Os agravos do cível (EC 45/04)
Rodrigo Ramos de Arruda Campos*
Essas ações, até então, processavam-se sob as regras do Direito Processual Comum. As decisões interlocutórias, por exemplo, eram agraváveis.
Não há dúvida de que as normas processuais novas entram em vigor imediatamente, ou seja, alcançam também os processos em curso.
Ocorre que os processos que tramitam perante a Justiça do Trabalho seguem o rito previsto na CLT. Já opinamos que não deixam margem a dúvidas os artigos 763 e 764 da CLT neste particular ("O processo na Justiça do Trabalho, no que concerne aos dissídios individuais e coletivos e à aplicação de penalidades, reger-se-á em todo território nacional pelas normas estabelecidas neste Título"; e "Os dissídios individuais ou coletivos submetidos à apreciação da Justiça do Trabalho serão sempre sujeitos à conciliação"). Portanto, os processos desaforados para a Justiça do Trabalho não mais seguirão as regras do direito processual comum, passando a respeitar as do processo laboral.
Há quem entenda, é bem verdade, que tais feitos deverão prosseguir, mesmo perante a Justiça do Trabalho, sob as regras do direito processual comum, com o que discordamos em face dos dispositivos da CLT precitados.
Os Juízes Presidentes dos Tribunais Regionais do Trabalho da 2a. e 15a. Regiões (São Paulo e Campinas) recomendaram que os processos egressos da Justiça Comum passem a ser regidos pela legislação processual trabalhista.
Prevalecendo esse entendimento, resta saber dos agravos de instrumento já interpostos, perante a Justiça Comum, antes da publicação da Emenda Constitucional 45. Isto porque no processo do trabalho, as decisões interlocutórias, salvo as denegatórias de seguimento a outros recursos, não são agraváveis (parágrafo 2o. do art. 893 da CLT: "Os incidentes do processo são resolvidos pelo próprio Juízo ou Tribunal, admitindo-se a apreciação do merecimento das decisões interlocutórias somente em recursos da decisão definitiva"). Por outro lado, em não havendo lacuna na legislação processual trabalhista, não se aplicam as disposições do processo civil (artigo 769 da CLT).
A situação dos agravos de instrumentos vindos do Juízo Cível, portanto, é complexa: até 30.12, aplicava-se a legislação processual comum; de 31.12 em diante, a legislação processual do trabalho. Há também casos nos quais, embora ainda não interpostos os agravos de instrumento, quando da publicação da Emenda Constitucional, os prazos para interposição já haviam iniciado. Com a vigência imediata da Emenda 45, como ficam os direitos subjetivos de interpor esses agravos de instrumento?
A questão, como se vê, é de direito processual intertemporal, cabendo verificar se, nessas duas hipóteses (agravos de instrumento efetivamente interpostos até 30.12, e prazos de agravos de instrumento em curso no dia 31.12) a parte prejudicada pela decisão agravável tem direito processual adquirido à sua revisão incidental (se tiver, obviamente a competência para processar e julgar tais agravos de instrumento passa a ser de algum órgão da Justiça do trabalho).
Cabe lembrar, neste particular, que apesar das teorias existentes em matéria de direito processual intertemporal, a que prevalece entre nós é a do isolamento dos atos processuais. Ou seja, cada ato processual tem um único regramento, que deve ser o vigente no momento em que se consuma. Resta saber se é o direito de praticar o ato que se consuma, ou o ato processual efetivamente praticado é que aperfeiçoa o direito processual adquirido.
A discussão, como se vê, não é simplória. Basta imaginar uma decisão interlocutória da qual a parte prejudicada é intimada antes de 31.12.04, cujo prazo previsto no CPC supera o dia 31.12 (início da vigência da EC 45). A lei da data da publicação da decisão interlocutória agravável (CPC) garantia à parte prejudicada um determinado prazo para agravar, recurso esse que não é admitido perante a nova regra (CLT). É legítimo, metaforicamente falando, abortar o direito de interpor o agravo de instrumento? Qual é a lei processual aplicável: a do dia de interposição do agravo ou o da publicação da decisão agravável?
Estamos com DINAMARCO quando pontua que "A garantia constitucional do controle jurisdicional (Const. art. 5o., inc. XXXV), que, em substância, é garantia de acesso à justiça, impede que a lei processual nova retire a proteção antes outorgada a determinada pretensão, de modo a tornar impossível ou particularmente difícil a tutela jurisdicional antes prometida", e, portanto, "a solução deve ser outra quando o próprio acesso à justiça é bloqueado - como no caso de ser pura e simplesmente excluído o controle jurisdicional referente a dada situação" (A Reforma da Reforma, Malheiros Ed., São Paulo, 2002, págs. 53/54).
O Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, valendo-se dos próprios postulados contidos em Direito e Justiça (Suplemento do Correio Braziliense, 22.2.99), reproduz a doutrina de Roubier e Galeno e equaciona de forma simples e precisa a questão: "Se não se suprimiu o recurso, não há razão para que prevaleçam as regras anteriores do seu procedimento" (STJ, AgResp 180.600, DJ, 08.3.2000). Transpondo essa lição para a hipótese ora tratada, uma vez suprimido o agravo de instrumento pela 'nova' legislação trabalhista (CLT), deve-se respeitar o direito processual já conferido pela legislação 'antiga" (CPC), sob pena de violação do seu direito processual adquirido.
Em nosso ver, nesse caso específico e considerando a supressão do agravo de instrumento pela mutação repentina do CPC para a CLT, o que importa para se estabelecer qual das duas leis processuais é aplicável, mister verificar a vigente no dia do surgimento do direito subjetivo de interpor o agravo de instrumento, e não o momento em que esse mesmo ato processual é efetivamente praticado (externado, materializado nos autos do processo). Assim, os prazos recursais iniciados antes de 31.12.04, mas ainda incompletos, continuam a fluir segundo a regra anterior, de modo que se a parte interpôs agravo de instrumento mesmo depois de 31.12.04, mas segundo a regra vigente na data da publicação da decisão agravável, exerceu o direito de agravar segundo a lei lhe garantia e, portanto, não pode ser aplicada nova regra com efeitos abortivos.
É preciso não confundir atos jurídicos complexos, com prazos processuais. O processo judicial é composto de vários atos, portanto não resta dúvida de que o processo judicial em si é complexo, mas não necessariamente todos os seus atos processuais. Não é a faculdade de praticá-los em determinados prazos que torna os atos processuais complexos, mas, isto sim, a exigência legal de mais de uma providência para que o mesmo ato se considere completo.
O tema comporta profunda controvérsia mesmo neste ponto. José Frederico Marques considera o artigo 2o. do Código de Processo Penal um princípio geral de direito processual intertemporal: "A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior" (Teoria Geral do Processo, de Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, RT, São Paulo, 6a. ed., 2a. tiragem, pág. 63). Já se atribuiu esse caráter de sobredireito também ao artigo 1211 do CPC.
A noção mais justa de direito adquirido (art. 5o., XXXVI, CF), passa necessariamente, também, pela sofisticada distinção doutrinária entre direito processual material e direito processual formal, como lembra DINAMARCO: "É lícito falar em um direito processual material, em oposição ao direito processual formal (Chiovenda), sendo este representado pelos preceitos ligados à técnica do processo e aquele, mais diretamente, às garantias da tutela jurisdicional. O direito processual material ocupa certas faixas de estrangulamento entre o processual puro e o substancial, representadas pelas categorias jurídicas da ação, fontes e ônus da prova, coisa julgada material e responsabilidade patrimonial. Seria ilegítimo outorgar à lei nova a eficácia de transgredir situações pré-processuais ou mesmo extraprocessuais como essas, em nome de uma suposta retroatividade, ou mesmo de sua aplicação imediata" (idem).
Essa distinção é o nó górdio da questão, tanto que sempre lembrada na jurisprudência, como se depreende de recente julgado do Superior Tribunal de Justiça: "Embora se atribua, em regra, ao direito processual eficácia imediata, as suas normas da espécie instrumental material, precisamente porque criam deveres patrimoniais para as partes, como a que se contém no artigo 20 do Código de Processo Civil, não incidem nos processos em andamento, quer se trate de processo de conhecimento, quer se trate de processo de execução, por evidente imperativo último do ideal de segurança também colimado pelo Direito. As normas processuais instrumentais materiais, enquanto integram o estatuto legal do processo, são as vigentes ao tempo de seu início, não alcançando a lei nova subseqüente." (Rel. Min. Hamilton Carvalhido, RESP 546.762-RS, DJ 28.6.2004, página 434).
Em síntese, para que se preserve a segurança jurídica e o direito processual adquirido dos litigantes, os agravos de instrumento interpostos até 31.12.04 e aqueles cujos prazos de interposição iniciaram antes de 31.12.04 devem ser regularmente processados e julgados pelos órgãos da Justiça do Trabalho, aplicando-se o direito processual trabalhista, aí sim, a partir do julgamento desses agravos (Enunciado 218 do TST: É incabível recurso de revista contra acórdão regional prolatado em agravo de instrumento).
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*Advogados do escritório Demarest e Almeida Advogados
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