O planejamento estatal e a segurança jurídica: a política de definição de preços mínimos na agricultura
André Guskow Cardoso*
1. Introdução
O referido mandado de segurança impugnou a edição extemporânea da Portaria 478/10 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, na qual são definidos os preços mínimos básicos para as culturas de inverno da safra 2010. Indicou-se que a portaria foi publicada em 30/6/10, e que a data de início de plantio da safra de trigo no Estado do Paraná foi em 11/3/10. Impediu-se, assim, que os custos da produção de trigo pudessem ser calculados com antecedência e segurança pelos produtores.
A impetração busca a invalidação da referida portaria e, liminarmente, a suspensão de seus efeitos, devendo prevalecer, para a safra de 2010, os preços mínimos estabelecidos na Portaria anterior do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (324/09).
2. Os termos da decisão que extinguiu o mandado de segurança
A decisão que extinguiu o mandado de segurança sem o julgamento de seu mérito, na forma do art. 10, da lei 12.016/09 (clique aqui) indicou que "o caso concreto lida com o momento anterior à colheita, ou seja, discutem-se as balizas de planejamento de produção com base nas políticas públicas agrícolas".
A decisão reputou que não haveria prova da "certeza e liquidez do direito invocado e nem demonstra que sua situação se amolda aos precedentes que menciona" e que "não se mostra verossímil a afirmativa de que a baixa do preço mínimo em comparação com o parâmetro oficial da safra de 2009 necessariamente implicará prejuízo aos produtores".
Conforme a decisão, "há, sim, mera especulação comercial que, em momento algum, traz consigo a necessária prova pré-constituída, a fim de caracterizar o efetivo prejuízo alegado".
Além disso, a decisão entendeu que "não é o Mandado de Segurança o instrumento adequado para a dilação probatória, que, no presente caso, seguramente seria necessária, sobretudo no caso de se comprovar a ocorrência do real prejuízo ao setor". Ressaltou, nesse ponto, que "o rito mais adequado para a impetrante discutir os eventuais prejuízos é o ordinário, pois terá de comprovar, após a colheita da safra atual e mediante cálculos e laudos técnicos aprofundados, que o planejamento governamental levado em conta na Política de Garantia do Preço Mínimo não se mostrou adequado aos interesses comerciais de seus representados, partindo-se do pressuposto, evidentemente, de que negociará diretamente com o Estado a produção não absorvida".
Por último, concluiu-se que "o simples fato de a Portaria não ter sido editada na época em que normalmente o governo a expede não acarreta por si só a nulidade sustentada, mas sim mera irregularidade, cujo atraso se justifica razoavelmente em detrimento das modificações na situação da crise mundial dos insumos, fato esse que é incontroverso e independente de prova nos autos".
A referida decisão foi publicada no Diário da Justiça do dia 9/9/10 e foi impugnada por meio de agravo regimental, ainda não julgado.
De qualquer modo, a questão suscita algumas discussões relevantes a respeito do tema da atividade estatal de planejamento, especialmente sob o prisma da segurança jurídica.
3. A atividade estatal de planejamento e fomento no setor agrícola
Inicialmente, ressalte-se que a atividade estatal de planejamento é consagrada pela própria Constituição (clique aqui). O art. 174 define que "como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado". Ademais, o parágrafo primeiro do referido dispositivo prevê que "A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento".
Enfim, a Constituição consagra de modo inequívoco a atividade de planejamento por parte do Estado brasileiro. Não há como se ter qualquer dúvida de que a Constituição expressamente atribuiu ao Estado afunção de planejar e que ressaltou que esta vincularia o setor público e seria indicativa para o setor privado. Mais do que isso, também definiu que as diretrizes e bases do planejamento seriam veiculadas por meio de lei.
No campo específico da política agrícola, o art. 187 da Constituição estabelece que "a política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes". A mesma norma constitucional estabelece que tal política deverá levar em conta vários fatores. Dentre estes estão "os instrumentos creditícios e fiscais" (inc. I) e "preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização" (inc. II).
A questão do planejamento estatal no setor agrícola é regulada concretamente pelo Decreto Lei 79/1966 (clique aqui), que estabelece os critérios para a fixação de preços mínimos e execução das operações de financiamento e aquisição de produtos agropecuários.
A garantia de preços mínimos se dá por meio de dois mecanismos diversos: a) comprando os produtos, pelo preço mínimo fixado; b) concedendo financiamento, com opção de venda, ou sem ele, inclusive para beneficiamento acondicionamento e transporte dos produtos (art. 4º). Enfim, no tocante à atividade estatal de planejamento no setor agrícola, a fixação dos preços mínimos para as safras de produtos agrícolas é essencial.
Mas a fixação de preços é relevante não apenas para viabilizar a adoção de ações estatais concretas para a implantação das ações de planejamento no setor agrícola. A definição dos preços mínimos é essencial para definir a conduta dos particulares. Basta verificar que a opção por uma determinada cultura ou outra depende, em parte da estimativa de retorno que o agricultor poderá obter com o seu plantio. Assim, se o preço mínimo assegurado pelo Estado for muito baixo, pode-se supor que haverá cultivo de outros produtos com retorno mais elevado.
Há, então, um inequívoco potencial indutor de determinados comportamentos por parte dos agentes privados.
A discussão do mandado de segurança recentemente rejeitado pelo STJ envolve justamente o momento da fixação dos preços mínimos para a safra de trigo 2010/2011.
4. O caráter essencial do fator tempo na atividade estatal de planejamento
A própria natureza da atividade estatal de planejamento, que envolve também a adoção de medidas indutoras de determinados comportamentos particulares, evidencia que o fator tempo é essencial na atuação do Estado.
Nesse aspecto, deve-se reconhecer que a atividade de planejamento caracteriza-se por alguns dados peculiares. A ação de planejar pressupõe a colheita de dados e informações, a definição de metas e objetivos e a escolha de meios para alcançá-los. Envolve, assim, a definição de pontos de partida, metas a serem alcançadas, além do desenvolvimento e da previsão de meios para conectá-los.
A ideia de planejamento encerra, justamente por isso, um aspecto temporal associado a um caráter essencialmente teleológico. Procura-se, com o planejamento, superar-se uma determinada situação fática, buscando-se o estabelecimento de uma situação futura, diversa da anterior e previamente determinada. Para isso, procura-se definir os instrumentos e meios necessários para tal mudança.
No caso da fixação dos preços mínimos de produtos agrícolas, a atuação do Estado destina-se a incentivar o cultivo de determinadas culturas pelos particulares e, assim, assegurar o abastecimento do mercado nacional. Ao assegurar um determinado preço mínimo para a compra pelo Estado de determinado produto agrícola, assegura-se àqueles que pretendem o seu cultivo um determinado retorno mínimo.
Nos termos do art. 187, II, da Constituição essa definição pressupõe que os preços sejam "compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização".
Porém, o mais relevante é o momento em que esses preços mínimos devem ser fixados. É evidente que a atividade de planejamento estatal deve ser adotada antes da realização da opção pelo particular, do cultivo de certo produto. De nada valerá a definição de preços mínimos, se o momento do plantio de determinada cultura já ocorreu (e, ressalte-se, esse momento varia de acordo com as diferentes regiões do país, considerando as características peculiares do clima regional).
Em qualquer caso, a fixação dos preços mínimos em momento posterior ao início do plantio de cada cultura viola as exigências de previsibilidade da atuação estatal e compromete a segurança jurídica. Aliás, é isso que assegura Decreto Lei 79/1966, que estabelece que "os preços mínimos definidos pelo CMN serão publicados por meio de portaria do Mapa, com antecedência de no mínimo 60 (sessenta) dias do início das épocas de plantio e de 30 (trinta) dias do início da produção pecuária ou extrativa mais abundante nas diversas regiões, consoante as indicações dos órgãos competentes." (art. 5º, §1º).
Essa antecedência mínima fixada pela legislação é imprescindível para que os agentes econômicos possam considerar os valores estabelecidos pelo Estado para cada produto agrícola. Dependendo dos valores divulgados, o agente poderá optar por cultivar outro produto de maior retorno econômico.
Pode-se afirmar que a fixação extemporânea dos preços mínimos frustra a própria finalidade da atividade estatal de planejamento no setor agrícola, na medida em que impede que os agentes adotem decisões tempestivas e suficientemente informadas a respeito do produto a ser cultivado em determinada região. E mais: viola a própria noção de planejamento, que pressupõe a definição prévia de condições antes da adoção de providências concretas pelos particulares ou pelo Estado.
Além disso, também ignora a exigência, derivada do princípio Republicano, de que o Estado assegure a segurança jurídica, mesmo no tocante às atividades de planejamento.
No caso que foi submetido ao exame do STJ, a questão envolvia ainda dados adicionais. O Estado não apenas ultrapassou o prazo fixado legalmente para a publicação dos referidos preços mínimos, mas também promoveu redução dos preços fixados para o trigo. Com isso, frustrou-se a expectativa dos produtores de que o preço mínimo seria, quando menos, mantido.
Não há dúvida de que isso pode gerar a responsabilização do Estado por essa conduta, na medida em que sobrevenham prejuízos aos produtores em razão da divulgação extemporânea. Mesmo no tocante ao planejamento, o Estado responde pelas ações que venham a gerar de forma indevida prejuízos aos particulares.
No entanto, o simples reconhecimento de que o Estado poderá vir a ser responsabilizado no caso de os preços mínimos terem sido fixados de forma equivocada não garante o controle judicial efetivo da atuação do Estado.
Como se trata de atividade estatal de planejamento, em que o fator tempo é essencial (e, no caso concreto, em termos estabelecidos expressamente pelo Decreto Lei 79/1966), a solução da remessa às vias ordinárias para eventual indenização a ser fixada em favor dos atingidos não parece ser suficiente. Isso é ainda mais evidente quando se verifica que eventual indenização levará anos para ser julgada em definitivo e ainda mais tempo para eventualmente ser concretizada.
Independentemente de haver mera "especulação comercial", como mencionado pela decisão proferida pelo STJ, ou prova efetiva de prejuízo aos produtores, pode-se afirmar que naquele caso havia violação ao direito líquido e certo dos substituídos da impetrante.
Trata-se do direito a que o Estado atue de modo tempestivo (na forma delimitada pelo Decreto Lei 79/1966), a fim de que o planejamento estatal consistente na fixação dos preços mínimos dos produtos agrícolas seja produzido no momento adequado. Trata-se de assegurar aos agentes privados tanto a previsibilidade da atuação estatal, como a segurança jurídica necessária para tomada de decisões relevantes.
Na medida em que a edição da portaria fixando os preços mínimos deu-se de forma extemporânea, violando as previsões do Decreto Lei 79/1966, há violação do direito dos particulares atingidos, passível de proteção por meio do mandado de segurança, independentemente de haver prova ou não de prejuízo com relação aos preços mínimos fixados. É que o simples fato de a atividade de planejamento ter sido produzida fora dos prazos estabelecidos pela legislação já acarreta prejuízo ao direito do particular e viola o dever de atuação de boa-fé do Estado.
5. Considerações finais
Portanto, na medida em que a atividade estatal de planejamento reveste-se de um aspecto temporal, associado a um caráter teleológico, é essencial que a atuação do Estado nesse campo seja produzida de forma tempestiva.
A atuação extemporânea do Estado nesse campo viola os princípios da segurança jurídica e o dever de atuação de boa-fé, além de frustrar a própria exigência de previsibilidade na atuação estatal. A desconsideração do fator temporal igualmente frustra a própria finalidade da função de planejamento, que exige que os incentivos promovidos pelo Estado sejam considerados pelos agentes privados antes da adoção de suas decisões.
_________________
-
Bibliografia
CARDOSO, André Guskow. O planejamento estatal e a segurança jurídica: a política de definição de preços mínimos na agricultura. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, n.º 43, setembro de 2010, disponível em https://www.justen.com.br//informativo.php?informativo=43&artigo=471, acesso em 29/09/2010.
_________________
*Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini Advogados Associdos
_______________