Livro "Justiça, Democracia e Capitalismo"
Denis Rosenfield*
Por isso, o livro Justiça, Democracia e Capitalismo (Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, 247 p.) busca apresentar e analisar tais aspectos importantes para entender e interagir com nossa realidade. Considera, sobretudo, problemas de ordem conceitual, mas vinculados com experiências concretas. Divide-se em seis capítulos, a saber, I: Capitalismo e crise; II: Democracia e liberdade de escolha; III: Política e existência; IV: Justiça distributiva; V: Justiça social e VI: O espírito do capitalismo. São questões políticas, sociais, econômicas, jurídicas, institucionais e éticas, entre outros, que desafiam o Brasil e o mundo contemporâneo. Através de exame crítico e de diagnóstico conciso dos muitos fatos e dados existentes, procura oferecer esclarecimentos e ferramentas de compreensão das muitas ideias divulgadas e vigentes, registrando subsídios claros para as decisões do leitor.
Por exemplo, quais são as condições que devem ser respeitadas no Estado para que não se subverta o próprio conceito de democracia? Ou ainda, quais são as propriedades propriamente definidoras da democracia, que são as características essenciais do seu conceito, sem as quais não estaríamos mais falando de democracia, embora possamos continuar utilizando essa palavra?
Ora, dentre as propriedades essenciais da democracia, costumamos falar de liberdades civis, liberdades políticas, como as eleições periódicas, o sistema representativo, liberdades individuais, direito de propriedade, liberdade de ir e vir, direitos individuais, liberdade de imprensa e de expressão, liberdade de escolha em relação aos mais diferentes campos da intervenção individual, entre outras condições. Ou seja, a democracia concebida como método exclusivamente político, numa espécie de utilização geral, mostra a sua própria inadequação, visto que sociedades totalmente centralizadas, planejadas, caso se quiser empregar essa expressão, não asseguram a liberdade de escolha no que diz respeito às liberdades econômicas e civis e, com isso, são impróprias para o exercício da democracia. A liberdade de escolha política é impraticável sem a liberdade econômica e civil de escolha, pressupondo a liberdade de negociar, de ir e vir, de ter coisas próprias, de exercer a liberdade de pensamento e de opinião, a liberdade de reunir e de discutir publicamente.
Com isso, diria que o Estado, ao ter como alvo primeiro a supressão da propriedade privada e do direito de cada um escolher a sua vida, visou, simultaneamente, e em consequência, à própria democracia, pois não pode um método de decisão política, baseado em atos livres individuais, subsistir em um regime que solapa as bases mesmas do processo de livre escolha. Com a negação da propriedade privada, evaporou-se o próprio de cada um, aquilo que pertence à subjetividade humana, como é a decisão individual do que cada um tem ou não a vontade de fazer. Assim, atos aparentemente tão anódinos como comprar e/ou vender um bem determinado, uma bicicleta ou um automóvel, não são valorativamente neutros em relação à eleição de um governante ou de um parlamento, ambos sendo expressões de um mesmo tipo de liberdade, efetuada em campos distintos da ação humana.
As relações pessoais, assim tecidas, abarcam um amplo leque de opções que pressupõem a liberdade do indivíduo, a responsabilização de seus atos, a não coerção, salvo no caso do crime, no atentado ao outro; ou seja, tais noções de justiça pressupõem uma sociedade livre. Se assim não fosse, teríamos relações que comprometeriam a liberdade de movimentação, de autodeterminação, a escolha de cada um, destituindo a pessoa de sua capacidade de decisão, de sua autonomia.
A questão da vinculação conceitual entre diferentes acepções da liberdade termina remetendo a uma questão que não é apenas descritiva, mas também valorativa. Com os elementos empíricos hoje à disposição, descritivamente, poderíamos afirmar que o socialismo é incompatível com a liberdade política e o capitalismo compatível com ela. Tratar-se-ia de uma comparação entre dois tipos de experiência histórica, sempre e quando não sucumbíssemos à perversão da democracia totalitária, que vive da ambiguidade dos conceitos, da mudança sucessiva de suas significações. Permaneceria, ainda, o problema da vinculação conceitual entre essas distintas significações e não somente a observação empírica, que mostrou que o socialismo lá onde reinou extinguiu pura e simplesmente a liberdade política. Lá onde o capitalismo reina plenamente, a liberdade política é completamente assegurada.
Assim, se há um direito indissociavelmente vinculado à democracia é o direito de querer, o direito que cada um tem de dispor de si mesmo em todos os níveis subjetivos e objetivos, fazendo com que a liberdade de escolha seja o princípio mesmo da ação individual. Eis por que nas democracias totalitárias, a abolição da propriedade privada é a condição mesma através da qual o querer dos indivíduos, dos súditos, vem a ser controlado e moldado pelo Estado. No momento em que os indivíduos são, por assim dizer, suspensos à vontade do Estado, eles não têm mais direitos a serem exercidos, mas tão somente obrigações, apresentadas como deveres coletivos. A estatização dos meios de produção, da propriedade privada, visa alienar o indivíduo de si mesmo, de forma que venha a perder a propriedade de si mesmo. Ele se torna propriedade do Estado. Há, portanto, uma propriedade inalienável do cidadão: o direito de querer, a livre escolha. Sem liberdade de escolha criam-se, assim, as condições de uma subversão da democracia por meios democráticos, com a utilização específica de um instrumento democrático, a saber, as eleições. Com isso, a democracia representativa começa a ser suprimida pela democracia totalitária.
A democracia, no capitalismo, remete às próprias condições da existência humana, entendida como livre e, portanto, comprometida com a livre escolha, enquanto princípio da ação humana. Inclusive, a convivência, no sentido mais nobre do termo, está baseada em princípios que tornam a sociabilidade humana algo frutífero para todos. Ela está baseada na ideia de que todos devem ser considerados enquanto pessoas, detentoras de direitos e deveres, de tal maneira que possam convergir em relação àquilo que as une e não as desune. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a liberdade de escolha é um desses princípios fundadores da convivência, pois é ela que faz com que as pessoas se respeitem e tenham um comum apreço por algo que é reconhecido como tendo validade universal. Podemos ter divergências no que diz respeito aos objetos de nossas respectivas liberdades, porém não deveríamos ter no que concerne ao princípio da liberdade enquanto tal.
__________________
*Professor titular de Filosofia da UFRS e articulista dos jornais O Estado de São Paulo e O Globo, além de colaborador da Folha de S. Paulo
__________________