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Instabilidade jurídica

A instabilidade jurídica não é uma instabilidade como as demais. Ela está na base e é a raiz de todas as instabilidades que ameaçam a segurança de nossa vida, a instabilidade moral, social, política e econômica.

31/8/2010


Instabilidade jurídica

Gilberto de Mello Kujawski*

A instabilidade jurídica não é uma instabilidade como as demais. Ela está na base e é a raiz de todas as instabilidades que ameaçam a segurança de nossa vida, a instabilidade moral, social, política e econômica. Por isso, se quisermos melhorar a estabilidade em todos os setores em que ela está perigando, temos que começar por restabelecer a estabilidade da ordem jurídica.

Afinal, por quê ou para quê existe o Direito? Neste exato momento, nosso planeta, a Terra, está girando em alta velocidade ao redor do sol, mas, sentados confortavelmente em casa, no trabalho ou no carro, nada percebemos dessa deslocação cósmica vertiginosa. Tudo nos parece repousando em paz e em ordem, a natureza, as cidades, as casas e os jardins. Da mesma forma nos escapa que a vida humana, nossa vida, é constitutivamente insegura. Constitutivamente, isto é, em si mesma, porque a vida nos é dada a todos, mas temos que fazê-la por nós mesmos, como um desafio de cada dia, de cada hora, de cada minuto. Daí que "viver é perigoso". Não porque os perigos nos assaltem de fora, e sim porque todo nosso futuro depende de nós, do que fazemos; e estamos sujeitos a errar, ou a não contar com meios suficientes para agir. O perigo é algo intrínseco à condição humana.

Por isso mesmo, porque a vida é constitutivamente perigo e insegurança, temos que assegurar alguma dimensão da vida na qual podemos nos plantar e viver com certa estabilidade, a salvo de acidentes bruscos e ameaçadores que comprometem nosso futuro. Pois esta dimensão na qual nos refugiamos para saber a que nos ater, e poder afrontar com brio o problematismo da existência, é o Direito, a chave, a pedra de toque, a raiz de toda estabilidade.

Se o Direito está ameaçado na sociedade, é como se ele não existisse. E se o Direito não existe, parafraseando Dostoievski, tudo é permitido. Todas as infrações éticas, os desvios políticos, a desordem social, as ciladas econômicas se explicam pela falência do Direito como o grande responsável pela ordem e estabilidade de todo o corpo social, em sua dimensão pública e privada. O Direito deixou de ser terra firme para converter-se em terreno pantanoso no qual não podemos firmar os pés para andar com segurança e dignidade. Falida a ordem jurídica, a vida social se transforma naquela "guerra de todos contra todos" referida por Hobbes. Instala-se o reino da violência e da arbitrariedade, afetando a sociedade, a política, a moral e a economia. O poder público perde legitimidade e deixa de ser "público".

"Todos os grandes povos contribuíram para destruir todo direito, e hoje já ninguém tem direito porque não há direito, porque significa não havê-lo que, por puro acaso, restem como ilhas flutuantes tal ou qual instituição de direito privado, as quais, uma vez quebrada a arquitetura integral do sistema jurídico, se degradam em meros e inconsistentes regulamentos. De nada serve que continue funcionando a parte do Código Civil que prescreve sobre a propriedade, se ninguém sabe hoje o que será amanhã a propriedade. De nada serve que continue trabalhando inercialmente o Código Penal quando ninguém sabe se o que hoje está fazendo e que sempre considerou correto, não vai converte-se, mediante alguma lei com efeito retroativo, de boa ação, em crime e delito" (Ortega y Gasset, "Una interpretación de la historia universal", Obras Completas, IX, 224).

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*Ex-Promotor de Justiça. Filósofo e ensaísta





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