Migalhas de Peso

O artigo 37 da Constituição Federal e os processos seletivos nas Universidades

Recentemente, tive a oportunidade de ir à Faculdade de Direito assistir a arguição de teses em concurso para preencher a vaga que ocupei até minha aposentadoria, de Professor Titular de Direito do Comércio Internacional. Apos a arguição, desisti, não assistindo ao restante.

20/10/2010


O artigo 37 da Constituição Federal e os processos seletivos nas Universidades

Luiz Olavo Baptista*

Recentemente, tive a oportunidade de ir à Faculdade de Direito assistir a arguição de teses em concurso para preencher a vaga que ocupei até minha aposentadoria, de Professor Titular de Direito do Comércio Internacional.

Após a "arguição" feita por dois integrantes da banca, desisti, não assistindo ao restante, pois ao que assistira não foi uma argüição. Estava, portanto, diante de algo que seria outra coisa qualquer, menos um concurso. O leitor estará curioso. Explico.

Uma dessas atuações foi a de um membro da banca, socióloga, Professora Titular da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. A professora é reconhecida especialista e orientou seus estudos para a Sociologia da Cultura, A Metrópole e suas Transformações, Tempo, História e a questão do Imaginário, Sociologia da Arte. Autora de famosa tese sobre a mitologia do "mineirinho", matérias estas longe do Direito do Comércio Internacional, um dos ramos mais complexos e mais novos do Direito Internacional.

O outro foi um conhecido Professor na FEA que focaliza seu interesse acadêmico em Desenvolvimento Econômico; Macroeconomia; Economia Industrial; Política de Ensino Superior; Ciência e Tecnologia. As questões jurídicas não estão entre os seus conhecimentos especializados, muito menos o Direito do Comércio internacional.

Ocorre que eles deveriam julgar a qualidade de três teses sobre a OMC, o fenômeno mais importante no âmbito do Direito do Comércio Internacional em nossos dias, e outra sobre contratos internacionais. E não só avaliar as qualidades e atributos de cada uma delas como classificá-las pela qualidade e, também, julgar como os autores desses trabalhos se defenderiam na arguição. Matérias, como se vê, objeto de conhecimento específico e complexo.

Ouvi a examinadora dizer, com honestidade intelectual, que tinha dificuldade em julgar a tese, porque a via como, através de um espesso nevoeiro, uma coisa cinzenta e distante, que sentia dificuldades em arguir. Mas para meu espanto depois, prosseguiu fazendo uma série de perguntas que não versavam o conteúdo da tese ou com as noções específicas ali desenvolvidas. Fez as perguntas que qualquer leiga faria por cortesia quando lhe apresentassem o autor dizendo – ele escreveu sobre tal tema. Onde a especificidade? Onde o conhecimento especializado que permitisse julgar a qualidade da matéria que é complexa?

Portanto, não houve uma arguição no sentido próprio do termo, que é o da legislação e, por isso, não poderia haver nota, muito menos um concurso.

Aguardei. O segundo examinador que ouvi foi o Professor da FEA. Este também com a honestidade intelectual que se conhece, manifestou sua perplexidade diante da matéria que reconheceu não dominar e, da mesma maneira que quem o antecedeu, fez perguntas que não eram concernentes ao conteúdo da tese.

Essa obra analisa, critica e propõe uma reforma no sistema de proteção da propriedade intelectual nos tratados da OMC a partir de deficiências e problemas ligados à aplicação prática da norma que sugerem a necessidade de melhorá-la. Era, sem sombra de dúvida, especializada – e com base no meu conhecimento do assunto, devo dizer do melhor nível, mereceria uma argüição propriamente dita e não, como ouvi na ocasião, com perguntas de quem quer saber do que se trata e o porquê ou como isso tem alguma importância, mas não compreende a matéria.

Aí ocorre um choque com o que dispõe a Constituição Federal (clique aqui) que, em seu artigo 37, além de estabelecer os princípios que regem a atividade da administração – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência – também dispõe, no inciso II, que "a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei".

Entre os princípios estabelecidos pela Constituição, aplica-se, primeiro, a legalidade a qual impõe que todos sejam tratados da mesma maneira diante da lei e que ninguém seja obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, a não ser que a lei impeça, pois os integrantes da administração pública só podem agir no cumprimento estrito da lei. Devem cumpri-la com imparcialidade e moralidade, à luz da publicidade dos seus atos, e visando à eficiência. Estes requisitos são fundamentais para o funcionamento eficaz do Estado democrático de direito. Correspondem ao que no constitucionalismo norte americano, que inspira em parte ao nosso, chama-se de "due process of law".

Essas regras constitucionais regulam o acesso à função pública, o concurso. O concurso tem dupla finalidade e virtude. De um lado, assegura a todos aqueles que reúnem os requisitos necessários a chance de candidatar-se e, de outro, permite ao Estado selecionar o melhor candidato para exercer a função ou cargo.

Os princípios da publicidade e da eficiência são atendidos pela natureza pública do concurso e pelo método de escolha, resultando no objetivo de assegurar que o melhor candidato para atender a função será escolhido. A legalidade e a impessoalidade regem a forma de como o concurso se realizará. A impessoalidade garante que não haja favoritismo nem manifestações de hostilidade por aqueles contrários a algum candidato. Tudo isso é temperado pela moralidade, princípio não só obrigatório para a administração pública, mas também inscrito no coração de cada ser humano como norma de vida.

Qualquer ato, não importa se chamado de concurso e tendo a aparência ou a forma externa de um concurso, que frustre o objetivo constitucional de escolha do melhor candidato por quem tenha a capacidade técnica especializada e a capacidade de entender a complexidade das questões objeto do ensino não existe. É uma aparência sem substância.

Se analisássemos a Constituição tendo em mente apenas o efeito econômico do ato, como quer certa escola, a constatação também seria de que de uma escolha inadequada pela deficiência dos meios empregados decorre uma perda para o Estado, ou seja, uma lesão econômica, que atinge toda a sociedade. Essa forma de interpretação, que a meu ver complementa bem a tradicional, esta de valores morais, levaria também a considerar que há uma grande perda econômica pelo dano grave que o pretenso concurso causaria à imagem da Faculdade e da Universidade.

O requisito constitucional consiste na organização do concurso levando em conta a natureza e complexidade do cargo ou emprego. Implica, logicamente, que todos os examinadores estejam capacitados pelos seus conhecimentos sólidos da especialidade, o que os habilita a compreender e julgar levando em conta a natureza e complexidade das matérias.

Num concurso de Professor Titular, como se faz na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, uma das provas, a de maior peso, é de argüição de tese. Nela, o candidato apresenta um trabalho (com certas características que o definem como tese) que será julgado pelos examinadores, membros da banca. Todos eles, na lógica constitucional, deveriam ter conhecimento técnico suficientes sobre a matéria, para poder julgar e argüir sobre a tese. Não se imagina uma banca de filósofos argüindo teses de veterinários ou de químicos arguindo as de literatura.

Fui-me embora depois de ouvir as perguntas desses membros da Banca, porque conclui tristemente que esse "concurso" certamente será anulado pela Congregação da Faculdade de Direito, no mínimo porque dois examinadores tendo manifestado tal perplexidade sobre uma das teses, e havendo ainda outras também sobre a mesma matéria, não estive diante de um ato de concurso público, embora se apresentasse como tal.

As notas dadas às teses comprovaram o meu juízo de especialista de que não houve um julgamento informado. Quis entender o que aconteceu. E fiquei sabendo que ao iniciar o concurso havia um quarto candidato. Este impugnou alguns dos nomes indicados para compor a banca sob alegação de que os mesmos seriam parciais em relação a ele e, pouco da antes do concurso, desistiu de prestá-lo.

Os internacionalistas que não haviam sido impugnados, renunciaram por motivos que desconheço. Sobraram os suplentes e nenhum deles era Professor de Direito Internacional ou no curso da sua carreira havia trabalhado com o Direito do Comércio Internacional. Esses Professores, de Direito Comercial e de Direito Tributário têm o conhecimento que qualquer intelectual atualizado hoje tem, genérico, sobre o Direito do Comércio Internacional. Os outros eram o Professor da Faculdade de Administração e Economia e a Professora da Faculdade de Filosofia que, como pude constatar, apesar de serem brilhantes e bem sucedidos, não tinham condições técnicas para argüir as teses.

Concluindo, a banca, segundo o critério constitucional (apesar da brilhante carreira de seus membros), não estava qualificada para julgar de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou função. Logo o concurso não existe.

Acredito que é hora da Universidade reformar os seus estatutos para impedir a formação de bancas em que não entrem pessoas da especialidade, porque, caso contrário, não se atingirá a eficiência exigida pela Lei Maior na escolha dos candidatos. É preciso também impessoalizar a forma da escolha para que se possa respeitar a moralidade. Com isso, voltaremos ao seio da Constituição e a Faculdade poderá ter os professores que merece pela sua tradição.

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*Sócio fundador do escritório L. O. Baptista Advogados Associados

 

 

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