Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque
1. Introdução
A crise sanitária pela qual passamos, desde o mês de março de 2020, tem trazido inúmeros impactos no campo do direito privado. Não por acaso, recentemente a Câmara dos Deputados deliberou sobre o PL 1.179/2020, que institui normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de direito privado em virtude da pandemia, o qual retornará ao Senado Federal para apreciação das modificações realizadas na Câmara.
É evidente que todos esses impactos, sem embargo da possibilidade de as partes alcançarem soluções consensuais, acarretarão o ajuizamento de um número expressivo de demandas revisionais das mais variadas espécies. Contratos de locação, de fornecimento de mercadorias, de prestação de serviços, de construção civil, de financiamentos em geral são apenas algumas das hipóteses suscetíveis, em tese, de sofrerem as repercussões decorrentes da pandemia.
Contudo, é preciso separar o joio do trigo – ou seja, as demandas minimamente plausíveis das ações judiciais oportunistas. Em meio a uma crise de espectro amplo como a que se apresenta, não é difícil imaginar que alguns a utilização como cortina de fumaça para que seja chancelado em juízo o seu inadimplemento. Basta imaginar, por exemplo, uma demanda revisional locatícia amparada genericamente na Covid-19 e ajuizada por uma farmácia, que continua funcionando normalmente.
2. O processo civil entra em campo
E como o processo civil pode contribuir nessa tarefa?
Muito já se escreveu sobre o art. 489, § 1º do CPC, que disciplina de forma mais detalhada sobre o dever de fundamentação das decisões judiciais. Em síntese, as hipóteses ali indicadas buscam evitar que o caso concreto seja decidido de forma genérica, com argumentação que poderia ser replicada indiscriminadamente.
Nesse sentido, a decisão que se limita à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo (por exemplo, "nos termos do art. 300 do CPC, defiro a liminar") pode ser reproduzida em um número infindável de casos, mesmo que eles sejam absolutamente distintos. Idêntica situação se passa com o emprego de conceito jurídico indeterminado sem explicitar sua relação com o caso (ilustrativamente, "defiro a suspensão das obrigações contratuais com fundamento na função social do contrato"). Isso também ocorre com a aplicação de precedente ou enunciado de súmula sem explicitar sua relação com o caso (por exemplo, "não conheço do recurso especial com base na Súmula 7 do STJ", sem identificar que fato ou prova necessitaria ser reexaminado para apreciar o recurso).
É claro que todas essas considerações também se aplicam às demandas judiciais revisionais ajuizadas com base na crise sanitária pela qual passamos. Não pode o juiz, por exemplo, suspender a exigibilidade das obrigações contratuais apenas invocando a dignidade a pessoa humana ou citando genericamente o art. 393 do Código Civil, segundo o qual o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, sem explicar sua relação com o caso.
Há, enfim, requisitos específicos para que os contratos possam sofrer a intervenção judicial, não podendo a pandemia ser utilizada como se fosse uma carta branca para justificar o indiscriminado descumprimento de obrigações contratuais, sob pena de instaurar grave insegurança jurídica.
3. Um breve passeio pelo direito civil1
A pandemia pode, em tese, configurar evento de força maior ou caso fortuito, mas apenas se ensejar a impossibilidade objetiva no cumprimento de determinada obrigação. Ou seja, independentemente da situação patrimonial do contratante, não é possível que a obrigação seja cumprida. Uma peça de teatro que não se realiza devido às regras de isolamento social ou um artista acometido pela Covid-19, por exemplo, são hipóteses passíveis de enquadramento nesse caso.
Pode a pandemia, ainda, acarretar a excessiva onerosidade das obrigações, na presença de específicos requisitos: vigência de contrato de longa duração, de execução continuada ou diferida; ocorrência de evento superveniente, extraordinário, imprevisível e não imputável a qualquer das partes; que onere excessivamente um dos contratantes; e acarrete extrema vantagem ao outro. Além disso, a parte que pretende invocar a excessiva onerosidade não pode se encontrar em mora (como decorrência do artigo 399 do Código Civil). No que tange às relações de consumo, contudo, o art. 6º, V do CDC não exige, para a revisão ou resolução contratual, que o fato superveniente seja imprevisível.
É o caso em que uma das partes acaba penalizada em sua prestação de serviços pelo aumento inesperado dos insumos utilizados. Ainda que, em tese, seja possível continuar a prestar os serviços pelo preço originalmente ajustado, o contratante sofrerá prejuízo, diante do incremento de seus custos.
Observe-se que, à luz do PL 1.179/2020, em sua redação aprovada na Câmara dos Deputados, não se consideram fatos imprevisíveis, para fins de configuração da onerosidade excessiva dos contratos, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário (art. 7º). Além disso, as normas do CDC não devem ser extrapoladas para serem aplicadas em relações tipicamente empresariais (art. 7º, § 2º).
Finalmente, pode a pandemia atingir apenas a situação patrimonial de uma das partes contratantes. Pense-se, por exemplo, no locatário que não consegue mais pagar o aluguel de sua residência por ter perdido o emprego ou no estabelecimento comercial que não consegue mais cumprir suas obrigações por ter sido obrigado a suspender suas atividades. Como se trata de hipóteses em que a interferência não se verifica na relação contratual em si – que continua com o mesmo equilíbrio de antes – mas apenas na situação patrimonial do contratante, não há que se falar em onerosidade excessiva nessa situação.
Nestes casos, devem ser utilizados mecanismos voltados a remediar o desequilíbrio patrimonial do contratante, como a recuperação judicial.
4. Voltando ao processo civil: o ônus da argumentação especificada
Como já se demonstrou, não há que se admitir a quebra indiscriminada de contratos com base na alegação genérica de crise sanitária. Qualquer decisão judicial que se proponha a intervir nos contratos celebrados entre as partes deve demonstrar, de forma concreta, o preenchimento dos requisitos para este fim.
Pretende-se, contudo, ir além do que dispõe o art. 489, § 1º do CPC.
Nesse sentido, para além do dever de fundamentação para o juiz, as partes também devem observar o ônus da argumentação especificada.
Como já tivemos oportunidade de escrever em outra oportunidade, também a parte,
como resultado dos deveres de boa-fé e cooperação (arts. 5.º e 6.º) e do princípio do contraditório, tem o ônus de fundamentar adequadamente a sua petição inicial, não podendo se limitar a alegar genericamente o seu pretenso direito2. Afinal, o juiz e as partes são sujeitos do contraditório e, portanto, deve haver simetria nos encargos estabelecidos para que haja o efetivo diálogo processual.
A noção de processo cooperativo coloca a tônica da divisão de trabalho no diálogo entre todos os sujeitos do processo. Estrutura-se o processo em uma comunidade de trabalho (Arbeitsgemeinschaft), em que todos os sujeitos podem e devem contribuir para o exercício da função jurisdicional3. As partes não detêm a primazia dos direitos e faculdades processuais, nem o juiz concentra todos os poderes em suas mãos. Há no modelo cooperativo verdadeiro policentrismo processual4.
Assim, refletindo-se sob a perspectiva da parte o dever de fundamentação analítica, não pode o demandante (i) simplesmente indicar, reproduzir ou parafrasear artigo de lei sem explicar sua relação com a causa; (ii) invocar termos vagos (conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas gerais) sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; (iii) invocar precedente ou enunciado de súmula sem demonstrar que seus fundamentos determinantes se ajustam ao caso veiculado na petição inicial; (iv) invocar princípios sem justificar adequadamente por qual razão incidem na situação concreta posta em discussão.
Em vez disso, deve o autor demonstrar, de forma especificada, o preenchimento dos requisitos estabelecidos no direito material para que seja autorizada a intervenção judicial. Em vez de simplesmente alegar a pandemia como justificativa para que não sejam cumpridas as obrigações contratuais, constitui ônus do demandante explicar por que, no caso concreto, verificou-se um evento de força maior ou caso fortuito ou, ainda, a excessiva onerosidade do contrato. Pode o autor, ainda, demonstrar que a crise não repercutiu sobre o equilíbrio contratual, mas comprometeu a sua própria situação patrimonial, pleiteando o remédio jurídico pertinente.
Eis o ônus da argumentação especificada, cuja denominação aqui proposta se deve ao fato de (i) que se trata de ônus (e não dever), ou seja, uma conduta imposta ao demandante para a obtenção ou preservação de um interesse próprio – no caso, a prestação da tutela jurisdicional relativa à sua demanda revisional; e (ii) ao desejável paralelismo com o ônus da impugnação especificada imposto ao réu na contestação, nos termos do art. 341 do CPC5, Nada mais natural que, por força da isonomia processual, o autor arque com o ônus da argumentação especificada e o réu, com o ônus da impugnação especificada.
E o que acontece se o autor não observar esse ônus?
A resposta é encontrada dentro do próprio ordenamento processual. Se na petição inicial apenas é invocada genericamente a pandemia, sem nenhuma demonstração sobre o preenchimento dos requisitos estabelecidos pelo direito material para que haja a intervenção judicial, isso significa que da narração dos fatos não decorre logicamente a conclusão sustentada pelo demandante. Ou seja, está configurada uma das hipóteses de inépcia da petição inicial (art. 330, § 1º, III, CPC).
Nesse caso, deve o juiz intimar o autor para que emende a petição inicial, sob pena de indeferimento (art. 321 do CPC).
Caso, eventualmente, a petição inicial tenha sido indevidamente recebida pelo juiz, com a citação do réu, este ainda poderá alegar a inépcia, postulando a extinção do processo, sem resolução de mérito. Contudo, se não houver prejuízo para o regular exercício do contraditório pelo demandado, poderá o juiz, diante do princípio da preponderância (ou primazia) da solução do mérito (arts. 6º, 317 e 488 do CPC), superar tal questão formal e examinar o mérito da demanda revisional.
De todo modo, sem a demonstração concreta dos requisitos exigidos pelo direito material, o pleito do autor estará fadado à improcedência.
* * *
A pandemia da Covid-19 apresenta situações inéditas, muitas das quais exigirão esforços de amplos setores da sociedade. O Poder Judiciário não é exceção e, sem dúvida nenhuma, será chamado a atuar em inúmeras demandas que terão como pano de fundo a crise sanitária.
Mais do que nunca, torna-se necessário separar as demandas judiciais que revelem um mínimo de plausibilidade das absolutamente infundadas. Espera-se que o ônus da argumentação especificada, na forma aqui proposta, possa ser um instrumento útil para assegurar o exercício responsável do direito de ação.
Por hoje, ficamos por aqui. Até a próxima!
__________
1 V., de forma mais aprofundada, Gustavo Tepedino, Milena Donato Oliva e Antônio Pedro Dias. Contratos, força maior, excessiva onerosidade e desequilíbrio patrimonial. Conjur, publicado em 20.4.2020. Disponível aqui. Acesso em 16.5.2020.
2 Andre Vasconcelos Roque. Comentários ao art. 319 in Fernando da Fonseca Gajardoni et al. Comentários ao CPC de 2015 – Processo de conhecimento e cumprimento de sentença. São Paulo: Método, 2018, p. 11. V. tb. Luiz Guilherme Marinoni et al. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 339; Marcelo Pacheco Machado. Novo CPC: precedentes e contraditório. Gen Jurídico, publicado em 23.11.2015. Disponível aqui. Acesso em 16.5.2020. Mais amplamente, sob a perspectiva do contraditório, Andre Vasconcelos Roque. Contraditório participativo: evolução, impactos no processo civil e restrições. Revista de Processo, n. 279, p. 19-40, maio 2018.
3 Leo Rosenberg. Tratado de Derecho Procesal Civil. Trad. Angela Romera Vera. Buenos Aires: EJEA, 1955. t. I, p. 8.
4 Nicola Picardi. Manuale del processo civile. Milano: Giuffrè, 2006. p. 208.
5 Art. 341. Incumbe também ao réu manifestar-se precisamente sobre as alegações de fato constantes da petição inicial, presumindo-se verdadeiras as não impugnadas, salvo se: I - não for admissível, a seu respeito, a confissão; II - a petição inicial não estiver acompanhada de instrumento que a lei considerar da substância do ato; III - estiverem em contradição com a defesa, considerada em seu conjunto. Parágrafo único. O ônus da impugnação especificada dos fatos não se aplica ao defensor público, ao advogado dativo e ao curador especial.