O monismo internacionalista dialógico
Valerio de Oliveira Mazzuoli*
Como se sabe, é bem conhecida a chamada doutrina monista internacionalista das relações entre o Direito Internacional e o Direito interno. Em síntese, o que ela apregoa é a unicidade da ordem jurídica sob o primado do direito externo, a que se ajustariam todas as ordens internas (posição que teve em Kelsen o seu maior expoente). Segundo essa concepção, o Direito interno deriva do Direito Internacional, que representa uma ordem jurídica hierarquicamente superior. No ápice da pirâmide das normas encontra-se, então, o Direito Internacional (norma fundamental: pacta sunt servanda), de onde provém o Direito interno, que lhe é subordinado. Em outras palavras, o Direito Internacional passa a ser hierarquicamente superior a todo o Direito interno do Estado, da mesma forma que as normas constitucionais o são sobre as leis ordinárias e assim por diante. E isto porque o seu fundamento de validade repousa sobre o princípio pacta sunt servanda, que é a norma mais elevada (norma máxima) da ordem jurídica mundial e da qual todas as demais normas derivam, representando o dever dos Estados em cumprirem as suas obrigações. Ademais, se as normas do Direito Internacional regem a conduta da sociedade internacional, não podem elas ser revogadas unilateralmente por nenhum dos seus atores, sejam eles Estados ou organizações internacionais.
Como se vê, a solução monista internacionalista para o problema da hierarquia entre o Direito Internacional e o Direito interno é relativamente simples: um ato internacional sempre prevalece sobre uma disposição normativa interna que lhe contradiz. Ou seja, a ordem jurídica interna deve sempre ceder, em caso de conflito, em favor da ordem internacional, que traça e regula os limites da competência da jurisdição doméstica estatal. Nesse caso, é o Direito Internacional que determina tanto o fundamento de validade, como o domínio territorial, pessoal e temporal de validade das ordens jurídicas internas de cada Estado. É dizer, não há duas ordens jurídicas coordenadas como na concepção dualista, mas duas ordens jurídicas, uma das quais - o Direito interno - é subordinada à outra - o Direito Internacional - que lhe é superior.
Esta solução monista internacionalista tem bem servido ao Direito Internacional tradicional, contando com o apoio da melhor doutrina (tanto no Brasil, como no resto do mundo). Ocorre que quando em jogo o tema "direitos humanos" uma solução mais fluida pode ser adotada, posição essa que não deixa de ser monista, tampouco internacionalista, mas refinada com dialogismo (que é a possibilidade de um "diálogo" entre as fontes internacional e interna, a fim de escolher qual a "melhor norma" a ser aplicada no caso concreto).
Assim, no que tange ao tema dos direitos humanos é possível falar na existência de um monismo internacionalista dialógico1. Ou seja, se é certo que à luz da ordem jurídica internacional os tratados internacionais sempre prevalecem à ordem jurídica interna (concepção monista internacionalista clássica), não é menos certo que em se tratando dos instrumentos que versam direitos humanos pode haver coexistência e diálogo entre essas mesmas fontes2. Perceba-se que a prevalência da norma internacional sobre a interna continua a existir, mesmo quando os instrumentos internacionais de proteção autorizam a aplicação da norma interna mais benéfica, visto que, nesse caso, a aplicação da norma interna no caso concreto é concessão da própria norma internacional que lhe é superior, o que estaria a demonstrar a existência sim de uma hierarquia, típica do monismo internacionalista, contudo muito mais fluida e totalmente diferenciada da existente no Direito Internacional tradicional (v.g., como está a prever o art. 27 da Convenção de Viena de 1969)3. Ou seja, o monismo internacionalista ainda continua a prevalecer aqui, mas com dialogismo. Daí a nossa proposta de um "monismo internacionalista dialógico" quando o conflito entre as normas internacionais e internas diz respeito ao tema "direitos humanos".
Frise-se que essa "autorização" presente nas normas internacionais de direitos humanos para que se aplique a norma mais favorável (que pode ser a norma interna ou a própria norma internacional, em homenagem ao "princípio internacional pro homine") encontra-se em certos dispositivos desses tratados que nominamos de vasos comunicantes (ou "cláusulas de diálogo", "cláusulas dialógicas", ou ainda "cláusulas de retroalimentação"4), responsáveis por interligar a ordem jurídica internacional com a ordem interna, retirando a possibilidade de antinomias entre um ordenamento e outro em quaisquer casos, e fazendo com que tais ordenamentos (o internacional e o interno) "dialoguem" e intentem resolver qual norma deve prevalecer no caso concreto (ou, até mesmo, se as duas prevalecerão concomitantemente no caso concreto) quando presente uma situação de conflito normativo.
Essa "via de mão dupla" que interliga o sistema internacional de proteção dos direitos humanos com a ordem interna - e que juridicamente se consubstancia em ditos vasos comunicantes - faz nascer o que também se pode chamar de transdialogismo.
Essa, nos parece, é a tendência do direito pós-moderno no que tange às relações do Direito Internacional (dos Direitos Humanos) com o Direito interno.
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1 Sobre o dialogismo e sua aplicação às relações entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito interno, v. Valerio de Oliveira Mazzuoli, Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno, São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 129-145.
2 A expressão "diálogo das fontes" é de Erik Jayme, in Identité culturelle et intégration: le droit international privé postmoderne, Recueil des Cours, vol. 251 (1995), p. 259.
3 V. Valerio de Oliveira Mazzuoli. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno, cit., pp. 166-167.
4 Para um estudo completo dessas cláusulas, v. Valerio de Oliveira Mazzuoli, Idem, pp. 116-128.
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*Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMT. Professor da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
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