A barbárie e hipocrisia contra a advocacia
Mário Gonçalves Júnior*
Cenas como a que comentamos agora não são inéditas, infelizmente, mormente nos tribunais de júri de grande repercussão. Não é a primeira vez que assistimos tentativas de agressões e agressões físicas e verbais contra os advogados que aceitam o encargo da defesa de acusados de crimes chocantes.
A propósito também do caso Isabela, ainda outro diz um sujeito desconhecido, que eu acabei sabendo ter nível superior, puxava conversa com os presentes, dizendo "não acreditar como alguém tem estômago para defender pessoas que cometem tais crimes", "se não têm filhos" etc. etc.
Desde que me conheço por gente e comecei a cursar a faculdade de Direito fui submetido (embora não seja advogado criminalista) a provocações deste tipo em aniversários, festas de fim de ano, casamentos e outros do gênero. Entre um vinho e outro, uma cerveja e outra, sempre tem um mais desavisado que, sabendo da existência de pelo menos um advogado na mesa, acaba por lançar a provocação com certo ódio ou inveja no olhar e na entonação.
Por sorte sempre tive uma resposta técnica na ponta da língua, que até hoje rendeu, quer de leigos, quer de pretensos especialistas (aqueles especialistas nas chamadas "faculdades da vida"...) não mais do que o silêncio constrangedor de quem é pego falando asneira: "em nosso sistema processual, em especial o criminal, a ampla defesa é pressuposto de validade da sentença condenatória, isto é, não há condenação sem prévia defesa, o que significa dizer que o advogado que aceita fazer o papel que é ingrato para a maioria, acaba permitindo indiretamente que possam os réus ser condenados". Em outras palavras: "se todos os advogados recusassem defender os réus, eles jamais seriam condenados, e o crime cometido ficaria impune".
Há ainda dois aspectos envolvidos nisto que preocupam: a barbárie generalizada em pleno século XXI e a hipocrisia.
Não falo apenas da barbárie que ceifou a vida da menina Isabela, mas também da barbárie de confundir acusados e advogado a ponto de se tentar agredir este último como quem se vinga dos acusados. Sim, a barbárie contra a vítima de homicídio é indescritível, mas está no espírito humano não apenas de quem matou Isabela, como também de gente que se coloca na porta do fórum para socar advogados. Isto remonta a tempos de espetáculos públicos de execuções de pseudopenas de morte, como quando cristãos eram atirados aos leões para deleite da patuléia romana, só para ficarmos num exemplo. O que se verifica nas cercanias dos fóruns criminais às vezes não é muito diferente disto, e há séculos entre uma civilização e outra. Portanto, constata-se que o prumo até pode ser outro, mas a alma nem tanto.
Da hipocrisia também há evidências vexatórias para a raça humana. Qualquer pessoa está sujeita a um acidente de trânsito com vítima, por exemplo, ou de ter um filho envolvido num, mesmo entre aquelas pessoas que tentaram agredir o advogado dos Nardoni. Podem crer que se isto já aconteceu ou vier a acontecer, ninguém sairá de peito aberto em direção ao Delegado de Polícia, ao Promotor, ao Juiz ou ao Júri pedindo veementemente ser condenado por ser culpado ou por ser um "crápula não merecedor de defesa". Nos olhos dos outros a pimenta arde, mas só nos olhos alheios. Infelizmente ainda temos dois pesos e duas medidas, um receituário ideal para cobrar do vizinho, sempre com alguma cláusula excludente, na consciência ou inconsciência, para o caso de sermos flagrados um dia infringindo a mesma regra.
No fundo, é gente que continua atirando a primeira pedra, dois mil e tantos anos depois de serem aconselhados a não fazê-lo. Gente que também mereceria defesa, sim, apesar de ignóbil, sob o risco de seus advogados serem malvistos, agredidos, num ciclo sem fim.
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*Advogado do escritório Rodrigues Jr. Advogados
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