Os direitos reais sobre bens móveis e imóveis no âmbito do mercado financeiro e de capitais nas recuperações judiciais. Análise da jurisprudência pátria.
Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme*
I – Introdução
A inovação trazida pela lei 10.931/04 (clique aqui) no que tange a previsão de novas modalidades de garantias no mercado financeiro e de capitais, com o escopo de garantir e lastrear as operações financeiras, de forma a não gerar insegurança do mercado, bem como reflexos diretos na ampliação do crédito ofertado.
Em breve análise do dispositivo da novel legislação pode-se aferir que foram incluídos como objeto de alienação e cessão fiduciária os bens móveis fungíveis, objeto de grande controvérsia jurisprudencial e doutrinária.
Em seu parágrafo 3º o artigo 66-B prevê expressamente as possibilidades e modalidades de aplicação da predita inovação:
§ 3º É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada.
II – Da posse do bem pelo credor fiduciário
Observa-se que, em seu bojo, o dispositivo prevê que no âmbito de sistema do mercado financeiro e de capitais, o credor fiduciário detém a posse direta e indireta dos bens garantidores do crédito contrapondo o parágrafo 2º do art. 1.362 do CC (clique aqui) que regula as operações fiduciárias particulares, onde é exigido que o bem dado em garantia fique na posse direta do devedor fiduciário, ficando as suas expensas e cuidados os gastos com a conservação do bem.
Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor:
…....
§ 2º Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o devedor possuidor direto da coisa
Diretamente contraposto vem a previsão da lei especial:
"§ 3º É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor..."
Mister notar que, no que tange ao Mercado Financeiro e a natureza fungível do bem garantidor, tal proteção jurídica garante e estimula a oferta de crédito no mercado, tendo em vista que, no caso de inadimplemento contratual por parte do devedor fiduciário, a restituição do valor devido através da venda do bem ofertado se torna menos morosa e penosa, desengessando e garantindo de forma mais eficaz a obrigação contraída.
III - Da alienação de bens fungíveis
Outro aspecto controvertido que deve ser observado é a permissão da lei em se alienar bens móveis fungíveis, ponto que destoa do CC vigente onde é vedada tal prática, caso em que expressamente limita ao tema da alienação fiduciária, que tal garantia recaia somente sobre bens móveis infungíveis.
A fungibilidade dos bens passíveis de alienação fiduciária, garante um leque extenso de possibilidades no momento da obtenção de crédito, devendo ser admitido estritamente no âmbito das operações financeiras, vedando assim eventuais extensões de sua interpretação.
IV - Cessão fiduciária de Título de Crédito e a Recuperação Judicial
Em análise, faz-se de extrema relevância abordar a correlação entre o dispositivo analisado no presente parecer e a Lei de Falências e Recuperações Judiciais.
Nota-se que o dispositivo da lei falimentar abrange hipóteses em que créditos a serem percebidos ficam excluídos da recuperação judicial, como se observa no art. 49, § 3º:
Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos
…
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
É questão precípua classificar corretamente a natureza dos títulos de crédito no que tange a sua mobilidade.
Títulos de crédito são por sua natureza bens móveis, pois contém em um dos seus princípios mais relevantes e que são caracterizadores de sua essência, a circulabilidade, é necessário que um título de crédito se desvincule da sua obrigação original, pois trata-se de instrumento viabilizador de circulação de riquezas.
O legislador busca propiciar menor custo para obtenção de crédito, sendo que incompatível com as tendências atuais, bem como da realidade econômica, a interpretação restritiva do dispositivo legal vai de encontro com as reais intenções da criação da predita lei.
Em notável desavença com o legislador e com os princípios básicos de direito, segue acórdão abaixo transcrito:
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 30.089.001.017 AGRAVANTE: BANCO ABC BRASIL S/A AGRAVADO: INDUSTRIA DE MÓVEIS MOVELAR LTDA RELATOR: DESEMBARGADOR FABIO CLEM DE OLIVEIRA ACÓRDÃO AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECUPERAÇÃO JUDICIAL - CONTRATO SUJEITO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO - ABERTURA DE CRÉDITO GARANTIDA POR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE DUPLICATAS - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE ERRO NO CÁLCULO DO VALOR A SER DEVOLVIDO - MULTA DIÁRIA APLICADA CORRETAMENTE - RECURSO DESPROVIDO. 1. Via de regra, sujeitam-se à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos (art. 49, caput, da Lei 11.101/2005). 2. São duas as exceções previstas em lei. A primeira é a do banco que antecipou ao exportador recursos monetários com base em contrato de câmbio (art. 86, inciso II, da Lei 11.101/2005). A segunda é a do proprietário fiduciário, do arrendador mercantil e do proprietário vendedor, promitente vendedor ou vendedor com reserva de domínio, quando do respectivo contrato (alienação fiduciária em garantia, leasing, venda e compra, compromisso de compra e venda e compra ou venda com reserva de domínio) consta cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade (art. 49, §3º, da Lei 11.101/2005). 3. O contrato firmado entre as partes foi de abertura de crédito rotativo para financiamento de compras, garantido por instrumento particular de cessão fiduciária de duplicatas e direitos. 4. A cessão fiduciária que garante o contrato de abertura de crédito, prevista no § 3º do artigo 66-B, da Lei 4.728/65, transfere ao credor fiduciário a posse dos títulos, conferindo-lhe o direito de receber dos devedores os créditos cedidos e utilizá-los para garantir o adimplemento da dívida instituída com o cedente, em caso de inadimplência. 5. Tal hipótese não se assemelha à exceção prevista na lei de recuperação judicial no tocante ao proprietário fiduciário. Nesse caso, o que se pretende é proteger o credor que aliena fiduciariamente determinado bem móvel ou imóvel para a empresa, circunstância oposta ao que ocorre nos autos, já que aqui a empresa é que cedeu fiduciariamente os títulos ao banco. 6. O que se percebe da parte final do § 3º do artigo 49 da Lei 11.101/05, é que o legislador está se referindo a bens móveis materiais, pois faz alusão expressa à impossibilidade de venda ou retirada dos bens do estabelecimento da empresa no período de suspensão previsto no § 4º do art. 6º, circunstância que não se aplica aos títulos de crédito, pois os créditos em geral são bens móveis imateriais. 7. O banco agravante não é o proprietário fiduciário mencionado na exceção do artigo 49, § 3°, da Lei n° 11.101/2005, e, portanto, seus créditos estão sujeitos aos efeitos da recuperação. 8. A mera afirmação de que o valor a ser devolvido está equivocado não tem o condão de elidir o parecer técnico elaborado pelo Administrador Judicial. 9. Considerando a natureza da demanda, a necessidade de se imprimir agilidade e efetividade ao plano de recuperação da agravada, já homologado no Juízo de origem, e a capacidade financeira do agravante, tenho que o valor arbitrado a título de astreinte, nesse momento, não transpõe os limites da razoabilidade. 10. Recurso conhecido e desprovido. VISTOS, relatados e discutidos estes autos, ACORDAM os Desembargadores que integram a Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, na conformidade da ata e notas taquigráficas, À UNANIMIDADE DE VOTOS, NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.
V – Da limitação e aplicação subsidiária do Código Civil
Os artigos que versam sobre a propriedade fiduciária, não traziam em seu texto as limitações na aplicação destes dispositivos, tornando o tema nebuloso e controverso tanto doutrinariamente quanto jurisprudencialmente, sendo assim a Lei 10.931/04, além de inserir o artigo 66-B na Lei de Mercado de Capitais, inseriu também o art. 1.368-A no Código Civil Brasileiro, onde se limita a aplicação dos dispositivos, e admite que nos casos regidos por lei especifica o Código Civil seja aplicado subsidiariamente.
Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial. (Incluído pela lei 10.931, de 2004)
Em leitura apurada, percebe-se a ausência de regulamentação detalhada sobre os institutos que a nova lei alterou na Lei de Mercado de Capitais, devendo então de forma ponderada aplicar os dispositivos contidos nos arts. 1.361 a 1.368-A do Código Civil Brasileiro, seção esta que regulamenta a propriedade fiduciária, e sendo assim opera de modo a atribuir a esse tipo de modalidade de garantia, o vigor dos velhos direitos reais, assegurando e lastreando as operações financeiras.
VI – Do predomínio dos direitos reais
Historicamente o direito real é tido como um dos institutos mais sólidos no ordenamento jurídico pátrio, pois garante o direito de uso, gozo e fruição da propriedade podendo dispor livremente da mesma.
A propriedade fiduciária no âmbito do mercado financeiro e de capitais, traz para os bem móveis fungíveis as características dos direitos reais, antes dadas somente as hipóteses previstas no CC, ou seja, no caso em tela os títulos de crédito cedidos fiduciariamente são considerados bem móveis garantidos pelo direito real.
Partindo deste ponto é imperativa a análise comparativa entre os diversos institutos afrontados no v. acórdão nota-se que, equivocadamente o debate e a relevância da supremacia dos direitos reais foram deixados de lado, apreciando-se somente os debates concernentes a função social da empresa e dos aspectos relativos a sua recuperação judicial.
O direito real é instrumento de segurança jurídica, é instituto garantidor da propriedade e do direito a garantia, propiciando através dele uma dinâmica mais sólida nas operações financeiras.
Como já dito em tópico anterior, a intenção da criação da Lei objeto deste artigo é viabilizar um volume maior de crédito disponível, onde o v. acórdão prolatado combate de forma frontal tais intenções, abrindo um precedente jurídico inaceitável, pois traz imensa insegurança jurídica e econômica nas operações financeiras e creditícias.
VII – Da preservação da função social do contrato
É patente o atentado ao acordo de vontades firmado entre as partes através de contrato, inadmissível em face ao sistema jurídico vigente.
Contrato é por definição acordo de vontades celebrado entre as partes onde são constituídos direitos e obrigações para ambas as partes, tornando-o exigível e com eficácia entre elas, em outras palavras, o contrato faz lei entre as partes.
A teoria contratualista moderna delimita a ação dos contratantes nos limites da função social do contrato, ou seja, a lei impede que sejam utilizadas contraprestações desproporcionais obrigando as partes a utilizar o contrato de forma sensata utilizando-se sempre a boa-fé como parâmetro guia.
A ideia tradicional do "pacta sunt servanda" continua em pleno vigor, balizado apenas pelos limites impostos pela função social do contrato, ainda obrigando as partes ao seu estrito cumprimento, pois é finalidade precípua da celebração do contrato.
A inobservância dos princípios contratuais é mácula irreversível nas relações particulares, ainda mais quando se trata de contratos amparados pelo direito real no âmbito do mercado financeiro e de capitais.
O acordo entre as partes deve ser cumprido em sua integridade para que o contrato cumpra sua função social, e não para que o mesmo fragilize as operações financeiras, desacelerando o desenvolvimento e a oferta de crédito.
VIII – Conclusão
Extrai-se deste breve estudo que a lei que incluiu o art. 66-B, trouxe ao amparo do sistema jurídico pátrio, novas modalidades de proteção ao crédito ofertado de forma a aliar a segurança jurídica com a segurança financeira e econômica do país, estimulando a oferta de crédito.
Sem prejuízo da função social do contrato, o mesmo deve ser cumprido integralmente, reforçado ainda pela garantia real que juntamente com o crédito cedido formam seu objeto, ampliando a repercussão e impacto na sociedade e ordem econômica.
A função social do contrato, atribuída aos contratos de garantia pautados pelo direito real nas operações de crédito é a preservação e a observância do desenvolvimento econômico do país, sendo indispensável que seja assegurada de forma plena o direito a garantia, de forma que não comprometa o fornecimento do crédito ao mercado.
A nova legislação buscou aferir características antes atribuídas somente hipóteses previstas no CC, elevando a alienação de bens fungíveis à categoria de direito real, de forma a potencializar o desenvolvimento econômico, sendo que qualquer posicionamento contrário a este propósito constitui afronta direta aos princípios básicos e diretores das relações jurídicas particulares.
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*Sócio do escritório Almeida Guilherme Advogados Associados
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