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A perigosa distribuição de emergência do TJSP

A dita reforma do Judiciário não consegue ocultar uma certa e incabível revanche contra os juízes, parecendo mesmo que se pretendeu investir contra algumas coisas que exalavam a privilégio.

15/4/2005

A perigosa distribuição de emergência do TJ/SP


Clito Fornaciari Júnior*

A dita Reforma do Judiciário não consegue ocultar uma certa e incabível revanche contra os juízes, parecendo mesmo que se pretendeu investir contra algumas coisas que exalavam a privilégio. Todavia, combatendo-os só com a paixão, longe da racionalidade que se fazia imprescindível, cometeram-se equívocos pelos quais, em última análise, mais uma vez, o jurisdicionado irá ser penalizado. Isso se verifica, entre outros pontos, quanto à imposição de distribuição imediata dos processos represados nos tribunais (art. 93, XV, CF).

Essa questão toca muito de perto, quando não com exclusividade, ao Poder Judiciário do Estado de São Paulo, no qual cerca de seiscentos mil processos aguardavam distribuição, cujo tempo médio de demora para que ela ocorresse girava em torno de cinco anos. Não se pode deixar de lamentar o triste quadro a que se chegou, para o que contribuiu, antes de qualquer outra causa, o aumento dos direitos assegurados aos cidadãos a partir da Constituição de 1988, que trouxe à Justiça postulações de que antes não se cogitava (dano moral, concubinato, improbidade administrativa, consumidor etc.).

Some-se a esse fator, sem dúvida o mais importante, a circunstância de a estrutura orgânica e administrativa do Judiciário não se ter alterado, em essência, sendo muito poucos os cargos novos de juízes e desembargadores, além daqueles de funcionários, que, de outro lado, com salários achatados e nenhuma perspectiva de carreira, não despertam o interesse que se esperaria viessem a despertar. Faltou, pois, investir-se, a começar pelo aspecto financeiro, no Judiciário e nas pessoas que o integram, para o que, certamente, falta interesse do Estado, dado que o melhor funcionamento da Justiça seria a ele mais danoso, de vez que mais deve do que tem a receber.

Ademais, o Judiciário, cobrado pela Constituição e pelas leis que a disciplinaram, deslocou seus preciosos esforços para as pequenas causas, levando juízes e funcionários para trabalhar na tentativa de solucionar problemas que, outrora, sequer eram levados à Justiça, sendo resolvidos pela comunidade, pelo pároco da igreja, pelo delegado da Polícia ou pelo bom senso das pessoas.

Aduza-se a isso tudo uma cega reforma processual, que, propalando a existência de um exagerado número de recursos e um burocrático sistema de ritos, tratou de esfacelar o Código de Processo Civil, transformando-o em uma colcha de retalhos que hoje mal se pode conhecer, o que o fez afastar-se, simultaneamente, do rigor científico e da concepção de ser mera praxe, que necessariamente haveria de ser conhecida por todos. Pôs, então, na contra-mão do que seria razoável, certos recursos (agravo de instrumento, v.g.) e induziu, a partir das novas regras, a crer que aos magistrados era dado o poder de criar a regra processual que seria pertinente para a condução do caso, esquecendo-se de que a lei de processo é também asseguradora de um direito e que, quando se a ofende, reclama a interposição de recurso, muitas vezes restrito ao debate processual, mas que não deixa de ser importante e pertinente, pois, de outra forma, não se conseguiria chegar à justiça.

Por essas e outras, os tribunais entraram em verdadeiro colapso, não dando conta sequer de julgar o mesmo número de processos novos que chegavam, fazendo acumular um passivo de monta, crescendo todos os dias, tornando, assim, realidade o dito popular de que justiça tardia não é justiça, além de ser fonte de estímulo à própria recorribilidade, de vez que os sem-razão passaram a colher expressivas vantagens do processo, a contar da circunstância de não serem molestados, enquanto o processo dormita nos escaninhos dos tribunais.

Seria leviano atribuir a imensa sobra de processos a uma suposta letargia coletiva dos julgadores, a um imaginado desinteresse, a uma indiferença para com a importância da função que lhes cumpre desempenhar. Revela-se, ao contrário e principalmente para aqueles que, por viverem das coisas da Justiça, guardam compromisso com a devolução da magnitude ao Judiciário, que as coisas chegaram a esse estágio por conspiração de alguns fatores, que não foram combatidos, a tempo e hora, com o necessário vigor, que, imprescindivelmente, exigiria fosse o Judiciário tratado como um Poder, respeitando-se a sua real importância na estrutura do Estado brasileiro.

A solução para este quadro geral e, em particular, para a própria infinidade de processos aguardando julgamento não será alcançada, certamente, com a determinação, tal como consta da Emenda Constitucional n.° 45, de que não mais se retenham processos na distribuição, fazendo com que todos, a partir do ingresso no Tribunal, já tenham um relator designado, que, desde logo, passa a nele funcionar. Até para se combaterem calamidades há de se ter organização, sob pena de dar lugar, em substituição a um mal, a alguns outros males quiçá maiores e não sanáveis no futuro.

Com certeza dessa forma também pensam eminentes magistrados de nosso Estado, pois essa solução emergencial já foi cogitada, anteriormente, mas não se concretizou, de vez que nela não se viu um modo de resolver o problema. Todavia, como assim foi determinado, assim vem sendo cumprido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Para tanto, além dos desembargadores, alguns deslocados de suas especialidades e da área em que vinham atuando, foram chamados a ajudar nessa cruzada de emergência juízes de primeiro grau, que estão sendo contemplados com processos para julgar, sem prejuízo do exercício de suas atividades na primeira instância.

Sem a distribuição determinada, existe um depósito de processos – ou coisa que a tanto se equivale – controlado por uma secretaria (cartório), que se reporta à presidência do tribunal, relativamente a todos os expedientes relacionados a esses processos. Não são poucos os problemas que aí existem, indo desde o simples exame dos autos pelos advogados e eventuais interessados, que precisa de quem os localize e de espaço para a consulta, até a prolação de decisões de urgência, que se colocam apesar de o processo estar no aguardo de sua distribuição, sem atividade nele próprio.

Com a distribuição, cada um dos desembargadores e, da mesma forma, cada um dos juízes convocados para essa tarefa, terá sob sua responsabilidade, desde logo, alguns milhares de processos. Teriam espaço físico para armazená-los? Teriam como organizá-los? Contariam com uma estrutura de apoio capaz de classificar os autos e ensejar que todos aqueles que precisam ou tenham interesse de examiná-los possam fazê-lo? Disporiam de estrutura e tempo suficientes para apreciar as diversas petições que neste entretempo são apresentadas, às vezes requerendo uma simples certidão de objeto e pé ou, então, promovendo uma medida cautelar voltada ao resguardo de um direito maior? Certamente que não. Quando se constata que a estrutura concentrada atual não consegue dar vazão a esses procedimentos – chegou-se até a marcar dia para ver os autos, depois de pedido prévio – e quando se verifica que até uma estrutura única não tem recursos materiais e humanos suficientes para dar vazão a essas práticas, há de se concluir que não será possível criar cerca de trezentas estruturas que seriam menores de tamanho, mas não de menor complexidade.

Na distribuição represada, existia uma ordem e, mais do que isso, a certeza de que, após a distribuição, via de regra, em quinze ou trinta dias, o processo estaria colocado em mesa para julgamento. Ninguém, ressalvadas as preferências legais, furava a fila; nem mesmo um bom padrinho ou um grande amigo conseguia criar uma preferência ou agilizar aquilo que, pelas regras vigentes, não seria preferencial. O próprio juiz, recebendo um número menor de processos, não se sentia à vontade para julgar somente os mais simples ou os de menor tamanho. Julgava-se na ordem da distribuição, o que não deixava de ser alentador, a par de não criar um outro tentáculo de injustiça.

Com a distribuição integral, o controle da ordem desaparece. Os processos ficam à mercê do juiz que julgará antes aqueles que bem entender, não tendo nenhum compromisso de respeitar a antigüidade de cada feito. Seu critério poderá ser julgar os que versem sobre assuntos que entende mais interessantes, sobre matérias acerca das quais tenha uma melhor base teórica. Poderá preferir os que abordem questões de direito ou, então, aqueles que discutam somente fatos. Poderá escolher os autos pequenos, supondo-os mais simples, ou, então, pensar em limpar logo os mais volumosos, criando espaço para guardar melhor os outros.

Não se pode descartar que se cria um instrumento de pressão sobre os juízes, que certamente serão molestados pelos ansiosos, pelos supostos amigos, que são ou fazem-se íntimos, ou sabe-se lá por quem. Retira-se o sossego do julgador, além de dar-lhes mais um argumento para dizerem que não recebem ninguém em seu gabinete. Oferece-se, de outro lado, fermento suficiente para fazer crescer a injustiça, agora a injustiça de uma demora desigual, pois não se pode esperar que o juiz, indiferente àquilo que vê sob seus olhos, continue friamente a agir, a trabalhar e a decidir, tal como se todos os processos estivessem fora do seu alcance. Não seria humano.

Melhor não se revela a utilização dos juízes de primeiro grau para decidir em segunda instância. Sem embargo da inconstitucionalidade que se prenuncia, chamado a uma função mais importante, sem dúvida, o juiz prestigiará essa nova missão em detrimento de seu trabalho rotineiro. Com isso, serão sacrificadas as suas audiências, que poderão não ser realizadas, pois ele se encontra julgando no Tribunal. Igualmente, as sentenças irão para um segundo plano, até porque o trabalho que lhe foi encomendado é exercido mais proximamente daqueles que o avaliam, de modo que será prudente cuidar melhor daquilo que mais aparece aos olhos dos superiores.

Mais grave, porém, é a circunstância de os juízes de primeiro grau estarem revendo decisões de magistrados de sua mesma hierarquia, o que, certamente, cria enorme constrangimento: fator inibidor da reforma das decisões e, pois, com potencial carga de injustiça. Assim, em relação a esses magistrados, além de todos os outros inconvenientes, existe esse muito particular, mas de enorme gravidade, principalmente diante do fato de que ambos (o juiz recorrido e o apreciador do recurso) estão na mesma hierarquia e, desse modo, em igual estágio na carreira e com idênticas aspirações.

Por fim, o tratamento de emergência que agora se passa a conferir à situação dos processos é extremamente perigoso. As calamidades são, costumeiramente, combatidas com medidas nas quais se transige com a qualidade e com melhores controles, sendo que apenas interessa salvar o que for possível ser salvo. Esse critério não se mostra idôneo quando o bem a ser protegido e salvo é a justiça: sem dúvida alguma, patrimônios inteiros estão submetidos ao risco de uma decisão que tardou e que também poderá não ser justa, o que demonstra não estar a Justiça também cumprindo a velha esperança popular de que pode tardar, mas não falhará.

Se a determinação da reforma não foi a melhor, há que se trabalhar para não a fazer ainda pior.
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*Advogado do escritório Clito Fornaciari Júnior Advocacia









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