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Procedimento penal na nova Lei de Falência

Foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União no dia 9 de fevereiro de 2005, a Lei nº 11.101, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, por isso conhecida como “Nova Lei de Falência”.

24/2/2005

Procedimento penal na nova Lei de Falência


Renato Marcão*


Saber as leis, dizem os jurisconsultos, não é ter-lhes em mente as palavras, mas conhecer-lhes a força e a intenção. Scire leges non est verba earum tenere, sed vim ac potestatem”.


Rui Barbosa1


1. Introdução

Foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União no dia 9 de fevereiro de 20052, a Lei nº 11.101, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, por isso conhecida como “Nova Lei de Falência”.

Entre outras coisas, conforme o disposto em seu artigo 200, pela nova lei ficam revogadas as disposições dos artigos 503 a 512 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, o Código de Processo Penal, que tratam “do processo e do julgamento dos crimes de falência”.

Por força do que estabelece seu artigo 201, a nova lei entrará em vigor em 120 (cento e vinte) dias após sua publicação, vale dizer, em 09 de junho de 2005, observada a regra do §1º do art. 8º da LC 95/983, não havendo que se cogitar, por aqui, da aplicação do princípio da incidência imediata estatuído no art. 2º do CPP.

A matéria penal e processual penal vem regulada no Capítulo VII. Deste, a Seção I, que compreende os artigos 168 a 178, cuida “Dos crimes em espécie” e “fraude a credores”; a Seção II, onde estão os artigos 179/182, traz as “Disposições Comuns”, e, por fim, a Seção III, nos artigos 183 a 188, cuida “Do procedimento penal”, sendo este o objeto das reflexões que buscaremos expor nas linhas seguintes, cumprindo anunciar, desde logo, a inexistência de qualquer pretensão no sentido de esgotar a matéria nos estreitos limites deste trabalho.

2. Competência

Conforme a norma geral do Código de Processo Penal, art. 70, a competência jurisdicional será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.

Em se tratando de crime falimentar, mesmo sob a regulamentação do Dec.-Lei n. 7.661/45, a antiga “Lei de Falência”, “o foro competente para o propositura da ação penal é o juízo onde foi declarada a falência”4. É o juízo da quebra.

Segundo Fernando Capez: “Recebida a denúncia ou queixa, os autos serão remetidos ao juízo criminal competente, para prosseguimento da ação, de acordo com o procedimento ordinário, seja o crime apenado com detenção, seja com reclusão. Ocorre que em São Paulo, por força da Lei Estadual n. 3.947/83, firmou-se a competência do juízo universal da falência para o julgamento dos crimes falimentares”. E arremata: “Essa lei estadual constitui norma de organização judiciária, de simples divisão de competência, não ofendendo assim, a Constituição Federal. O Código Judiciário do Estado dispõe que a mesma competência firmada para a capital aplica-se no interior”5.

É certo que o art. 504 do CPP determina que “a ação penal será intentada no juízo criminal, devendo nela funcionar o órgão do Ministério Público que exercer, no processo de falência, a curadoria da massa falida”, entretanto, ensina Damásio E. de Jesus com a inteligência de sempre e o costumeiro acerto que: “Embora a disposição determine que a ação penal por delito falimentar deva ser intentada no juízo criminal, os arts. 109, § 2º, e 194 da Lei de Falências afirmam que ela é iniciada no juízo da falência, excepcionalmente podendo ter início no juízo criminal”6.

Nos precisos termos do art. 183 da “Nova Lei de Falência”: “Compete ao juiz criminal da jurisdição onde tenha sido decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial, conhecer da ação penal pelos crimes previstos nesta Lei”.

Referindo-se ao “juiz criminal” da jurisdição onde tenha sido decretada a falência, a lei afasta qualquer dúvida e retira do “juízo universal da falência”, que é de natureza extrapenal, a competência para o processo e julgamento dos delitos falimentares.

Lembrando que a “nova lei” não prevê a possibilidade de concordada preventiva ou suspensiva, uma vez decretada a quebra, concedida a recuperação judicial, ou, homologado plano de recuperação extrajudicial, competente para as questões penais eventualmente surgidas será o juiz criminal da jurisdição onde tais atos se derem, aplicando-se quanto ao mais, para a fixação da competência, no caso de pluralidade de juízes igualmente competentes, as regras gerais do Código de Processo Penal (art.s 70 e seguintes).

3. Ação penal

Porquanto essencialmente público o bem jurídico tutelado na esfera penal, como se verifica na grande maioria dos casos, em regra a ação penal será pública incondicionada, e somente nos casos especialmente destacados na lei ela será de outra natureza, vale dizer: pública condicionada ou privada, em qualquer de suas modalidades.

Segundo o artigo 503 do CPP: “Nos crimes de falência fraudulenta ou culposa, a ação penal poderá ser intentada por denúncia do Ministério Público ou por queixa do liquidatário ou de qualquer credor habilitado por sentença passada em julgado”.

A previsão contempla, em se tratando de falência fraudulenta ou culposa, as possibilidades de ação penal pública incondicionada, por denúncia de iniciativa do Ministério Público, e ação penal privada, por queixa a ser ofertada pelo liquidatário ou qualquer credor habilitado por sentença passada em julgado.

Tal regra, que continuará a ser aplicada até que entre em vigor a “nova lei”, sofreu modificação visceral.

Foi excluída a possibilidade de ação penal privada em se tratando de crime falimentar, pois, consoante dispõe o art. 184 do novo diploma “os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada”.

Afastado qualquer interesse particular primário na persecução penal, subsiste, expressamente, apenas a ação penal de iniciativa do Ministério Público, por denúncia.

Há que se considerar, entretanto, a possibilidade de ação penal privada subsidiária da pública, prevista no art. 5º, LIX, da Constituição Federal, e também nos arts. 29 do CPP e 100, § 3º, do CP.

Evidentemente, observados os princípios da hierarquia e da verticalidade das normas, o disposto no caput do art. 184 não tem força suficiente para retirar do ordenamento a regra de base constitucional. Aliás, nem foi esse o propósito do legislador, tanto assim que no parágrafo único cuidou de estabelecer: “Decorrido o prazo a que se refere o art. 187, § 1º, sem que o representante do Ministério Público ofereça denúncia, qualquer credor habilitado ou o administrador judicial poderá oferecer ação penal privada subsidiária da pública, observado o prazo decadencial de 6 (seis) meses”.

Quanto à decadência e o prazo para o oferecimento da queixa subsidiária, a regra reproduz o que está disposto no art. 38 do CPP.

Assim, verificada a absoluta inércia do órgão Ministerial, qualquer credor habilitado ou o administrador judicial poderá intentar a ação penal nos moldes da regulamentação normativa, cumprindo observar, quanto ao mais, as disposições gerais do Código de Processo Penal.

4. Oferecimento da denúncia

Dispõe o art. 508 do CPP que: “O prazo para denúncia começará a correr do dia em que o órgão do Ministério Público receber os papéis que devem instruí-la. Não se computará, entretanto, naquele prazo o tempo consumido posteriormente em exames ou diligências requeridos pelo Ministério Público ou na obtenção de cópias ou documentos necessários para oferecer a denúncia”.

O art. 187 da “nova lei” cuidou da matéria nos seguintes termos: “Intimado da sentença que decreta a falência ou concede a recuperação judicial, o Ministério Público, verificando a ocorrência de qualquer crime previsto nesta Lei, promoverá imediatamente a competente ação penal ou, se entender necessário, requisitará a abertura de inquérito policial”.

Em outras palavras, porém, com o mesmo objetivo, cuidou a lei de estabelecer, mantendo as linhas do regramento anterior, que a ação penal não poderá ser iniciada sem que exista prévia sentença de decretação da quebra, e também agora, concedendo a recuperação judicial.

Fica mantida, portanto, a discussão a respeito da natureza jurídica da sentença declaratória da falência, onde também se insere, a partir da nova lei, a natureza da decisão que concede recuperação judicial.

No particular assunto, entendemos que a melhor lição é aquela apresentada por Damásio E. de Jesus, que assim se expressa: “Pensamos que nos delitos falimentares, conforme a figura penal, a declaração da falência constitui condição de procedibilidade ou elemento do tipo. A diversidade da natureza jurídica da declaração da quebra depende dos elementos contidos no tipo penal. Quando a figura incriminadora não contém a declaração da falência como elementar, ela configura condição de procedibilidade”. E arremata no notável jurista: “Quando, entretanto, a definição do crime contém a declaração da quebra, esta constitui elemento do tipo. Sem ela o fato a atípico”7.

Nos termos do caput do art. 187, intimado da sentença que decreta a falência ou concede a recuperação judicial, o Ministério Público, verificando a ocorrência de qualquer crime previsto na lei, promoverá imediatamente a competente ação penal, prescindindo da instauração de inquérito policial, porquanto dispensável, apesar de sua inquestionável utilidade e necessidade na esmagadora maioria dos casos.

Se o material probatório disponível não for suficiente para a formação de uma convicção segura e responsável acerca dos fatos sob análise, o representante do Ministério Público deverá requisitar a abertura de inquérito policial.

Com ou sem inquérito, seguindo as linhas do § 1º do art. 187 do novo regramento, “o prazo para oferecimento da denúncia regula-se pelo art. 46 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)”.

De forma saudável, a lei adota como regra geral a ser observada, a adoção dos prazos regulados no art. 46 do CPP. Vale dizer: 5 (cinco) dias estando o investigado preso, e 15 (quinze) dias se o investigado estiver solto.

Há, entretanto, uma ressalva. Em determinados casos o representante do Ministério Público poderá “decidir”, a juízo exclusivamente seu, portanto, sem ingerência ou fiscalização judicial anômala, por aguardar a exposição circunstanciada de que trata o art. 186 da “nova lei”8, devendo, em seguida, oferecer a denúncia em 15 (quinze) dias, conforme dispõe a parte final do art. 187.

De tal hipótese somente se poderá cogitar em se tratando de investigado solto.

5. Procedimento em juízo

De início é preciso anotar que apenas o crime do art. 178 é punido com detenção, de 1 a 2 anos, e multa. Todos os demais são punidos com reclusão, de 2 a 4 anos, e multa, exceção feita em relação aos crimes dos arts. 168 e 176, para os quais o legislador estabeleceu pena de reclusão, de 3 a 6 anos, e multa, em relação ao primeiro, e de reclusão, de 1 a 4 anos, e multa, quanto ao último.

Como se vê, é bastante reduzida a hipótese de aplicação dos institutos da suspensão condicional do processo e da transação penal (Leis 9.099/95 e 10.259/01) em se tratando de “crimes falimentares”, e a fixação da pena de reclusão para a maioria dos ilícitos, somada ao patamar mínimo alcançado por ocasião da individualização formal da pena, bem demonstra a intenção de se punir com maior rigor as condutas tipificadas.

Se por um lado o novo diploma é claro quanto à intenção acima destacada, e se até merece algum aplauso por ter pretendido maior celeridade aos processos criminais em se tratando de “delitos falimentares”, como deixa entrever, por outro é digno do mais forte repúdio ao estabelecer no art. 185 que, “recebida a denúncia ou a queixa, observar-se-á o rito previsto nos arts. 531 a 540 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, Código de Processo Penal”.

Para que se esclareça mais uma vez, é preciso lembrar que a única queixa que pode ser recebida em tais hipóteses é a queixa subsidiária, portanto, instauradora de ação penal privada subsidiária da pública.

Superada a questão com o simples esclarecimento em termos de complementação, o que resta é espanto e desalento, além da certeza de que o legislador realmente está despreparado para o enfrentamento das questões penais e processuais penais, o que, aliás, já nos ocupamos de escrever outras tantas vezes.9

Com efeito. O procedimento regulado nos art. 531 a 540 do CPP é o procedimento sumário, e vários dos dispositivos que cuidavam da matéria já foram revogados, sendo recomendada para a perfeita compreensão do assunto consulta aos ensinamentos de Damásio E. de Jesus, em sua consagrada obra “Código de Processo Penal anotado”, onde a matéria se vê abordada em toda sua amplitude e, bem por isso, esgotada.

Pela nova lei, indistintamente, o procedimento a ser aplicado é aquele previsto para os crimes punidos com detenção.

Não se desconhece que em outras hipóteses o Código de Processo Penal prevê a aplicação de um só procedimento para crimes punidos com detenção e reclusão, dando tratamento isonômico. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de crimes contra a honra, nos termos regulados no art. 519 do CPP. De ver-se, entretanto, que por aqui estamos diante de procedimento especial, inclusive e notadamente em razão do disposto no art. 520 do mesmo “Codex”, realidade que não se confunde com a indicada pela nova lei de falência.

É certo que o novo tratamento procedimental dispensado, de certa maneira também pode ser nomeado de especial, entretanto, tal reconhecimento decorreria exclusivamente do fato de se ter determinado a aplicação de um procedimento próprio para delitos punidos com detenção a delitos que basicamente são punidos com reclusão, sem qualquer regra “especial”, diferenciadora do procedimento (ao contrário do que ocorre, p. ex., na hipótese do art. 520 do CPP).

A especialidade, aqui, é bastante simples, e resume-se ao fato de se ter escolhido normativamente, para crimes punidos com reclusão, um procedimento próprio para delitos mais brandos.

A incompatibilidade que disso decorre é preocupante e chega aos limites de um questionamento fundado em base constitucional, na medida em que se esbarra no princípio da ampla defesa, pois é cediço que uma das formas básicas de se permitir o exercício deste princípio é estabelecer uma maior amplitude procedimental para os crimes combatidos com maior rigor punitivo no plano formal.

Deve haver uma co-relação; uma congruência; e, sempre, uma coerência entre a pena formalmente fixada e o procedimento a ser aplicado na persecução em juízo.

Para os delitos mais brandos, com conseqüências menos sensíveis, os procedimentos mais céleres e menos formais. Para os delitos mais graves, punidos com reclusão, os procedimentos mais amplos, com maior amplitude de defesa e formalismo.

Não é, entretanto, o que se vê na normatização sob comento, onde apenas um delito é punido com detenção e o procedimento previsto para o processo em relação a todos os crimes é o mais brando previsto no Código de Processo Penal.

O descompasso é flagrante, tanto quanto o equívoco da opção adotada pelo órgão legiferante.

6. Regras de aplicação subsidiária

Como soldado de reserva cuidou a “nova lei” de estabelecer em seu art. 188, quando nem precisava, que “aplicam-se subsidiariamente as disposições do Código de Processo Penal, no que não forem incompatíveis com esta Lei”.

7. Últimas considerações

É absolutamente inadmissível que, após mais de uma década de tramitação, venha para o universo jurídico uma lei com tamanha incompatibilidade.

A evolução do conhecimento científico; a realidade prática experimentada todos os dias nas mais variadas Instâncias judiciárias nitidamente estranha aos olhos do Poder Legiferante, bem como o prestígio que se quer dar “Justiça brasileira”, estão por merecer melhor atenção; mais respeito, o que determina a necessidade de um intransigente conhecimento do sistema normativo em sentido amplo, e da técnica de elaboração legislativa. No particular, era de se esperar especial atenção na “escolha” do procedimento penal a ser adotado em juízo, rendendo-se homenagem, inclusive, ao princípio constitucional da ampla defesa.
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1Sexta-feira, 11 de fevereiro de 2005 - Migalhas nº 1.105 - Fechamento às 9h44.

2Brasília, 9 de fevereiro de 2005; 184º da Independência e 117 o da República.

3Art. 8º. A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula “Entra em vigor na data de sua publicação” para as leis de pequena repercussão.

§ 1º. A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à sua consumação integral.

4TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal, 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 611.

5Curso de Processo Penal. 9ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 576.

6Código de Processo Penal anotado, 15ª ed., São Paulo, Saraiva, 1998, p. 364.

7Ob. Cit., p. 366.

8Art. 186. No relatório previsto na alínea e do inciso III do caput do art. 22 desta Lei, o administrador judicial apresentará ao juiz da falência exposição circunstanciada, considerando as causas da falência, o procedimento do devedor, antes e depois da sentença, e outras informações detalhadas a respeito da conduta do devedor e de outros responsáveis, se houver, por atos que possam constituir crime relacionado com a recuperação judicial ou com a falência, ou outro delito conexo a estes.

Parágrafo único. A exposição circunstanciada será instruída com laudo do contador encarregado do exame da escrituração do devedor.

9MARCÃO, Renato. Apontamentos sobre influências deletérias dos Poderes Legislativo e Executivo em matéria penal, RT 806/431; Direito penal brasileiro: do idealismo normativo à realidade prática, RT 781/484.
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*Promotor de Justiça membro do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais







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