O art. 202 da Constituição e o equilíbrio econômico-financeiro e atuarial da previdência privada
Daniel Costa Lima da Rocha*
Sem embargo do elevado conhecimento jurídico e denodo com que os eminentes ministros do Superior Tribunal de Justiça apreciam e julgam lides trazidas ao seu alto exame, insta-nos aduzir alguma perplexidade frente ao posicionamento recém-adotado, diametralmente oposto ao que vinha sendo defendido pelos eminentes ministros Carlos Alberto Menezes Direito e Sálvio de Figueiredo Teixeira, dois grandes expoentes do principal tribunal infraconstitucional pátrio, em dois importantes julgados por eles relatados, quais sejam os Recursos Especiais 167.338/DF e 168.643/DF, este último julgado há pouco mais de um ano. Em síntese, asseveram estes arestos, respectivamente, que, “tendo a entidade de previdência privada aplicado o fator de atualização previsto nos estatutos, não é possível rever os cálculos para buscar o índice que melhor reflita a inflação dos diversos períodos. O que basta, no caso, é saber se a entidade aplicou, efetivamente, o índice de atualização estipulado; se aplicou, como afirma o acórdão recorrido, não tem guarida, sob pena de desequilíbrio no cálculo atuarial, buscar a atualização pela adoção de índices mais próximos da chamada inflação real” e que “a correção monetária é devida na forma prevista no regulamento da entidade de previdência privada, segundo já assentaram precedentes deste Tribunal (Recursos Especiais 170.584-DF e 170.586-DF)”.
Em nosso sentir, o que se denota da forte mudança de posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria é a inarredável confrontação a dispositivos infraconstitucionais e, principalmente, ao artigo 202 da Constituição Democrática de 1.988, que cuida do Princípio do Equilíbrio Econômico-Financeiro Atuarial Previdenciário Privado. É o que se pretenderá demonstrar neste sucinto artigo.
As entidades previdenciárias privadas têm seus regulamentos de planos de benefícios bem como suas posteriores alterações, antes de entrarem em vigor, necessariamente aprovados pela Secretaria de Previdência Complementar (SPC), órgão regulador e fiscalizador vinculado ao Ministério da Previdência Social (MPS). Supõe-se que estes regulamentos e suas alterações, antes de passarem a viger, são aprovados pela entidade reguladora e fiscalizadora da atividade econômica, em especial no que tange ao regramento contratual eminentemente privado de fixação dos critérios financeiros exclusivamente atuariais para devolução de parcelas vertidas pelos participantes que queiram vir se retirar do plano de previdência privada antes de lograrem alcançar o momento de recebimento do benefício.
A regente Lei Complementar 109/2001, através do seu artigo 14, inciso III, determina que os planos de benefícios deverão prever, observadas as normas estabelecidas pelos órgãos regulador e fiscalizador, o resgate da totalidade das contribuições vertidas ao plano pelo participante, descontadas as parcelas do custeio administrativo, na forma regulamentada. Isso significa dizer que as entidades previdenciárias privadas têm a obrigação legal de regulamentar o resgate das contribuições vertidas pelos participantes, obviamente aí incluída a regulamentação dos índices de correção destas contribuições. Neste sentido, o seu artigo 33, inciso I, capítulo III (Das entidades fechadas de previdência complementar) afirma que “Dependerão de prévia e expressa autorização do órgão regulador e fiscalizador: I – a constituição e o funcionamento da entidade fechada, bem como a aplicação dos respectivos estatutos, dos regulamentos dos planos de benefícios e suas alterações”.
Ademais, é importante destacar que, a teor do art. 7º da Lei Complementar 109/2001, “os planos de benefícios atenderão a padrões mínimos fixados pelo órgão regulador e fiscalizador, com o objetivo de assegurar transparência, solvência, liquidez e equilíbrio econômico-financeiro e atuarial” (negrito nosso).
Por seu turno, a Lei Federal nº 6.435/77, que regulava a matéria antes do advento da Lei Complementar nº 109/2001, através de seu artigo 42, inciso V, determinava a inclusão nos regulamentos dos planos de benefícios, da norma de cálculo na hipótese de retirada do participante, bem como o artigo 31 do Decreto nº 81.240/78 (que regulamentava as disposições da referida Lei, relativas às entidades fechadas de previdência privada), em seu parágrafo 2º, previa que, em caso de saída voluntária e antecipada do participante do plano de benefícios, este “terá direito à restituição parcial das contribuições vertidas, com correção monetária, de acordo com as normas estabelecidas no próprio plano, não inferior a 50% (cinqüenta por cento) do montante apurado”.
Portanto, nos parece incontestável que, na hipótese de retirada do participante do plano gerido pela entidade de previdência fechada, o resgate das contribuições por ele vertidas deve ser feito na forma estabelecida pelo regulamento da entidade previdenciária, com a adoção do(s) índice(s) de correção monetária contratualmente previsto(s) no regulamento da entidade, sob pena de inviabilizar o próprio plano de benefício, em razão do seu flagrante e incontestável desequilíbrio econômico-financeiro e atuarial.
Em sendo assim, não se pode admitir que a devolução das parcelas se faça com a adoção de índice de correção monetária que melhor traduza “a perda do poder aquisitivo da moeda” (AgRg no Agravo de Instrumento 480.071/MG) e que “nada importa que o estatuto da entidade estabeleça critério de reajuste diverso” (AgRg no Agravo de Instrumento 493.872/PR). Ora, há que se respeitar o índice de correção monetária adotado no regulamento previdenciário privado para fins de atualização das parcelas a serem devolvidas ao participante retirante.
Inicialmente, temos que o índice de correção monetária, para entrar em vigor e atingir a coletividade, supõe-se tenha sido aprovado pela entidade reguladora e fiscalizadora da atividade econômica em comento, no caso a Secretaria de Previdência Complementar (SPC), daí porque se infere legitimidade na fixação do critério de atualização monetária.
Como segundo fundamento, temos que a regente Lei Complementar 109/2001, através do seu artigo 14, inciso III, determina que os planos de benefícios deverão prever, observadas as normas estabelecidas pelos órgãos regulador e fiscalizador, o resgate da totalidade das contribuições vertidas ao plano pelo participante, descontadas as parcelas do custeio administrativo, na forma regulamentada.
De outra feita, temos que a relação jurídica que envolve as partes, quais sejam o participante e a entidade previdenciária privada, é de caráter exclusivamente contratual e, em decorrência disto, em observância ao princípio do pacta sunt servanda, o contrato celebrado pelas partes, verdadeiro ato jurídico perfeito, deve ser respeitado, pois não é dado ao Poder Judiciário substituir a forma de correção monetária prevista no referido termo de avença privada. Afinal de contas, não se poderia admitir beneficiar esta ou aquela parte com a adoção de índice de correção monetária que lhes seja mais favorável, sob pena, inclusive, de prejudicar os demais participantes do plano de previdência privada. A força vinculativa dos participantes às regras estatutárias dos planos de previdência privada encontra-se reconhecida nos Tribunais pátrios. Como exemplos, há os arestos proferidos pelos eminentes Desembargadores Jessé Torres Pereira Júnior e Milton Fernandes de Souza, ambos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, para quem, respectivamente, há “natureza adesiva do contrato e natureza estatutária das normas do regulamento do respectivo fundo” com “vinculação estrita a suas disposições” (Apelação Cível nº 2002.001.07938) por parte dos participantes, além do que “os benefícios oferecidos pela entidade de previdência privada fechada, e o seu custeio, submetem-se às previsões dos respectivos estatutos e regulamento” (Apelação Cível nº 2001.001.21927).
Por fim, de forma a não deixar dúvida sobre a imperiosa necessidade do respeito ao índice de correção monetária adotado pela entidade previdenciária privada em seu regulamento de benefícios, temos que a não-observância ao critério regulamentar de atualização das parcelas a serem devolvidas ao participante retirante põe em risco o equilíbrio econômico-financeiro de caráter atuarial existente entre as partes contratuais, em prejuízo patrimonial à entidade previdenciária privada e aos seus demais participantes e/ou beneficiários que, na prática, acabam por ter de arcar solidariamente com o plus indevidamente acrescido para devolução ao retirante, sem previsão no regulamento do plano a que este livremente aderiu.
Além da negativa de vigência aos dispositivos legais acima-assinalados, que atestam o princípio da vinculação estatutária, de outra feita a devolução das parcelas sem observância ao critério de cálculo atuarial de correção monetária previsto no regulamento vem malferir o art. 202 da Constituição Federal que prevê o princípio do equilíbrio econômico-financeiro atuarial previdenciário privado, com a necessidade da “constituição de reservas que garantam o benefício contratado”. Ora, o quanto o participante reverte financeiramente em favor da entidade de previdência privada, para constituição de reservas que garantam o custeio do seu benefício futuro, está intimamente ligado ao quanto ele pode fazer jus em caso de pretender, por sua vontade, se desligar do plano e receber em devolução o que pagou. A parcela mensal de constituição de reservas a cargo do participante corresponde a complexo cálculo atuarial desenvolvido pela entidade de previdência privada que previu a possibilidade de sua saída voluntária antecipada durante o período de contribuição, sem que sua saída resulte em prejuízo aos demais participantes. Permitir-se a restituição dos valores vertidos ao plano com os índices de atualização monetária que melhor atendam aos interesses pessoais de uma das partes em detrimento da outra é, além de fazer letra morta das regras regulamentares a que se vinculou livremente o participante, também ignorar o critério atuarial que resultou na fixação do valor de parcela vertido pelo participante, com prejuízo direto a todos os demais participantes do plano de previdência privada, a rigor aqueles que terão de suportar, em última sede, o desequilíbrio econômico-financeiro acarretado pela pretensão do participante de auferir montante consubstanciado em correção monetária sem previsão contratual.
Tendo em conta esta nova e preocupante linha de entendimento adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, ao que parece contrária ao mandamento constitucional que trata do imprescindível equilíbrio econômico-financeiro e atuarial de natureza previdenciária privada, urge seja feita suscitação da matéria perante o Supremo Tribunal Federal, órgão guardião do Texto Constitucional que, confia-se, saberá resguardar o direito das entidades previdenciárias privadas, bastando meramente fazer valer a norma constitucional prevista no art. 202 da Constituição Democrática de 1.988.
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*Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados
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