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A quebra de sigilo pela Receita Federal e inviolabilidade do direito à intimidade

A banalização da intimidade tem sido tema recorrente. Não se cansam de levantar vozes para defender esta que, ao lado da liberdade, é um dos bens mais preciosos dos cidadãos. Em um Estado que se pensa Democrático de Direito, os poderes do Estado encontram limites nos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição.

22/2/2011

A quebra de sigilo pela Receita Federal e inviolabilidade do direito à intimidade

Carla Domenico*

A banalização da intimidade tem sido tema recorrente. Não se cansam de levantar vozes para defender esta que, ao lado da liberdade, é um dos bens mais preciosos dos cidadãos. Como se sabe em um Estado que se pensa Democrático de Direito, os poderes do Estado encontram limites nos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição. Não é à toa que entre estes direitos, o legislador Constituinte cuidou de garantir a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e a imagem das pessoas (artigo 5º, inciso X), ditando que é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados, das comunicações telefônicas (inciso XII). Mais do que isto, a própria Constituição Federal (clique aqui), trouxe a única exceção à regra: o sigilo pode ser violado apenas por ordem judicial, a qual deve respeitar a garantia da motivação fixada no artigo 93, inciso IX, da CF e "para fins de investigação criminal ou instrução processual" (inciso XII). Portanto, estabeleceu a exceção, a forma e finalidade.

Além da constante afronta ao direito de intimidade e dignidade do cidadão, sob o escudo de que "os fins justificam os meios", o que se constata é a manifesta falta de respeito com a nossa Carta da República. Exemplo disso é o fato de a Receita Federal em fiscalização de natureza – frise-se – puramente tributária e com fins arrecadadores, diretamente, sem decisão judicial e, muito menos, motivação, quebrar o sigilo de dados e bancário de contribuintes.

Como um solavanco nesta corrente avassaladora dos direitos fundamentais, o colendo Pleno do colendo Supremo Tribunal Federal em 15 de dezembro de 2010, mais uma vez, dando prova de ser o guardião de nossa Constituição Federal no julgamento do RE 389.808 (clique aqui), reconheceu a ilegalidade da quebra de sigilo realizada por agentes administrativos da Receita Federal por afronta aos incisos X e XII do artigo 5º da CF.

E nem poderia ser diferente. A ação da Receita Federal que quebra sigilo violando a intimidade do cidadão é a mais clara demonstração da exorbitância da competência, forma e finalidade prevista para se excepcionar um direito fundamental inviolável. Não é à toa que o próprio artigo 145, §1º, da CF estabelece: "sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte".

E nem se diga que a Lei Complementar 105/2001 (clique aqui) confere a agentes administrativos que pertencem ao Poder Executivo acesso a dados bancários.

É que se as normas legais devem ser interpretadas de acordo com a Constituição Federal, a única conclusão a que se chega é que a Receita Federal para ter acesso a dados bancários deve também respeitar os direitos individuais e, por óbvio a Constituição Federal (art. 145, §1º).

Interpretação contrária viola não só o princípio da reserva da jurisdição, os direitos individuais do cidadão, como também a finalidade estabelecida pela exceção trazida no texto constitucional. Quisesse o legislador, conferir esta competência aos agentes da Receita Federal o teria feito expressamente, como, aliás, reconheceu com relação às Comissões Parlamentares de Inquérito.

De outra parte, parece especioso dizer que o sigilo bancário não é corolário do sigilo fiscal. Ambos protegem bens diversos e são protegidos de forma diversa. De outra parte, não se pode confundir investigação criminal com fiscalização. Também neste caso, não só os pressupostos são diversos, como a sua finalidade. A fiscalização realizada pela Receita Federal, como se sabe, tem um único objetivo, arrecadar créditos tributários. É, como destacado no voto do e. Min. MARCO AURÉLIO no Recurso Extraordinário citado, portanto, parte na relação jurídica estabelecida, porque, sendo um agente arrecadador, pretende com a sua ação a cobrança de um tributo.

E no voto do e. Min. Celso de Mello prolatado na AC 33- MC/PR se lê com precisão: "esse tema ganha ainda maior relevo, se se considerar o círculo de proteção que o ordenamento constitucional estabeleceu em torno das pessoas, notadamente dos contribuintes do Fisco, objetivando protegê-los contra ações eventualmente arbitrárias praticadas pelos órgãos estatais da administração tributária, o que confere especial importância ao postulado da proteção judicial efetiva, que torna inafastável, em situações como a dos autos, a necessidade de autorização judicial, cabendo ao juiz, e não à administração tributária, a quebra do sigilo bancário. Assiste plena razão a Vossa Excelência, pois os órgãos estatais da administração tributária não guardam, em relação ao contribuinte, posição de equidistância nem dispõem do atributo (apenas inerente à jurisdição) da "terzietà", o que põe em destaque o sentido tutelar da cláusula inscrita no §1º do art. 145 de nossa Lei Fundamental". E prossegue o eminente Ministro Celso de Mello:" (...) o Estado, em tema de tributação, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos contribuintes e aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito constitucional"(...) "Na realidade, a circunstância de a administração estatal achar-se investida de poderes excepcionais que lhe permitem exercer a fiscalização em sede tributária não a exonera do dever de observar, para efeito do correto desempenho de tais prerrogativas, os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República, sob pena de os órgãos governamentais incidirem em frontal desrespeito às garantias constitucionalmente asseguradas aos cidadãos em geral e aos contribuintes, em particular".

E concluindo com o eminente Ministro Celso de Mello, guardião dos direitos mais caros estabelecidos em nossa República: "O procedimento estatal da administração tributária que contrarie os postulados consagrados pela Constituição da República revela-se inaceitável, Senhores Ministros, e não pode ser corroborado por decisão desta Suprema Corte, sob pena de inadmissível subversão dos postulados constitucionais que definem, de modo estrito, os limites – inultrapassáveis – que restringem os poderes do Estado em suas relações com os contribuintes e com terceiros (...) Posta a questão nesses termos, mostra-se imperioso assinalar, considerados os fatos subjacentes ao litígio principal, que se revela inacolhível a pretensão da administração tributária Federal, que busca afastar, "ex própria auctoritate", independentemente de prévia autorização judicial, o sigilo bancário da empresa contribuinte".

Está na hora de dar um basta à consagração da violação de direitos, tudo em nome da sociedade. Solapar os direitos fundamentais representa em última instância, negar o próprio Estado Constitucional tão duramente conquistado e, todos, absolutamente, todos, mais dia, menos dia, podem ficar reféns desta mitigação.

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*Sócia da banca Carla Domenico Escritório de Advogados

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