O consumidor nas compras
Antonio Pessoa Cardoso*
A família alegrou-se e dispensou todo cuidado ao bem adquirido, porque consciente do sacrifício enfrentado para a compra; todavia, depois de uma semana a geladeira apresenta defeito e o comprador deslocou-se até a loja, onde procurou a mesma vendedora para pedir a assistência a que tem direito; a atendente, que lhe foi muito solícita por ocasião da venda, já não o tratou com a mesma cordialidade e passou o problema para outro funcionário que lhe orientou como proceder. Saiu com a informação de que teria de procurar o fabricante, através da assistência técnica. Não adiantou seu protesto, quando alegou que à loja vendedora competia apresentar envidar esforços para consertar a geladeira. Retornou para casa, aborrecido, mas não lhe restou alternativa: depois de sucessivas ligações, conseguiu reclamar na oficina autorizada e foi agendada a visita para uma semana depois.
A impotência de não poder usar o bem que comprou e pagou, de não ter outra opção que não fosse a indicada pelo preposto da loja trouxe angústia para toda a família, mas, enfim, admitiu a condição de ficar sem usar a geladeira durante os próximos dias.
O pobre homem imaginava que ao adquirir e pagar pelo produto, não passaria pelas decepções que se iniciavam e não se sabia até onde se prolongariam.
Santa ingenuidade! De qualquer forma teve de esperar o dia do agendamento da visita.
Finalmente, o prestador de serviço fez a visita e constatou vício no produto. Prometeu o conserto para os próximos quinze dias, sob alegação de que teria de encomendar ao fabricante, porquanto no estoque não se dispunha da peça danificada. A geladeira, comprada por absoluta necessidade, já não podia ser usada, e transformou-se em peça decorativa na residência da família.
O cidadão retornou à loja, de onde recebeu e onde pagou o produto, mas a atendente informa-lhe que a garantia é da fabricante e ela, loja, foi apenas intermediária. De nada valem as explicações do consumidor: está sem poder comprar alimentos perecíveis, tendo inclusive perdido tudo o que adquiriu quando a geladeira quebrou, além de outros aborrecimentos que não sensibilizaram à vendedora.
Passados os quinze dias volta à assistência técnica, mas é informado de que terá de aguardar um pouco mais, pois o prazo é de dias úteis, portanto não se conta os sábados, domingos e feriados. Imagine-se: o pedido da peça exige o transcurso de quinze dias úteis! A esposa e filhos cobravam providencias até que se conclui que o melhor seria levar o caso para a Justiça. Enquanto isto, não se obtém êxito com os telefonemas para a loja e para a empresa representante da fabricante. A peça ainda não chegou é a resposta que encontrava sempre. Já se foram mais de 30 dias e a geladeira adquirida e paga não funcionava. Venceu o cartão de crédito e o consumidor questionou com a loja, mas não se encontrava receptividade alguma para suas ponderações. Resolveu suspender o pagamento das outras parcelas, correspondentes ao valor da geladeira. No entanto, logo depois, soube que seu nome foi anotado pelo SERASA como mau pagador, apesar de não ter recebido comunicação alguma dessa providência. A tentativa de uso do cartão para outras compras foram frustradas.
Foi ao PROCON e dez dias depois não encontrou com o representante das empresas, porque simplesmente não compareceram à audiência; obteve o documento de que fez a queixa e dirigiu-se a um dos Juizados Especiais, mas não logrou êxito, porque teria de comparecer bem cedo ao local para obter a senha. No dia seguinte, fez a reclamação e é marcada a primeira sessão de conciliação para 90 dias depois. O consumidor se desesperou, mas saiu do Juizado sem saber como iria proceder, pois enfrentou situação inusitada em toda a sua vida: estava sem a geladeira, sem o dinheiro pago e com o nome negativado no SPC.
Lamentou por ter entrado nesta confusão; melhor seria se não tivesse a geladeira!
Noventa dias depois, na sessão de conciliação, a empresa vendedora compareceu para assegurar que não tinha responsabilidade alguma, pois da mesma forma que o consumidor, ela adquiriu o produto da fabricante que não esteve presente à sessão de conciliação. Diante do não comparecimento de qualquer representante da parte, a conciliadora aplicou a revelia, figura legal que acontece quando a reclamada não se faz presente, nem justifica a ausência à audiência marcada. Isto causa aceitação de verdadeiras as afirmações do reclamante. Com ou sem revelia, o problema não foi resolvido e a próxima etapa será a audiência de instrução e julgamento quando finalmente o julgador dirá quem tem direito. Esta audiência é marcada para um ano depois.
Nesse tempo de idas e vindas para a loja, para a assistência técnica, para o PROCON, para o Juizado, o cidadão passou por sérios aborrecimentos, perdeu dias de trabalho, que lhe causaram diminuição de salário, mas ainda não encontrou solução, porque continuou sem a geladeira e com o nome negativado.
Tem situação mais kafkiana do que esta?
O CDC (clique aqui) protege totalmente o consumidor, porque atribui responsabilidade solidária à loja vendedora, à assistência técnica e ao fabricante, além de assegurar o direito de o consumidor ter o produto reparado no prazo máximo de trinta dias; como alternativa, ou seja, se não promovido o conserto, pode reclamar substituição do produto comprado ou a devolução do valor pago, art. 18 CDC.
Mas que adianta para o fraco toda essa garantia consignada na lei se as empresas não cumprem suas obrigações e preferem deixar com o consumidor o encargo de procurar a Justiça que não tem competência para solucionar imediatamente o problema. Para qualquer queixa, por mais absurda que seja a violação ao direito, a lei impõe aos juízes procedimento altamente burocrático que só favorece o poderoso: inicia com a reclamação, chamamento do réu para tentativa de conciliação e, por último, instrução e julgamento do processo. Tudo isto demanda tempo. Essa instrução e julgamento importam nos depoimentos de testemunhas, na análise de documentos e finalmente na decisão do juiz. A sessão de conciliação nunca é realizada no "prazo de quinze dias", anotado na Lei dos Juizados Especiais (lei 9.099 - clique aqui), art. 16; a instrução e julgamento jamais acontecem "imediatamente" após a conciliação, art. 27, e a sentença dificilmente é proferida na própria audiência, como exige o art. 28. Nem se fala do tempo necessário para se processar eventuais recursos da reclamação do consumidor!
Registre-se que essa situação não ocorre por culpa dos juízes, pois as alterações promovidas na lei, a criação de recursos, a ampliação da competência tornaram os Juizados tão ordinário quanto a própria justiça ordinária.
Mas de que serve todo o amparo que se oferece através do CDC e da Lei dos Juizados Especiais, se o cidadão que comprou e pagou a geladeira continuará sem ela por um ano ou por muito mais tempo? O consumidor não obterá benefício algum em virtude de ter ficado durante todo o tempo que transcorreu o processo sem a geladeira, enquanto as empresas embolsaram o dinheiro e não entregaram o produto, como devia, ao comprador.
Situações semelhantes a essa são criadas diariamente pelas empresas, porque sabem que não há punição, falta conscientização de respeito ao direito do outro, e compensa descumprir as leis.
Aliás, o descumprimento da lei é procedimento adotado pelas autoridades maiores. No último programa gratuito do PT viu-se o flagrante desrespeito à lei que proíbe propaganda eleitoral antes do mês de julho, quando são escolhidos oficialmente os candidatos; todavia o PT, liderado pelo Presidente da República, optou pelo custo-benefício, como fazem as empresas, ou seja, pagar pequeno encargo, porque os lucros originados do desrespeito à lei oferecem maiores vantagens. Não se importa com as dificuldades que se criam para o outro, mas se observa somente os benefícios que o infrator obtém.
As empresas, nessas situações, mandam que os consumidores procurem a justiça, porque estão certas de que este direito demora em chegar ou não chega nunca.
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*Desembargador do TJ/BA