Etanóis Neles...
Jorge Luiz Souto Maior*
A defesa da Cosan pautou-se pelo típico argumento que advém da perversidade da terceirização. A Cosan alegou que quem era a responsável por aqueles trabalhadores era a "empresa" José Luiz Bispo Colheita - ME, que prestava serviços na usina.
E para passar por vítima, apresentando-se para a sociedade como arauto da legalidade e do respeito aos direitos sociais, afirmou que assim que tomou conhecimento da situação tratou de excluir a “empresa” José Luiz Bispo Colheita – ME da sua lista de fornecedores.
Disse, ainda, que não houve trabalho em condições análogas a de escravos, mas apenas "más condições nas instalações físicas", argumento, aliás, que foi acatado pelo Judiciário trabalhista, para excluir a COSAN da lista suja. Na decisão judicial foi dito que "não há a inequívoca conclusão de que havia a redução dos trabalhadores à condição de escravos", pois não existem elementos que atestem que os trabalhadores tiveram restringidos o direito de ir e vir...
Na linha de acertar as coisas, o Ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, reforçou o argumento, vindo a público para dizer que a inclusão da Cosan na lista do Ministério do Trabalho foi um exagero e um erro: "Na minha visão, houve um exagero. E, além de exagero, houve um erro. A Cosan teve um problema há três anos, através de uma empresa terceirizada, de uma fornecedora, e a Cosan tem centenas de fornecedoras" – disse o ministro numa coletiva de imprensa sobre a balança comercial do setor agrícola. E, acrescentou: "A Cosan, na época, imediatamente resolveu o problema, assumiu, embora o problema não fosse dela, e regularizou".
O episódio faz lembrar a trama de um dos filmes do cineasta francês, René Clair, A Nós a Liberdade, em que toda origem espúria da acumulação do capital é esquecida quando a atividade empresarial, que dela decorre, torna-se produtivamente eficaz e lucrativa.
Ora, o que se extrai das manifestações do Judiciário e do Executivo é que não vale a pena pôr em risco uma atividade empresarial lucrativa, como a da COSAN, e, sobretudo, o projeto do Etanol no Brasil, por causa do desrespeito à condição humana de 42 trabalhadores. Como se diz na gíria: "é nóis!". Ou, na linguagem caipira: "Eta, nóis!"
Assim, de tudo o que restou foi a certeza de que todo o mal foi promovido, unicamente, pela "empresa" terceirizada, denominada, no caso, "fornecedora". E, ampliando-se a lógica da perversão da realidade é até provável que se venha a dizer que os verdadeiros culpados pela situação foram os próprios trabalhadores que aceitaram trabalhar nas condições que lhe foram oferecidas. Se não tivessem aceitado, nenhum problema teria ocorrido... Aliás, o maior atrevimento dessas pessoas foi o de terem nascido. Agora, que se virem com o álcool!
Mas, vistos os fatos sem as máscaras da perversidade, fácil verificar o quanto a terceirização contribuiu para a ocorrência da agressão aos direitos humanos e, pior, para gerar impunidade aos seus reais responsáveis.
A terceirização cria o fetiche de que a exploração do trabalho alheio não se insere no contexto de atividade do "tomador de serviço". É como se o capitalismo, para se desenvolver, não mais precisasse da exploração do trabalho humano. A exploração se desloca do capital para o nível dos descapitalizados, que se exploram mutuamente, principalmente quando as empresas de prestação de serviços não são nada mais do que a transformação aparente do "capataz" em "empresário".
Ora, não se pode deixar obscurecido o fato de que o capital é quem explora o trabalho e o capitalista, no caso, não é, por certo, a "empresa" José Luiz Bispo Colheita – ME. É mais que evidente que um José Luiz Bispo Colheita - ME não é detentor de capital suficiente para possuir 42 empregados e mais ainda para mantê-los em regime de escravidão moderna.
Não bastasse a evidência estampada no próprio nome, é possível comprovar o fato mediante simples pesquisa no "Google". Ver-se-á, então, que a dita "empresa", no resultado da pesquisa, 392 vezes em notícias relacionadas à Cosan e em uma na condição de parte, no pólo passivo, de uma reclamação trabalhista (Processo 587-2008-158-15-00-6, com trâmite na Vara do Trabalho Itinerante de Igarapava/SP), já em fase de execução. Consta que para adimplir seu crédito, o reclamante só conseguiu penhorar o seguinte bem do Sr. José Luiz Bispo: "1 (um) aparelho de som, com 2 caixas de som, marca Phillips, modelo FWM57, digital amplifier, MPS, Mini Hi-Fi System. Equipamento semi-novo. Funcionando"; avaliado em R$ 850,00, em 21 de julho de 2009.
Pode, então, o Sr. José Luiz Bispo ser tratado como um "capitalista malvado, explorador de trabalhadores"? Ora, não é preciso ser Sherlock Homes para saber que o Sr. José Luiz Bispo, não sendo capitalista, foi tão explorado pela Cosan quanto os demais 42 trabalhadores. Ademais, tinha a Cosan amplas condições de saber que a precariedade da condição econômica do Sr. José Luiz Bispo geraria o completo descaso com os cuidados com as "instalações físicas".
Mas, nada disso deve ser dito às claras porque para os efeitos da realidade pervertida o que vale é a formalidade traduzida pelo fenômeno da terceirização, que, na situação em concreto, se pôs a serviço do projeto nacional do Etanol e do interesse dos acionistas da Cosan. Dentro desse contexto, não houve exploração do capital sobre o trabalho e o escravagista (se é que uma escravidão tenha havido) foi o Sr. José Luiz Bispo. E, penalização econômica, com ressarcimento dos 42 trabalhadores pelos danos pessoais experimentados em razão da agressão sofrida, nem pensar! Afinal, o aparelho de som do Sr. José Luiz Bispo, que vale R$850,00, já foi penhorado...
A terceirização legitimou tudo isso, podendo ser, assim, definida como "a técnica moderna para o cometimento do crime perfeito contra os direitos humanos!"
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*Professor de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP e Juiz do Trabalho
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