Uma das maiores distorções de nosso sistema processual é o regime de honorários advocatícios sucumbenciais (CPC, art. 85). Quem sofre com a causa, arca com as despesas e assume os riscos é normalmente a parte. Natural seria que, ao vencer a causa, a parte fosse ressarcida, ainda que parcialmente, das despesas nas quais incorreu com a condução do processo, inclusive com a remuneração de seu advogado.
Ocorre que a lei não é assim.1 A advocacia obteve privilégio, desde a lei 8.906, de 4 de junho de 1994, a qual determinou que, ao fim da causa, quem passa a ter o direito de receber da parte vencida uma verba sucumbencial é o advogado. Não a parte. E o Código de Processo Civil de 2015 corou o sistema, determinando que, mesmo o servidor público advogado, com remuneração mensal fixa e "cliente" designado por lei, passa a ter direito à mesma sorte de verba.
Daí ficamos assim: aquele que tem razão, no sistema brasileiro, jamais receberá "tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir", caso no âmbito do direito material seus diretos tivessem sido respeitados.2 Na melhor das hipóteses, receberá a prestação devida, além do ressarcimento de custas e outras despesas, menos os honorários advocatícios contratuais despendidos. Quem tem direito a 100 e ganha 100, nunca ganha 100 de verdade, se teve que gastar 10 ou 20 para poder ganhar 100.
O sistema brasileiro apresenta uma grande singularidade neste aspecto. Há países que garantem e países que não garantem à parte vencedora o direito de receberem da parte vencida ressarcimento pelos custos do processo. Nenhum país, todavia, garante apenas ao advogado o direito a prêmio final.3
Defendo, como o fiz em outras oportunidades, que a lei seja alterada, para que tal incongruência seja corrigida e a titularidade das verbas sucumbenciais seja direcionada à parte vencedora. De qualquer modo, como deve ser em qualquer sistema civilizado, o CPC é aquele que temos, e não o que queríamos ter, e a lei enquanto for lei deve ser rigorosamente aplicada.4
Daí como responder à questão colocada acima? O que fazer para, respeitando a lei, garantir um processo sem honorários sucumbenciais? E o que seria ainda melhor, como fazer com que o processo, ao fim, gere um ressarcimento em favor da parte vitoriosa relativamente às despesas com advogado?
A resposta é uma só: negócio jurídico processual. Tal como previsto no artigo 190 do Código de Processo Civil, "é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo". Nos ditames da lei, "“versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição", não há nenhuma objeção para que as partes, antes do processo, mediante simples contrato, ou durante o processo, estipulem livremente que não haverá condenação da parte sucumbente em honorários sucumbenciais.5
O detalhe desta hipótese é apenas um: sendo o advogado, e não a parte, o potencial sujeito ativo desse direito aos honorários, somente terá eficácia o negócio processual de “não condenação em honorários sucumbenciais” se o advogado anuir expressamente com a transação.6
Daí a primeira premissa. O advogado que atuar na causa deve ser sujeito do negócio processual.
O problema é que os advogados podem ser substituídos, inclusive no curso do processo, havendo sempre o risco de advogado que não participou do negócio venha, depois, pleitear honorários, alegando que não poderia ter sido atingido por pacto do qual não participou.7
Daí a segunda premissa. As partes, para se resguardarem, além da cláusula de "não condenação em honorários sucumbenciais", precisam firmar uma segunda, comprometendo-se a obterem a anuência expressa ao negócio processual de quaisquer advogados que constituírem futuramente no processo.
Em situação de plena paridade, havendo liberdade para eleger o advogado e negociar sua contratação, tal cláusula não representaria nenhuma sorte de cerceamento a direito fundamental ou à ordem pública. Qualquer advogado que vier a atuar no processo deve saber, anteriormente, que não contará com nenhuma condenação em honorários sucumbenciais, aceitando a causa com esta condição e precificando seu serviço com base nessa informação prévia.
Definido esse ponto. Podemos ir além? Ao invés de simplesmente excluirmos pela vontade das partes o direito ao recebimento de uma verba, podemos criar uma nova obrigação decorrente do fim do processo, por meio de negócio jurídico processual?
Certamente que sim. Preenchidos os requisitos do artigo 190, podem as partes determinar que, ao fim do processo, a parte sucumbente deverá pagar, não ao advogado, mas à parte vitoriosa, quantia em dinheiro especificamente acordada ou mesmo seguindo os parâmetros do artigo 85 do Código de Processo Civil, com o objetivo de compensá-la integral ou parcialmente pelos custos do patrocínio da causa.8
A liberdade, sim, a liberdade, não pode ser subestimada nas relações civis, nem mesmo quando as partes se encontram diante da Jurisdição. São os indivíduos que têm as melhores condições de determinarem, no caso concreto, o meio mais adequado de regular suas próprias relações. Não é o Estado. Tal fato é verdadeiro diante de boas leis. Absolutamente inquestionável, diante de lei ruim.
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1 Não apenas a lei não é assim, como a jurisprudência se consolidou no sentido de não permitir que o vencedor obtenha do vencido o ressarcimento dos gastos que teve com advogado (honorários contratuais), restringindo o sentido do artigo 404 do Código Civil. Cf. STJ, Corte Especial, EREsp. 1.507.864/RS, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJe 11/5/2016; STJ, 2ª Seção, EREsp 1.155.527/MG, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 28/6/2012) e STJ, 4ª T., AgInt no AREsp 1254623/MG, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 28/06/2019.
2 Nesse sentido, a célebre assertiva de Chiovenda, para quem: "O processo deve dar, quanto for possível praticamente, a quem tem um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir." (Instituições de direito processual civil. São Paulo. Saraiva e Cia., 1942).
3 A doutrina comparada classifica diferentes sistemas a partir o paradigma da English Rule ("loser pays" rule) e da American Rule ("each party pays its own attorney fees"). No primeiro, o perdedor tem a obrigação de ressarcir o vencedor das despesas com advogado, no segundo, cada parte arca com seus custos, sem direito a ressarcimento. Em nenhum desses sistemas, ou qualquer outro conhecido, se cogita não remunerar a parte, mas apenas seu advogado, diretamente (Cf. Issachor Rosen-Zvi, "Just fee shifting", Florida State University Law Review, Vol. 37:717).
4 A este respeito Cf. Fernando Gajardoni, "O Novo CPC não é o que queremos que ele seja" disponível aqui, acesso em 13.1.2021.
5 Antes da existência do CPC de 2015, o STF já havia entendido pela possibilidade de transações a respeito da destinação dos honorários sucumbenciais, considerando a liberdade contratual existente na matéria: "O art. 21 e seu parágrafo único da Lei n. 8.906/1994 deve ser interpretado no sentido da preservação da liberdade contratual quanto à destinação dos honorários de sucumbência fixados judicialmente." (STF, Pleno, ADI 1194, Relator Maurício Corrêa, Relator p/ Acórdão: Cármen Lúcia, LEXSTF v. 31, n. 369, 2009, p. 46-123).
6 Tratando dessa questão, Bruno Redondo e Julio Müller ressaltam que: "os honorários jurisdicionais são de titularidade do advogado (art. 85, §14, CPC/2015; art. 23 da lei 8.906/1994; Súmula 306 do STJ32 e Súmula 135 do TJRJ33), o qual pode, voluntariamente, negociar sua repartição com o cliente, caso assim convencionem as partes no momento da celebração do contrato de mandato judicial. O credor dos honorários é o advogado e, o devedor, a parte contrária da demanda. Por essa razão, é necessário que participem da convenção todos os sujeitos da relação obrigacional dos honorários, isto é, todos os advogados que, de acordo com a regra geral, deveriam receber os honorários, bem como todas as partes da demanda que deveriam arcar com o seu custo. Caso a convenção seja celebrada somente entre as partes, com exclusão dos advogados beneficiários, a princípio a avença não será oponível aos patronos. Não obstante, é possível a adoção do regramento da estipulação em favor de terceiro (art. 436 do CC), a fim de se permitir que uma convenção das partes, sem a participação dos advogados, possa se tornar eficaz em relação aos mesmos na hipótese de ulterior anuência. Se, durante o curso do processo, uma parte vier a substituir seu advogado, é evidente que a anterior convenção (com o anterior patrono) não será eficaz em relação ao novo profissional, que dela não participou. Não obstante, é facultado, ao novo advogado, anuir à anterior avença sobre honorários, caso eventualmente lhe convenha" (Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, Vol. 16, julho a dezembro de 2015, pp. 58-76).
7 É compreensível crer que, mesmo sem anuência expressa, o advogado, ao aceitar ingressar na causa, estaria tacitamente anuindo ao negócio jurídico processual firmado em relação ao processo, especialmente porque é razoável crer que o advogado deve analisar, integralmente, os autos logo ao ingressar. Todavia, o objetivo desta segunda cláusula é minimizar as chances de discussão a respeito do tema, impondo dever à parte que constitui o advogado, de garantir uma anuência expressa.
8 O negócio jurídico para convencionar o direito de recebimento de uma verba pela parte vencedora não pode ser confundido com a imposição de um dever para que o juiz efetue condenação, na sentença, ao pagamento desta verba, o que poderia ser objeto de negócio jurídico processual, nos termos que indica precedente do Superior Tribunal de Justiça, firmado no sentido de que não autorizar que as partes negociem a respeito do modo de agir do juiz no processo: "A interpretação acerca do objeto e da abrangência do negócio deve ser restritiva, de modo a não subtrair do Poder Judiciário o exame de questões relacionadas ao direito material ou processual que obviamente desbordem do objeto convencionado entre os litigantes, sob pena de ferir de morte o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal e do art. 3º, caput, do novo CPC". (STJ, 3ª T., REsp 1738656/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 05/12/2019).