Ato político – omissão judicial
Luciano Benévolo de Andrade*
Com sua verve admirável, Eça de Queiroz pôs na boca de seu alter ego, o independente e audaz Fradique Mendes, esta simples, mas magnífica lição:
"Apesar de trinta séculos de geometria me afirmarem que a linha recta é a mais curta distância entre dois pontos, se eu achasse que, para subir da porta do Hotel Universal à porta da Casa Havanesa, me saía mais directo e breve rodear pelo Bairro e pelos altos da Graça, declararia logo à secular geometria – que a distância mais curta entre dois pontos é uma curva vadia e delirante"1.
Foi assim, durante milênios, com o geocentrismo, o criacionismo, o machismo, a superioridade racial e tantas outras doutrinas, que muitas delas ainda correm por ai. Somente, quando de raro em raro, surge uma inteligência especial, um Galileu, um Da Vinci, um Descartes, um Gauss, é que tais verdades passam a ser questionadas, não sem telúrica resistência. Que seria hoje da medicina não fossem os "profanadores de cadáveres"?
Não diferente se passa com a ciência jurídica. Ainda não está inteiramente superada a questão das pesquisas com células tronco. Continua a polêmica em torno do feto anencefálico. E tantos outros problemas que condizem com a vida.
Tudo isso apesar de considerar-se o legalismo ultrapassado, sentindo-se os juízes agora mais à vontade para abandonar o silogismo sentencial, da legalidade literal, para interpretar e aplicar a norma com olhos nos princípios, em destaque a razoabilidade, a proporcionalidade e os fins sociais do direito.
Sem embargo, alguns fetiches persistem. É o caso do ato político. Continua firme a doutrina de que é incontrastável pelo Judiciário. A reboque, o fato político. Em cujo nome se perpetram vergonhosas injustiças.
A inapreciação judicial de atos e fatos políticos ganhou foro confortável com a Revolução de 1964. Mas não são necessários atos institucionais para imunizá-los. Bastam a covardia ou a preguiça de tribunais.
Por que tais atos ou fatos não podem ser examinados por uma Justiça isenta?
É hora de fazer uma reflexão.
Na época e nos lugares em que se praticava ou se pratica o direito divino, o poder era ou continua sendo absoluto. Mas, desde que se inventou uma coisa chamada democracia e se implantou um regime que se intitula república e apareceram conceitos como direitos humanos, cidadania e dignidade humana, impõe-se uma pouco mais de independência intelectual.
Num regime autoritário, em que a vontade do detentor do poder é a lei, justifica-se que seus atos e das pessoas que lhe são anexas não possam ser analisados senão pela ótica do próprio soberano. Mas, num regime que proclama a primazia do princípio da legalidade e que declara que a lei é igual para todos não há razão substancial que ampare tratamento discriminatório entre atos e fatos, por mera rotulação convencional2, conferindo a algumas pessoas privilégio de imunidade.
Afinal, o que é político? Numa primeira aproximação, pode–se afirmar que é aquilo que convém aos detentores do poder.
Deu-se como grande avanço na história da humanidade a descoberta da teoria da separação dos poderes. Repartiram-se, assim, as funções do Estado em três grandes compartimentos funcionais, agindo cada um independentemente dos demais, porém, operando de forma harmônica, segundo a crença doutrinária. Isto tudo em teoria, teoria que, quase sempre, se revela abstrata e fora da realidade.
Em termos elementares, já que tudo pode ser explicada de modo simples, sem floreio, cada compartimento recebeu o nome de Poder. Um, encarregado de confeccionar as leis, que devem ser a diretriz máxima de uma sociedade organizada. Outro, incumbido de executá-las. O terceiro, árbitro das controvérsias criada em torno da lei.
Legislativo. Executivo. Judiciário.
Como se vê, tudo se concentra ao redor da lei.
O Legislativo é composto por uma assembléia de cidadãos adrede escolhidos periodicamente pelos cidadãos, potenciais titulares de uma autoridade vaga e imponderável. Pressupõe-se que são investidos na tarefa como intérpretes do que seria a vontade do povo, uma entidade abstrata e inatingível.
O Executivo forma-se pelo mesmo processo, porém corporifica-se numa pessoa, que fica responsável pelo funcionamento de todo o segmento que dá concretude às ações administrativas.
Há vários processos para a composição do Judiciário. Eleição. Cooptação. Concurso. Outras vezes, esses procedimentos são utilizados em combinação. Qualquer desses modo, porém, apresenta vantagens e desvantagens. Na verdade, ainda não se encontrou uma fórmula satisfatória.
O Judiciário proclama-se escravo da lei. Só pode julgar de acordo com a lei. Aliás, nenhum dos Poderes, inclusive o Legislativo pode atuar que não seja em conformidade com a lei. E o Judiciário, como última instância do princípio da legalidade, põe-se como guardião de todo o sistema, garantidor dos direitos assegurados na lei. É, portanto, o escudo para barrar qualquer tipo de agravo cometido contra pessoas e até contra instituições.
Como se percebe, a concepção exposta é mecanicista, quer dizer, é como se as coisas funcionassem à maneira de uma engrenagem perfeitamente lubrificada.
Mas, na realidade não é bem assim. De permeio, atua um fator a contaminar todo o mecanismo. É a política.
A política pode ser concebida de duas formas: de um modo mais elevado, é a atividade que se desenrola na condução da coisa pública, na concretização do bem da coletividade, ou seja, o que, legitimamente, se pode chamar interesse público. Porém, de modo empírico, é o embate de pessoas, idéias e forças na conquista e manutenção do poder.
Nem a política se processa na concepção ideal (primeiro conceito), nem pode desenvolver-se inteiramente conforme o segundo conceito. Há sempre uma mescla entre ambas as visões, em que, dados momentos e circunstâncias, ocorre predomínio da segunda sobre a primeira. Corrupção.
Em qualquer acepção, porém, que se tenha o termo "política", a ela é inerente a discricionariedade. Todavia, os doutos não se cansam de apregoar, discricionariedade não se confunde com a arbitrariedade. Pode ser um pouco mais, um pouco menos ampla, mas sempre se processa no processa nos limites da lei.
Se assim é, tudo que excede desses limites passa a ser arbitrário e ilícito. Como, pois, admitir que o ato ou fato político seja insindicável?3 O poder judicial não existe exatamente para corrigir os abusos, os excessos, os agravos aos direitos de outrem?
Logo, sob capa de ato/fato político, não se pode conceber que sejam menosprezados direitos de cidadãos, numa democracia que se preza, numa república séria, em que a responsabilidade de todos deveria ser sempre presente.
No caso, a omissão judicial não passa de escapismo. Negação de justiça.
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1 Correspondência de Fradique Mendes, Obras Completas de Eça de Queiroz, Lello & Irmãos – Editores, Porto, p.1012.
2 Exemplo notável de rotulação convencional é o crime político, que o Ministro Gilmar Mendes, perspicaz Presidente do STF, desmascarou assim:
"Certas espécies de crime, não obstante objetivos políticos, não podem ser considerados crimes políticos. Levado às últimas consequências, poderíamos ter casos de estupro, pedofilia, tortura e genocídio tratados como crimes políticos".
Exemplificou com as ações da Ku Klux Klan e os assassinatos da missionária Dorothy Stang, de Chico Mendes e de Martin Luther King. E complementou: "São crimes com fortes conotações políticas, mas isso não é suficiente para considerá-los políticos" (Noticiário da imprensa sobre o julgamento do pedido de extradição de terrorista italiano, finalizado em 18/11/2009). Nesse caso, é lamentável que STF tenha agido como Pilatos. Disse sim que valeu por não e... lavou as mãos.
3 No foro internacional, a consciência humanitária não mais imuniza os tiranos decaídos.
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*Advogado e professor
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