A extinção da prescrição retroativa e a ilusão penal
Eduardo Reale Ferrari*
Heidi Rosa Florêncio*
Além disso, a nova lei revogou o parágrafo segundo do art. 110 do CP e alterou da seguinte forma o parágrafo primeiro do referido artigo: "A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou da queixa".
Diante disso, o termo inicial do prazo prescricional – observando a pena aplicada – somente será verificado após o recebimento da denúncia ou da queixa-crime (quando o fato for processado mediante ação penal privada).
O lapso temporal verificado entre a data dos fatos e o recebimento da denúncia deixa de ser importante para efeito de prescrição in concreto, o que significa dizer que, durante a fase de investigação policial, somente se verificará a ocorrência do instituto da prescrição em virtude da pena máxima abstrata prevista para o delito investigado.
Assim, a autoridade policial fica autorizada a investigar um indivíduo durante anos, sem se preocupar em terminar a investigação. O limite máximo da investigação é o prazo prescricional condicionado à pena máxima abstrata, sendo que o prazo prescricional agora ficou difícil de ser atingido durante esta fase inquisitorial.
Na verdade, esta alteração legislativa acaba com o prazo que antes era observado pela Polícia e pelo MP para findar a fase pré-processual, no intuito de tentarem evitar a ocorrência de eventual prescrição do delito investigado.
Importante ressaltar que a prescrição retroativa verificada entre a data dos fatos e o recebimento da denúncia, extinguida pela lei 12.234/10, foi introduzida no Brasil a partir de construção jurisprudencial sedimentada no STF e, posteriormente, foi ratificada pelo CP na Reforma da Parte Geral de 19841, tendo como premissa ser a prescrição uma punição aos entes do Estado em face da inércia derivada da perda do jus puniendi.
Tal punição à inércia agora deixa de existir no âmbito da investigação, pelo menos no que tange à sanção fundamentada, trazendo uma situação de desigualdade se comparado com a atividade jurisdicional, ainda pressionada pela sanção em caso de eventual inércia durante o início do processo e a condenação de primeiro grau.
Eliminar a prescrição retroativa entre o fato e o início do processo – sob o argumento de que os crimes de difícil apuração exigem maior atenção da Polícia, e que, por isso, acabam redundando em extinção da punibilidade do agente em razão da prescrição retroativa – é uma falácia, pois quando ocorre a prescrição entre o fato e o recebimento da denúncia, isso deriva de uma não investigação policial que às vezes perdura por décadas, não servindo essa premissa como justificativa para a extinção da prescrição retroativa.
De acordo com a justificativa apresentada no PL 1.383/03, que deu origem à lei 12.234/102, a prática da prescrição retroativa "tem se revelado um competentíssimo instrumento de impunidade", além de ser "potencial causa geradora de corrupção".
Mais uma vez observa-se que o legislador se vale inadequadamente de leis paliativas e quiçá eleitoreiras para dar uma satisfação ao clamor público ante a sensação de impunidade veiculada pela mídia.
A impunidade deve sim ser preocupação do legislador. Todavia, não é extinguindo a prescrição retroativa antes do recebimento da denúncia que se afastará a impunidade, mas sim se investindo em aparato policial, por via de uma estrutura ágil e eficiente, e que, concomitantemente, respeite os preceitos constitucionais durante a investigação, a fim de minimizar a impunidade.
Ainda que se possa questionar acerca da existência do instituto da prescrição retroativa, genuinamente brasileiro, não podemos deixar de afirmar ser mais uma falácia demagógica a afirmação de que a extinção da prescrição retroativa entre o fato e o recebimento da denúncia se justifica em face de uma causa de impunidade.
Destarte, a alteração desta lei da forma como foi feita e com base na falsa premissa ideológica, acarretará uma afronta ao princípio da duração razoável do processo e da celeridade processual, assegurado no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República.
Ora, era justamente a ocorrência da prescrição retroativa, extinta com a nova lei, que fixava a observância do mencionado princípio na fase de investigação policial. Com a ausência deste prazo regulador, será comum a partir de agora a existência de inquéritos policiais que perdurem dez ou até quinze anos de investigação, sendo um contrassenso à própria natureza jurídica das sanções.
Partindo da premissa de que a prescrição se funda na Teoria da Prova e na Teoria do Esquecimento, qual o fundamento jurídico para se punir alguém após tantos anos, com prazos que somente na investigação podem perdurar por 10 a 15 anos?
A nosso ver, não se estará punindo o cidadão com base nos fins das sanções, consistente na crença do ordenamento jurídico e nas crenças na intimidação ao autor e em sua emenda (Teoria do Esquecimento) ou mesmo no vivenciamento da prova (Teoria das Provas).
Ao contrário, se estará punindo por vingança social, não se estabelecendo um prazo razoável para investigar sob o manto de que é "necessário acabar com impunidade", alimentada por uma concepção ideológica e que constantemente defende a resolução das questões por meio de mera e pontual alteração legislativa.
O prazo de 30 dias para terminar o inquérito policial em caso de réu solto, previsto no art. 10, do CPP (clique aqui), que já não era observado antes da vigência da nova lei, passará a ser motivo de piada, pois não se saberá sequer quanto tempo demorará um inquérito policial, que, de acordo com a alteração da redação do Código Penal, ficou totalmente isento de regulamentação.
Como se vê, tenta-se resolver um problema - impunidade - de modo inadequado, por meio da criação de outro (legitimidade da morosidade na fase investigativa).
A nosso ver, mais uma vez o legislador, em ano eleitoral e de forma demagógica, optou pelo caminho mais curto, iludindo a população sob o argumento de que tal alteração tentará acabar com a impunidade.
Em vez de se pensar em aparelhar-se adequadamente o Estado para combater os crimes de difícil apuração, investindo em tecnologia e treinamento de pessoal, com salários dignos e planos de carreira, preferiu-se supostamente "acabar" com a impunidade por meio da eliminação da concretização da extinção da punibilidade: o termo da prescrição antes da denúncia ou da queixa-crime.
Além disso, equivoca-se o legislador ao argumentar no sentido de que a extinção da antiga prescrição retroativa acarretará diminuição da corrupção não fazendo o mínimo sentido afirmar-se ser o instituto "potencial causa geradora da corrupção".
Primeiro porque raros são os casos em que, em face da sanção concreta à corrupção, acaba-se por atingir a extinção da punibilidade pela prescrição retroativa entre o fato e o recebimento da denúncia, destacando, secundariamente, que o problema da prescrição no tipo penal da corrupção pode sempre subsistir, em especial, em face da morosidade durante a fase processual.
O caminho escolhido foi no sentido de legitimar a maior morosidade, pois se antes a autoridade policial precisava terminar as investigações para não ver a prescrição ocorrer em suas mãos, agora a autoridade policial não precisará ter preocupação com prazos, indo de encontro com a própria existência do instituto da prescrição, criando-se uma "prescrição especial" para as autoridades da fase policial, que distingue aqueles que atuam durante a fase investigativa se comparados com os da fase jurisdicional.
Da forma como foi feita a alteração do Código Penal, não temos dúvida em afirmar que houve um desvirtuamento do próprio instituto da prescrição. Como dito anteriormente, se não há prazo para a autoridade policial terminar a investigação, um sujeito poderá figurar como investigado em um inquérito policial durante anos, em algumas situações, sem ter ao menos conhecimento disso.
O próprio conceito de prescrição parece atingido com a alteração legislativa. Segundo Aníbal Bruno3, "a prescrição no Direito Penal é a ação extintiva da punibilidade que exerce o decurso do tempo, quando inerte o poder público na repressão do crime".
Nesse aspecto, oportuno observar ainda a lição de Basileu Garcia4: "De variados prismas se tem encarado o seu fundamento. Com o caminhar do tempo, modificam-se as condições pessoais do delinquente que logrou subtrair-se à ação da Justiça. A pena possivelmente deixou de ser-lhe útil, como processo regenerador. (...) E os longos intervalos entre a infração e o procedimento repressivo importam em incertezas perigosas na apreciação do fato. A prova torna-se difícil, precária. As testemunhas desaparecem, ou perdem a memória de circunstâncias essenciais. Surge a eventualidade de erros judiciários".
Importante consignar que não se critica a iniciativa de se tentar eliminar a impunidade de determinados delitos de complexa apuração. O que se pretende criticar é quanto ao modo como isso foi feito, coroando a inércia do Estado com a extinção da prescrição retroativa, anteriormente prevista no art. 110, § 2º, do Código Penal.
A exceção não deve ser a regra. Se existem delitos de difícil apuração que prescrevem em razão de não haver tempo hábil para sua investigação, deve-se pensar se a pena que lhes é prevista é suficiente ante a reprovação social da conduta criminosa praticada.
Destaque-se que ao longo da década de 1990 apenas houve aumento de penas e consequentemente do prazo prescricional, sem, todavia, qualquer resolução da questão, tornando-se tal fato ainda mais preocupante, porquanto se na década de 1990 a justificativa para o aumento das penas era a ocorrência da prescrição, como pode agora perenizar-se as mesmas sanções com a eliminação da prescrição retroativa!
Sinceramente, o problema não está na quantidade da sanção, mas sim na efetividade dos meios colocados à disposição para uma correta investigação, não podendo a sociedade mais aceitar alterações legislativas em ano eleitoral, colocando sempre em último lugar a valorização dos operadores do direito, como se a resolução de uma impunidade fosse possível por meio de uma canetada.
Nesse sentido, preciosas as palavras de Miguel Reale Júnior ao afirmar que o "preço da liberdade é a possibilidade de praticarmos o eterno delito", devendo combatê-lo por meio da valorização do profissional do direito, conferindo-lhe estrutura e exigindo-lhe metas, e não por meio de pífias alterações pontuais legislativas.
*Publicado no Boletim do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Julho/2010
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1 Segundo a exposição de motivos da lei 7.209/1984 que alterou a Parte Geral do Código Penal, "A inovação introduzida no Código Penal, pela Lei 6.416, de 24 de maio de 1977, vem suscitando controvérsias doutrinárias. Pesou, todavia, em prol de sua manutenção, o fato de que, sendo o recebimento da denúncia causa interruptiva de prescrição (art. 117, I), uma vez interrompida esta o prazo recomeça a correr por inteiro (art. 117, § 2º). Trata-se, além disso, de prescrição pela pena aplicada, o que pressupõe, obviamente, a existência de processo e de seu termo: a sentença condenatória".
2 Apresentado pelo Deputado do Partido dos Trabalhadores, Sr. Antônio Carlos Biscaia, em 2 de julho de 2003.
3 BRUNO, Aníbal. Direito Penal I. Parte Geral. 2ª ed. São Paulo. 1966. Forense, t. III, p. 210.
4 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 1ª ed. São Paulo. 1952. Max Limonad. vol. I, t. II, p. 702.
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*Sócio do escritório Reale e Moreira Porto Advogados Associados.
**Advogada do escritório Reale e Moreira Porto Advogados Associados
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