrático de Direito, vez porque atua como veículo das reivindicações dos segmentos mais carentes da sociedade junto ao Poder Judiciário, na efetivação e concretização dos direitos fundamentais. Avanço inigualável e inédito no sistema constitucional brasileiro, e sem paralelo no direito comparado, a Democracia Brasileira atinge o que talvez seja o seu ápice de amadurecimento e expansão, com a concessão às Defensorias Públicas Estaduais, órgãos imprescindíveis para a afirmação da dignidade humana e, em consequência, para a cidadania, de independência funcional, administrativa e financeira, permitindo a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites fixados na lei de diretrizes orçamentárias. Com isso, passam as Defensorias Públicas Estaduais a titularizar a prerrogativa constitucional, irrecusável e indisponível, de elaborar as propostas de orçamento do órgão para fazer frente às despesas de pessoal, estrutura e funcionamento, de modo a melhorar e eficientemente garantir o acesso à Justiça dos economicamente deficientes, subordinando-se, tão somente, aos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, em tudo semelhante ao que já ocorre com os Poderes Legislativo e Judiciário e com o Ministério Público. E para que tal autonomia não permaneça no vazio e no plano abstrato das aspirações, a EC nº 45/04 deu nova redação ao art. 168, para determinar que os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos da Defensoria Pública, lhes sejam entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, em situação idêntica da que já se verifica com os órgãos do Poder Legislativo e Judiciário e do Ministério Público. O propósito axiomático da EC 45/04, ao garantir a autonomia funcional, administrativa e financeira às Defensorias Públicas Estaduais, foi prover esses órgãos de defesa da cidadania de melhorias com pessoal e estrutura, para o seu bom funcionamento, conferindo-lhes a liberdade para, quando da elaboração de suas propostas orçamentárias, contemplarem os subsídios dos Defensores Públicos e a remuneração de seus Servidores, condignos e compatíveis com a nobreza e elevada relevância, agora mais do que merecidamente reconhecida, das funções que lhes foram constitucionalmente concedidas”.

III – A iniciativa reservada da Defensoria Pública para apresentação de projetos de leis

É certo que o Constituinte Reformador, apesar de ter garantido a autonomia funcional, administrativa e financeira à Defensoria Pública, não adaptou a Constituição Federal quanto à regra da necessária iniciativa reservada para apresentação de projetos de leis que tratem de assuntos internos do órgão (criação e extinção de cargos e fixação da remuneração de seus membros), porque não se alterou a redação do art. 61 da CF/88. Mas daí a concluir pela impossibilidade de a Defensoria ter iniciativa reservada quanto a projetos de leis vai a uma distância enorme.

A prevalecer o entendimento que estamos a examinar (Manifestação PGE/PAA Nº 014/2005), o que teríamos seria o seguinte: a Defensoria Pública tem autonomia, porque tem orçamento próprio, não podendo gastar mais do que está à disposição no orçamento, como é regra tradicional no direito brasileiro (art. 157 da Constituição Estadual). Mas toda vez que precisar criar novos cargos ou fixar e majorar remuneração de seus membros, o que sempre se dá por lei, precisará solicitar ao Governador que apresente o projeto à Assembléia Legislativa.

Tal conclusão não pode ser aceita, por desnaturar por completo as novidades jurídicas criadas pela Emenda 45/2004. É o mesmo que garantir um direito mas não lhe dar qualquer eficácia, desconsiderando, a mais não poder, a lição dos doutos, que afirmam, em uníssona voz, que “a idéia de efetividade, conquanto de desenvolvimento relativamente recente, traduz a mais notável preocupação do constitucionalismo nos últimos tempos. Ligada ao fenômeno da juridicização da Constituição, e ao reconhecimento e incremento de sua força normativa, a efetividade merece capítulo obrigatório na interpretação constitucional. OS GRANDES AUTORES DA ATUALIDADE REFEREM-SE À NECESSIDADE DE DAR PREFERÊNCIA, NOS PROBLEMAS CONSTITUCIONAIS, AOS PONTOS DE VISTA QUE LEVEM AS NORMAS A OBTER A MÁXIMA EFICÁCIA ANTE AS CIRCUNSTÂNCIAS DE CADA CASO” (LUÍS ROBERTO BARROSO, “Interpretação e Aplicação da Constituição”, Saraiva, 1996, p. 218, sem destaque no original).

Guiar-se, no assunto, unicamente pelo art. 61 da CF/88, deixando de analisar a Constituição mais amplamente, à luz das recentes novidades jurídicas, também significa desconsiderar que “a Constituição é a ordem jurídica fundamental de uma sociedade em um determinado momento histórico e, como é um dinamismo, é contemporânea à realidade. Daí porque tenho afirmado que não existe a Constituição de 1988. O que hoje realmente há, aqui e agora, é a Constituição do Brasil” (EROS GRAU, STF, ADIn 3367-1/DF, Rel. Min. Cezar Peluso).

Ou seja: não existe mais, agora em maio/2005, a Constituição de 5.10.88, mas sim a Constituição reformada, inclusive e especialmente pela Emenda 45/2004, que introduziu no sistema a autonomia da Defensoria Pública. Como concretizar essa autonomia se não se garantir à Defensoria Pública, e somente a ela, a iniciativa para apresentação de projetos de leis que tratem de assuntos “interna corporis”?

KONRAD HESSE (“A força normativa da Constituição”, Sergio Fabris Editor, 1991, p. 24, tradução de Gilmar Ferreira Mendes) resolve a questão, ao sustentar que de fato “a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta do seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade”.

Faz algum sentido (juridicamente falando), reconhecer que o Judiciário tem autonomia financeira e iniciativa reservada para seus projetos de leis, que o Ministério Público tem autonomia financeira e iniciativa reservada para seus projetos de leis, mas que a Defensoria Pública, apesar de ter autonomia, não tem iniciativa reservada para seus projetos de leis?

De novo, para finalizar, recorremos ao bem fundamentado estudo do Doutor em Direito Constitucional DIRLEY DA CUNHA JUNIOR:

“E é a partir dessa perspectiva – autonomia financeira para elaboração de sua proposta orçamentária que defina, entre as melhorias institucionais, e atendidos tão-somente os limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, os recursos suficientes para pagamento dos seus membros e servidores – que se deve reconhecer às Defensorias Públicas Estaduais a iniciativa privativa de propor às Assembléias Legislativas a fixação dos subsídios e da remuneração de seu pessoal, dentro dos limites da previsão orçamentária e observados, obviamente, os respectivos sub-tetos (subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, para os Defensores Públicos; e o subsídio do Governador do Estado, para os servidores do órgão). Essa interpretação se impõe, não só porque é a única que confere maior efetividade ao § 2º inserido ao art. 134 da CF/88 (que assegura a autonomia financeira), como também porque é a que melhor compatibiliza e conforma o citado parágrafo ao texto constitucional, em especial com os direitos fundamentais”.

IV – Conclusão

Daí porque, respeitosamente (porque nossa opinião jurídica está em desacordo com aquela expressada por jurista que tem nosso respeito e consideração, no caso, o Procurador-Geral do Estado), e esperando seja considerado que “a melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a injustiças" (RSTJ 4/1.554), entendemos ser constitucional o anteprojeto examinado, especialmente quanto aos temas da efetiva autonomia financeira e da iniciativa reservada da Defensoria Pública para apresentação de projetos de leis sobre assuntos de sua economia interna, única forma válida de dar plena eficácia às novidades implantadas pela Emenda 45/2004, que, é fora de qualquer dúvida, DESVINCULOU A DEFENSORIA PÚBLICA DO PODER EXECUTIVO.

Cabe ao intérprete, agora, tudo fazer para incrementar, definitivamente, a mensagem do art. 134 da Constituição, para tornar a Defensoria Pública em legítima e verdadeira “instituição essencial à função jurisdicional do Estado”.

Assim, como constou da justificativa do anteprojeto, “reformar a Constituição Estadual é princípio basilar para fazer cumprir a Constituição Federal e proporcionar à Defensoria Pública tratamento igualitário às demais instituições garantidoras da ordem constitucional, é reconhecer sua importância no ordenamento jurídico e garantir os direitos sociais fundamentais na sociedade sul-mato-grossense”.
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*Advogado constitucionalista em Campo Grande/MS






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