Primeiras linhas do Estado constitucional e humanista de direito
Luiz Flávio Gomes*
No Estado constitucional e humanista de direito, que constitui a última evolução do sistema jurídico, são fontes normativas (que se dialogam):
1. as leis;
2. as leis codificadas (os códigos);
3. a constituição;
4. a jurisprudência interna que dá vida à conformidade constitucional do sistema jurídico;
5. os tratados internacionais, destacando-se os de direitos humanos;
6. a jurisprudência internacional, principalmente a do nosso sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e
7. o direito universal (que conta com valor supraconstitucional).
A estruturação do Estado, do Direito e da Justiça, destarte, é a primeira e mais abrangente garantia dos direitos (macrogarantia), a que reúne as melhores condições (programáticas) de lograr o "milagre cotidiano" (Prosper Weil) de fazer com que o exercício do poder aconteça dentro das formas jurídicas vigentes, buscando-se o (difícil) ponto de equilíbrio entre os interesses públicos ou coletivos (que seriam perseguidos pelos governantes) e os dos indivíduos (Peña Freire).
Cada modelo de Estado, de Direito e de Justiça possui sua própria pirâmide jurídica. A noção de pirâmide jurídica nos remete prontamente para a questão da existência ou não de hierarquia entre as várias normas que compõem nosso ordenamento jurídico. No direito brasileiro, antes do desenvolvimento do movimento universalista (que retrata a quarta onda da evolução do Direito e da Justiça), já eram admitidas normas legais (primeira onda), constitucionais (segunda onda) e internacionais (terceira onda). Elas possuem o mesmo valor ou contariam com hierarquias distintas?
Até bem pouco tempo, no nosso país, só se reconhecia hierarquia superior (distinta) para as normas constitucionais. Nossa pirâmide jurídica, destarte, era composta de (apenas) dois níveis:
(a) leis ordinárias na posição inferior e
(b) constituição na parte superior.
Claro que antes do advento do constitucionalismo (segunda onda) só se falava em leis e códigos (como fontes do direito). E anteriormente a isso era a vontade do monarca a única fonte do direito.
A provecta jurisprudência do STF (com origem nos anos 70 do século XX, no RE 80.004/SE) consolidou a construção piramidal binária ou bidimensional (leis na base e constituição no topo), proclamando que os tratados internacionais, inclusive os de direitos humanos, valiam tanto quanto a lei, por força do chamado sistema paritário (ainda que isso pudesse implicar responsabilidade internacional para o Brasil). Leis ordinárias e tratados (inclusive os de direitos humanos) ocupavam o mesmo patamar jurídico (inferior) no que concerne à hierarquia das normas (cf. Ximenes Rocha). Normas superiores eram apenas as constitucionais. Esquematicamente:
(a) leis ordinárias e tratados internacionais na base da pirâmide;
(b) constituição na parte superior (mas com força quase que exclusivamente formal).
A isso estamos dando o nome de estrutura piramidal binária ou bidimensional (que contava com o beneplácito de Ferreira Filho, Celso Bastos, Zeno Velloso, Clèmerson Clève, Francisco Rezek, Irineu Strenger etc.).
Essa clássica estrutura da nossa pirâmide jurídica (ou seja: essa forma de compreender o Direito sob a ótica legalista positivista ou civilista ou contratualista) está (hoje) absolutamente ultrapassada. Embora ainda ensinada (prejudicial e deficitariamente) em algumas faculdades, essa antiga pirâmide kelseniana foi definitivamente sepultada pelo STF, no dia 3/12/08 (RE 466.343/SP). A partir desta data nossa pirâmide jurídica passou a contar com três níveis:
(a) na base acham-se as leis ordinárias e tratados que não cuidam dos direitos humanos;
(b) acima delas, com valor supralegal, os tratados de direitos humanos e
(c) no topo encontra-se a constituição (assim como os tratados de direitos humanos aprovados por quorum qualificado pelo Congresso Nacional).
No julgamento histórico do dia 3/12/08 o STF admitiu o valor (no mínimo) supralegal dos tratados de direitos humanos (ratificados pelo Brasil e incorporados no direito interno). Quando se cuida de um tratado de direitos humanos aprovado por quorum qualificado pelo Congresso Nacional (três quintos em dois turnos em cada casa) seu valor é de Emenda Constitucional (CF, art. 5º, § 3º - clique aqui).
Duas correntes existiam (defendidas pelo Min. Gilmar Mendes e pelo Min. Celso De Mello): preponderou a primeira, reconhecendo o valor supralegal para os tratados de direitos humanos, com ressalva daqueles que são aprovados por quorum qualificado (nos termos do § 3º, do art. 5º, da CF). A tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos conta com forte (e tradicional) apoio doutrinário: Hildebrando Accioly, Oscar Tenório, Haroldo Valladão, Celso A. de Mello etc.
A corrente liderada pelo Min. Celso de Mello defendia o valor constitucional para todos os tratados de direitos humanos (tal como sustentado, doutrinariamente, por Grinover, Piovesan, Cançado Trindade, Mazzuoli, L. F. Gomes, Sylvia Steiner, José Afonso da Silva, Ximenes Rocha, Gomes Filho, Scarance, M.E. Queijo etc.).
O Estado brasileiro já não é só (a partir da perspectiva aberta pelos votos referidos, que foram acompanhados por outros sete Ministros) apenas um Estado de Direito constitucional: agora passou a ser também um Estado de Direito internacional.
A tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos não aprovados por maioria qualificada (conforme defendida, v.g., pelo Min. Gilmar Mendes, no RE. 466.343-1/SP) acabou por regular assuntos iguais de maneira totalmente diferente (ou seja, desigualou os "iguais", como afirma Valério Mazzuoli), em franca oposição ao princípio constitucional da isonomia. De qualquer maneira, é certo que nossa pirâmide jurídica sofreu alteração, contando com três níveis.
Essa nova pirâmide normativa tridimensional concebida a partir de algumas decisões do STF (HC 87.585/TO, RE 466.343-1/SP, HC 90.172/SP, HC 88.420/PR) é bem distinta daquela (bidimensional) que, normalmente, sob os auspícios de Kelsen, ainda continua (desavisadamente) sendo citada por alguns doutrinadores.
Do plano da equivalência com a legislação ordinária (teoria da paridade) o Direito internacional dos Direitos Humanos passou agora a ocupar uma posição hierárquica superior, no mínimo supralegal. Cinco votos foram proferidos nesse sentido (tese de Gilmar Mendes). Outros quatro reconheceram a constitucionalidade de tais tratados (tese de Celso de Mello), tal como sempre defendemos. De qualquer maneira, são nove votos em favor da distinção do direito internacional dos direitos humanos (eles valem mais que o direito ordinário).
Já não se pode estudar, ensinar ou aplicar o Direito sem conhecer (também) o Direito internacional, especialmente o Direito internacional dos direitos humanos. Da estrutura piramidal bidimensional formalista (Kelsen), típica do Estado legalista de direito, evoluiu-se para a estrutura bidimensional materialista (Estado constitucional de direito) e desta para a estrutura tridimensional (Estado constitucional e internacional de direito).
A novidade que agora se apresenta (no cenário jurídico interno e externo) diz respeito ao direito universal, que conta com normas supraconstitucionais. O Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma, por exemplo, constitui fonte marcante do que estamos falando. Cuida-se de um tribunal supranacional. Suas normas derrogam (superam) todo tipo de norma do direito interno (chegamos finalmente na quarta onda do Estado constitucional e humanista de direito).
Não se pode invocar o direito interno para se descumprir o Estatuto de Roma (1998), que criou o Tribunal Penal Internacional (e que é competente para julgar crimes macro-políticos como genocídio, crimes de guerra etc.). Nem todas as garantias asseguradas nas constituições internas foram contempladas no referido Estatuto que, aliás, prevê uma série de institutos totalmente conflitantes com as Cartas Magnas dos Estados "soberanos" (prisão perpétua, entrega do nacional, relativização da coisa julgada etc.). Considerando-se que são normas supraconstitucionais, não há que se invocar o direito interno para afastar a sua aplicação.
Com o advento do universalismo nossa pirâmide jurídica passou a contar com quatro níveis (quadridimensional):
(a) leis ordinárias e tratados internacionais não vinculados aos direitos humanos;
(b) tratados de direitos humanos (salvo quando aprovados por quorum qualificado nos termos do § 3º, do art. 5º, da CF);
(c) constituição e tratados de direitos humanos aprovados com quorum qualificado e
(d) normas supraconstitucionais (como é o caso do Estatuto de Roma, v.g.).
Conhecer o direito, na atualidade, significa conhecer todas as suas fontes, que (repita-se) são as seguintes:
(a) leis e códigos;
(b) constituição e jurisprudência interna que cuida da conformida constitucional de todo o sistema jurídico;
(c) tratados internacionais, especialmente os que versam sobre direitos humanos, e jurisprudência internacional (sobretudo a do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos;
(d) direito universal. Mais sinteticamente, sete são as fontes que se dialogam:
1) leis;
2) códigos;
3) constituição;
4) jurisprudência interna;
5) tratados internacionais (especialmente os de direitos humanos);
6) jurisprudência internacional e
7) direito supraconstitucional (universal).
O ensino do Direito, no Estado constitucional e humanista de direito, não pode ignorar nem deixar de estudar as suas várias fontes. Não é incomum que o estudante de direito conclua seu curso tendo noções apenas rudimentares (quando as tem) sobre a necessária articulação entre tais fontes normativas. A prioridade, no ensino jurídico, é dada para o plano da legalidade que, de acordo com o positivismo legalista (formalista), seria o único objeto da ciência jurídica. Estão sendo esquecidos os níveis normativos supralegais. Esse modelo kelseniano (ou positivista legalista ou positivista clássico) de ensino do Direito, consoante Ferrajoli, confunde a vigência com a validade da lei, a democracia formal com a substancial, não ensina a verdadeira função do juiz no Estado constitucional (e humanista) de direito, não desperta nenhum sentido crítico no jurista e, além de tudo, não evidencia com toda profundidade necessária o sistema de controle de constitucionalidade e de convencionalidade das leis.
O equívoco metodológico-científico do positivismo legalista decorre do pensamento do Estado Moderno, da Revolução Francesa, dos códigos napoleônicos, que deram origem à confusão entre a lei e o Direito. A lei foi destronada (mas não perdeu totalmente o seu valor). Quando incompatível com a constituição ou com um tratado de direitos humanos ela não vale. Quando conflita com o direito universal, do mesmo modo (não possui validade ou eficácia). Cuida-se de lei vigente, mas inválida.
Diferentemente do que pensava Rousseau, o legislador da lei ordinária não é infalível e nem sempre representa a vontade geral, ao contrário, com frequência atua em favor de interesses particulares (e, às vezes, até escusos). Daí o acerto da tese de que a lei vigente assim como todos os atos do legislativo, para serem válidos, têm que ter concordância com todas as normas que lhe são superiores (constitucionais, internacionais e universais). Dezenas ou centenas de déspotas [ou de corruptos] juntos (no Parlamento), dizia Jefferson, são tão opressivos [ou corruptos] quanto um único só (do antigo modelo monárquico).
Passamos do modelo de justiça "legal" para os modelos "constitucional", "internacional" e "universal": o objetivo central dessa constante evolução não é outro senão a criação de uma arquitetura (desenhada pelo Estado constitucional e humanista de direito) que possa proteger com a maior efetividade possível os direitos (humanos) fundamentais (assim como evitar os desvios que conspurcam contra eles). Esse, aliás, é o papel das "garantias": o de maximizar a tutela dos direitos e dos valores que sustentam o Estado constitucional e humanista de direito. De qualquer modo, parece certo que não existe nenhum sistema totalmente garantista (ou seja: o garantismo só pode ser enfocado com graduações). Há uma certa distância (e isso é visto com certa normalidade) entre o "dever ser" e o "ser": a função primordial do modelo de Estado citado consiste em diminuir o máximo possível esse distanciamento (transformando a normatividade em efetividade, como diz Ferrajoli).
O Estado constitucional e humanista de direito é uma nova síntese (que certamente vai se transformar em tese, que será rebatida por uma antítese e assim nascerão outras sínteses), com pretensão de constituir (ao mesmo tempo) um "ser" e um "dever ser", que assume uma série de fins, elementos, valores e exigências e que aspira a dirigir os ordenamentos jurídicos e políticos do presente e do futuro. Essa nova síntese não segue a cartilha monista de Kelsen, que não admitia a separação entre o Estado e o Direito (o direito é o que o Estado diz que é). Ao contrário, parte-se agora da premissa de que o Direito é limitação ao Estado (que o Estado não pode se separar do Direito, se quer exercer seu poder com legitimidade, que o Estado tem que seguir as formas do Direito – porque forma também é garantia).
O Poder Político (Executivo e Legislativo) tem no direito um instrumento e um limite (das suas possibilidades de atuação). O Poder Político é limitado (ou deve ser limitado) pelo Poder Jurídico, sob pena de perpetuação dos abusos e do arbítrio (ou mesmo dos descumprimentos dos imperativos sociais e econômicos ou dos valores que fundamentam nossa república). Não existe órgão "soberano" (absoluto, ilimitado) dentro do novo modelo de Estado. Todo poder encontra seus limites no direito e na razoabilidade. Governo "per leges" (exercido por meio da lei) e "sub leges" (sob o império da lei, da constituição e dos tratados internacionais).
Se nos fosse permitida uma comparação simplificadora, diríamos que o novo Estado constitucional e humanista de direito é como uma cebola, porque deve ser compreendido por camadas. No Estado legalista de direito o Estado foi submetido (formalmente) à lei e o juiz também seguia essa mesma lei (a preponderância era do Parlamento). O Parlamento não tinha nenhum fiscal. No Estado constitucionalista de direito surgiram novos limites (novas formas jurídicas) ao Estado: agora são os juízes que devem fiscalizar o enquadramento dos atos públicos nas formalidades jurídicas (o dono último do direito passou a ser o juiz). No Estado internacional de direito, assim como no universalismo, outros limites mais foram impostos (ou seja: novas formas jurídicas foram criadas) ao Estado e também aos juízes locais. Para que essas novas formas jurídicas (internacionais) sejam seguidas rigorosamente pelo Estado e pelos juízes internos, outros juízes (internacionais) foram concebidos: no nosso caso, são os integrantes do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
Já não é o rei que faz o direito (rex facit legem), já não é o legislador interno que faz o direito (Zagrebelsky), já não é apenas o juiz local que faz o direito: o direito agora é feito também pelos juízes internacionais, que são os fiscais da observância das formas jurídicas humanistas desenhadas pelos tratados internacionais. A velha imagem da legalidade (a lei é geral, abstrata, decorre da vontade geral e legitima todos os atos de poder) foi substituída por outra imagem (outra forma jurídica): a lei (ou qualquer outro ato legislativo ou ato público em geral) só vale quando compatível com as demais normas jurídicas superiores. Centenas e centenas de déspotas reunidos no Parlamento podem ser mais tiranos [ou corruptos] que um único monarca (Jefferson). Todo nazismo foi desenvolvido dentro da legalidade.
As novas formas jurídicas (típicas do Estado constitucional e humanista de direito) contam com a pretensão de controlar todos os atos de todos os poderes estatais, assim como a própria produção legislativa (tanto do Legislativo, como do Judiciário, por meio das súmulas vinculantes). Cada onda evolutiva significa uma refundação do Estado, do Direito e da Justiça. Agora todos os poderes estatais acham-se submetidos a uma pluralidade de formas jurídicas, que são cuidadas por organismos internacionais de proteção dos direitos humanos.
De outro lado, no Estado constitucional e humanista de direito nem tudo que a maioria decide (democracia formal) é democrático (do ponto de vista substancial), porque o democrático (substancialmente falando) só pode ser o que tutela de forma efetiva os direitos (humanos) fundamentais (ou o que evita os desvios desses direitos). Nem todas as decisões das maiorias parlamentares são democráticas. A lei de anistia aos torturadores pode constituir um bom exemplo disso.
O modelo de Estado (de direito e de Justiça) que alcançamos neste princípio do século XXI nada mais representa que um instrumento limitado, vinculado e funcionalmente orientado à garantia dos direitos, especialmente dos direitos (humanos) fundamentais (Peña Freire). Todos os atos públicos devem seguir essa orientação: a de fazer preponderar os direitos (humanos) fundamentais.
Os atos que se desviam dessa finalidade devem ser fiscalizados e glosados pelo Poder Jurídico. E se retratam uma violação dos direitos humanos, devem ser fiscalizados e sancionados tanto internamente como externamente, pelos órgãos internacionais. Os agentes de qualquer um dos poderes da república não podem cometer abusos, não podem transformar prerrogativas em privilégios, não podem transformar a coisa pública em coisa privada, não podem desviar os interesses públicos para interesses privados ou pessoais. A interferência do Judiciário nos demais poderes, para alcançar obediência irrestrita às formas jurídicas assim como aos valores fundantes do Estado, não constitui abuso, sim, faz parte da imunologia inerente ao sistema democrático.
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*Diretor Presidente da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
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