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Aquisição de terras por estrangeiros

No final de agosto, foi publicada a revisão do parecer da Advocacia Geral da União (AGU) que tratava das regras aplicáveis à aquisição de propriedades rurais por estrangeiros. Talvez a demora na oficialização do novo entendimento do Governo Federal – afinal, o parecer agora aprovado data de dois anos atrás – revele a falta de convicção do próprio governo quanto a ser possível demonstrar que “alguns são mais iguais que os outros”, na linha do que cunhou George Orwell, na sua obra inesquecível.

10/9/2010


Aquisição de terras por estrangeiros

Sérgio Varella Bruna*

No final de agosto, foi publicada a revisão do parecer da Advocacia Geral da União - AGU que tratava das regras aplicáveis à aquisição de propriedades rurais por estrangeiros (clique aqui). Talvez a demora na oficialização do novo entendimento do Governo Federal – afinal, o parecer agora aprovado data de dois anos atrás – revele a falta de convicção do próprio governo quanto a ser possível demonstrar que alguns são mais iguais que os outros, na linha do que cunhou George Orwell, na sua obra inesquecível.

Para a AGU, a restrição prevista na vetusta lei 5.709/71 (clique aqui), quanto à aquisição de terras rurais por empresas de capital estrangeiro, permaneceria em vigor após a CF/88 (clique aqui), em que pese a própria AGU e a Presidência da República já terem afirmado o contrário. E mesmo que, desde então, nem a lei, nem a Constituição tenham sido modificadas.

O fato é que a norma que o parecer pretende ressuscitar equipara a estrangeiros empresas brasileiras de capital estrangeiro, para fins de aquisição de propriedades rurais. Basta ler o § 1º da lei 5.709/71. Se valer a restrição, essas empresas somente poderão adquirir terras se observados diversos limites quantitativos e, o que é pior, tiverem seus projetos agrícolas aprovados pelo governo, sabe lá Deus por quais critérios.

O entendimento do novo parecer, entretanto, é flagrantemente inconstitucional. Primeiro, porque a Constituição veda que se façam "distinções de qualquer natureza" entre brasileiros e os estrangeiros que aqui vivem (art. 5º, caput). Se assim é, o que dizer da hipótese de restrições entre "brasileiros"? Sim, porque a empresa não perde sua nacionalidade brasileira por ter capital estrangeiro. Aliás, o Constituinte não poderia ser mais explícito no trato do tema. Vedou o estabelecimento de distinções entre brasileiros "natos" e "naturalizados" (art. 12, § 2º) e proibiu União, Estados, Distrito Federal e Municípios de "criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si" (art. 19, III).

Diz o parecer da AGU que a ressurreição da norma em tela seria justificável pela regra constitucional que autoriza o legislador a disciplinar "com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro" (CF, art. 172). Esqueceu-se, porém, que a atual disciplina dos investimentos estrangeiros no Brasil não diz com a nacionalidade do titular do capital e sim com o fato de ser o titular desse capital residente, domiciliado ou sediado no exterior (art. 1º, da lei 4.131/62). Nesse contexto, "é preciso lembrar que, à vista do que estabelece o art. 1º da lei 4.131/62 (clique aqui), a titularidade de capitais estrangeiros não gira em torno do conceito de nacionalidade, senão em torno do conceito de residência, domicílio ou sede no exterior" (Átila S. A. Leão, "O Capital Estrangeiro no Sistema Jurídico Brasileiro").

Fica claro, portanto, que a lei 5.709/71 não disciplina investimentos de capitais estrangeiros na aquisição de terras rurais. Disciplina, sim, a aquisição de propriedades rurais por não-nacionais, seja qual for a origem do capital por eles aplicados para tal fim.

De fato, uma pessoa física estrangeira, domiciliada no País, se quiser adquirir uma propriedade rural no Brasil, terá que fazê-lo com "capital nacional" (cf. art. 1º da lei 4.131/62). Estará, a despeito disso, sujeita às limitações previstas na lei 5.709/71. Já um brasileiro domiciliado no exterior, que lá tenha seus bens, para adquirir a mesma propriedade, deverá fazê-lo com "capital estrangeiro", devendo registrar a remessa de recursos no Banco Central. Não obstante, por ser de nacionalidade brasileira (a despeito da origem do capital), essa aquisição, ao revés, não estará sujeita às limitações previstas na lei 5.709/71.

Torna-se assim evidente que o parecer pretende proibir que a aquisição se dê por brasileiros (empresa brasileira) sempre que seu controlador for estrangeiro, a despeito da origem do capital, quer seja ele estrangeiro, quer nacional. Trata-se, pura e simplesmente, de discriminação entre brasileiros (entre empresa brasileira de capital nacional e empresa brasileira de capital estrangeiro), o que é vedado pelo art. 19, III, da CF.

Em segundo lugar, tampouco tem razão o novo parecer ao buscar fundamento no art. 190 da Constituição, que autoriza o legislador a limitar a "aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira".

Como visto acima, não cabe à lei estabelecer distinções entre brasileiros, sejam eles natos ou naturalizados (pessoas físicas), de capital brasileiro ou estrangeiro (pessoas jurídicas). A mera leitura do art. 190 indica que a restrição que se admite quanto à "aquisição" ou "arrendamento" de propriedade rural deve ser estabelecida pela lei quanto a "estrangeiros" (pessoas físicas ou jurídicas). Portanto, descabe cogitar da utilização dessa norma para imposição de semelhantes restrições a brasileiros (pessoas jurídicas de capital estrangeiro).

Embora o novo parecer argumente que a disposição constitucional em apreço não pode ser interpretada literalmente, o fato é que a mais consagrada regra de interpretação aponta claramente para a solução oposta àquela indicada pela AGU, uma vez que é pacífico que as disposições restritivas devem ser objeto de interpretação estrita. Tampouco cabe invocar interpretação sistemática da Constituição para justificar a interpretação extensiva, com base em conceitos tão elásticos e mutantes quanto a "soberania", o "desenvolvimento nacional" ou a "independência nacional".

Por detrás da revisão, afirmam-se louváveis objetivos como o de preservar a soberania, a independência do país e a segurança alimentar. Mas cabe lembrar que tais conceitos são demasiadamente imprecisos e podem mudar de feição conforme mudem os ocupantes do poder. Assim, cabe refletir sobre se é seguro, do ponto de vista democrático, permitir que garantias constitucionais como a da nacionalidade sejam de tal modo flexibilizadas, por mero exercício de interpretação, baseado em conceitos tão vagos e mutantes. Tudo isso sem que se mudem a lei ou a Constituição.

É triste, mas nosso continente tem sido pródigo em exemplos de que isso pode ser perigoso e que talvez seja tarde quando acordarmos querendo passar a tranca na porta arrombada.

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*Doutor em Direito pela FDUSP e sócio de escritório Lobo & de Rizzo Advogados

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