Tendências do Processo Civil

Desapropriação em descompasso com o CPC/15: Precisamos de uma nova lei

Desapropriação em descompasso com o CPC/15: Precisamos de uma nova lei.

17/2/2020

Texto de autoria de Marcelo Pacheco Machado

O Estado tem um poder especial em nossa democracia. Desde que indenize previamente, e obtenha documento declarando a utilidade pública de um bem, pode usar de sua força para toma-lo para si. De um particular ou mesmo de outro ente federativo.

Nisso consiste o processo de desapropriação, regulado pelo decreto-lei 3.365 de 21 de junho de 1941. Trata-se de norma muito antiga, datada da segunda guerra mundial, e com alguns poucos reparos recentes1.

Idade aqui importa sim, na medida em que a lei foi editada no segundo ano de vigência do Código de Processo Civil de 1939, e de lá pra cá tivemos toda a vigência do Código de 1939 e de 1973, bem como a chegada do Código atual, de 2015.

Trata-se de lei que, construída com base num modelo antigo e superado de Jurisdição, concebido nos anos 30, passa a ter grandes dificuldades de comunicação com o restante do sistema processual.

Não há espaço adequado, no modo de ser deste procedimento, para os métodos de solução consensual de conflitos, não há permeabilidade tampouco ao modelo cooperativo de processo civil (CPC, art. 6º).

Explicamos.

1. Necessidade de fomento às soluções extrajudiciais e à mediação

Em tempos de previsão legislativa para divórcio e mesmo usucapião extrajudicial (Lei de Registros Públicos, art. 216-A), seria importante conceber um procedimento específico para a desapropriação, o qual dispensasse juiz, servidores, advogados, sentença e recursos.

Uma boa ideia seria prever perícia simplificada extrajudicial para as pequenas desapropriações e solução cartorária para o caso. Dada a natureza do procedimento, todo o debate entre as partes deve cingir-se ao conteúdo da perícia, o qual será de simples interpretação: um laudo com um valor de mercado de um bem.

Nas causas de pequeno valor e complexidade (sem divergência quanto à titularidade do bem), respeitando a alçada dos Juizados Especiais Cíveis, é razoável que as nuances de questionamentos metodológicos ao perito, e impugnações ao laudo, possam ser relevadas em prol de uma Jurisdição mais efetiva. Sempre com a válvula de escape de, constatando o perito valor mais alto do bem, sejam as partes remetidas ao Judiciário2.

É verdade que a lei 13.867, de 2019, trouxe recentemente normas que viabilizam a arbitragem, bem como a mediação. Prevendo expressamente que o acordo seria título hábil para registro perante o cartório competente (artigos 10-A e 10-B). Todavia, o sistema carece de incentivos econômicos, a estimularem tais práticas de desjudicialização.

O expropriado que aceita a oferta deve identificar benefícios para tanto, ou, ao menos, ser capaz de antever efeitos financeiros negativos, caso resista indevidamente à pretensão indenizatória. A exemplo do que faz o Código vigente, no procedimento comum, reduzindo honorários advocatícios no reconhecimento do pedido (CPC, art. 90, § 4º), ou mesmo nos procedimentos especiais, com e.g. a isenção de custas na monitória não embargada (CPC, art. 701, § 1º). Precisaríamos de um elemento claro, na lei, que pudesse ser apresentado ao expropriado como um risco: caso resistir indevidamente à pretensão, haverá a certeza de uma consequência financeira relevante.

A lei vigente, todavia, foca no subtítulo "Do processo judicial", e dedica o artigo 11 e seguintes para tanto. Não prevê mecanismos racionais de incentivo às formas mais adequadas de resolução da controvérsia e foca – como produto de seu tempo – na solução a ser dada pelo juiz, depois dos julgamentos dos vários recursos cabíveis.

Mais grave ainda. A redação do artigo 23 exige que exista "concordância expressa" quanto ao valor, para que seja evitada a prova pericial3. Esta norma está em descompasso com a noção de contraditório informado, e com as consequências que o Código de Processo Civil dita para a ausência de impugnação específica (CPC, art. 341) e para a revelia (CPC, art. 344). Sendo verossímil o pedido do autor, e não havendo resistência quanto ao valor, é natural que se o presuma adequado, independentemente da realização de custosa e demorada perícia judicial.

A exigência de uma concordância expressa, para que o procedimento possa ser otimizado, desconecta-se do modo pelo qual todo o resto do sistema processual é edificado. Processo civil, com direitos disponíveis, permite abreviação procedimental pela mera omissão da parte interessada, sem a atávica exigência de uma concordância expressa.

Bons exemplos estão na estabilização da tutela antecipada (CPC, art. 304), na conversão do mandado monitório em título executivo (CPC, art. 701, § 3º), ou mesmo nas hipóteses de excesso de execução (CPC, art. 917, § 4º). Em todos esses casos, a omissão da parte em resistir tem valor jurídico relevante e autoriza a adoção de um procedimento mais célere e eficaz para a concessão da tutela jurisdicional.

Nesse quadrante, a lei de desapropriação mostra-se totalmente desatualizada: o expropriado pode resistir sem grande responsabilidade à pretensão, tem riscos mínimos de sucumbência e terá direito a uma prova pericial para confirmar, ou não, a pretensão do autor, mesmo quando se omite completamente em questionar a oferta inicial. Tudo isso faz o processo ser demorado, custoso e rico em litigiosidades evitáveis.

2. Visão cooperativa do processo e melhora na qualidade do contraditório

Muito se poderia ganhar com o recebimento, no processo de desapropriação, de uma exigência de maior de clareza e transparência no contraditório, tal como se objetiva com a visão cooperativa do CPC/2015.

O sistema processual é marcado hoje pela exigência de um contraditório potencializado. Começando pela vedação às decisões surpresa (CPC, art. 10º), e pela necessidade de fundamentação analítica das decisões (CPC, art. 489, § 1º), mas chegando também a todas as novas exigências dirigidas para as partes, que não mais têm a faculdade de impugnar genericamente valores ou pontos submetidos ao debate processual.

Naquilo que seria mais proveitoso à desapropriação, há em diferentes quadrantes os ônus de indicação precisa de valores e índices de correção, toda a vez que se pretende exigir, impugnar ou revisar quantias em dinheiro. Assim são as previsões para a execução (CPC, art. 798, par. único), cumprimento de sentença (CPC, art. 524, I), defesas do executado (CPC, art. 917, § 3º), embargos à ação monitória (CPC, art. 702, § 3º) e, especialmente, demandas que visam a revisão de contratos (CPC, art. 330, § 2º).

Não basta dizer um valor e o exigir, não basta dizer que o valor exigido está equivocado, ou tampouco que o valor é abusivo, é necessário sempre ser específico, indicar um valor exato, e mostrar analiticamente os fundamentos, motivos, índices e pressupostos usados para se chegar a tal valor. O contraditório assim se torna mais exato, preciso.

Como natural consequência, a omissão das partes em atuar com transparência e melhorar a qualidade do contraditório, passa a permitir a formação de presunções válidas no processo, encurtando o procedimento e diminuindo os custos e o tempo para a concessão da tutela jurisdicional. Quem impugna genericamente perde o direito de impugnar e autoriza que o juiz presuma adequada a manifestação da parte contrária (ex vi CPC, art. 917, §§ 3º e 4º)4.

Essa melhoria seria fundamental para as demandas de desapropriação. O objeto cognitivo do processo é, normalmente, a quantia a ser paga. Todavia, a resposta do réu surge comumente de modo genérico, sem indicação do valor da pretensão do expropriado, e os motivos pelos quais discordaria da proposta do expropriante. Isso prejudica a identificação do exato valor da controvérsia, dificulta a celebração de acordos no curso do processo, e, mais gravemente ainda, inviabiliza uma justa fixação da sucumbência.

A lei de desapropriação precisa ser modificada para aderir, claramente, a essa noção nova do processo civil, exigindo do autor a indicação exata do valor ofertado, e dos critérios técnicos usados para se o obter, bem como para exigir do réu, quando impugna esse valor, a indicação também do valor que entende correto e os motivos técnicos pelos quais entende de tal modo.

É verdade que, diante das disparidade sociais e econômicas existentes na federação, o nível de informação necessário para uma resposta de tal natureza pode não existir em todos os locais. Todavia, o Código já prevê a possibilidade de defesa por negativa geral à Defensoria Pública, suprindo a lacuna axiológica que poderia advir de tal entendimento (CPC, art. 341, par. único).

Não sendo o expropriado hipossuficiente, sendo o direito de indenização disponível, deve o autor indicar valor exato e critérios, assim como o réu que se manifestar, resistindo a tal valor minuciosamente, de tal modo que o debate no processo se torne mais focado e desenvolvido.

3. As incongruências na fixação da sucumbência

O ponto da sucumbência é um capítulo à parte nas ações de desapropriação. É fundamental que aquele que resiste a uma pretensão indenizatória seja submetido a riscos, no caso de sucumbência. Tal risco é importante para se evitar o nascimento de um processo desnecessário, para se coibir uma resistência injustificada ou uma mera tentativa de majorar indenização já considerada justa.

Todavia, a lei de desapropriação foi pensada apenas num contexto normativo de compensação de honorários, e de privilégio da posição do réu no processo.

A jurisprudência dominante declara que a sucumbência nas ações de desapropriação por utilidade pública, para efeito da definição da responsabilidade pelas custas e honorários de advogado, "orienta-se pela diferença entre a indenização arbitrada em sentença e a oferta inicial. Inteligência dos arts. 27, § 1.º, e 30 do decreto-lei 3.365/1941. 3. Na hipótese de a oferta inicial superar o montante indenizatório, essa responsabilidade é integralmente do desapropriado"5.

O caso é de sucumbência recíproca. O autor tem seu pedido constitutivo positivo (de desapropriação) acolhido e, ainda, tem parcialmente acolhido seu pedido de indenização. O réu pode sucumbir apenas no pedido de desapropriação ou, ainda, pode receber indenização inferior do que pediu (ainda que superior à ofertada).

Pelo sistema atual do Código de Processo Civil, reconhecendo-se o caráter alimentar dos honorários advocatícios, em casos de sucumbência parcial (recíproca), são necessariamente devidos honorários aos patronos de ambas as partes, na medida em que não mais se admite – ao contrário do que ocorria à luz do artigo 20 do Código de Processo Civil de 1973 – compensação em honorários (CPC, art. 85, § 14). Todavia, a lei de desapropriações toma as premissas do CPC revogado (1973) e, em tal caso, no qual claramente autor e réu sucumbem simultaneamente, apenas fixa honorários para o advogado do réu. Como se o réu não tivesse em nada sucumbido.

Daí temos dois problemas.

Se o réu não tem claramente o ônus de indicar o valor que entende devido na sua resposta, ou mesmo de apontar os critérios de avaliação que entenderia corretos, fica difícil mensurar exatamente sua pretensão e, por consequência, delimitar o valor de sua sucumbência ao fim do processo.

Se o autor propõe 10, o réu pede 100, e o juiz fixa 20, sabe-se que o réu é o maior sucumbente. Todavia, se o réu não diz o que pretende na sua resposta, não se sabe qual seria seu entendimento quanto à indenização adequada, ficando inviabilizada a justa mensuração de sua eventual sucumbência (repercussão econômica da pretensão).

Não fosse isso suficiente, a lei menciona que, sendo a indenização fixada na sentença em valor superior à proposta do expropriante, apenas o advogado do réu teria direito a honorários, mesmo diante de uma sucumbência recíproca. No mesmo exemplo, propondo o autor 10, pedindo o réu 100 e fixando o juiz apenas 20, muito embora o autor seja o grande vitorioso na causa, a lei ditaria que apenas o autor seria condenado a pagar honorários advocatícios.

A posição do autor nesse caso é tão inferiorizada que seus honorários advocatícios somente seriam devidos nos casos em que a indenização fixada em sentença é inferior ou igual à proposta pelo expropriante. Isto é: em clara assimetria, e em hipótese muito mais restrita do que a remuneração para os adversários6.

O sistema ideal exigiria das partes a indicação exata de suas pretensões. Havendo resistência quanto ao pedido de desapropriação, propriamente dito, deve ocorrer a fixação de sucumbência quanto a esse ponto7. Adicionalmente, havendo também divergência sobre o valor da indenização, a sucumbência deveria ser medida, exatamente, entre a diferença do valor indicado, pelo autor ou réu, e o valor fixado na sentença. Exemplo. Autor indica 10 e o juiz fixa 20. Sucumbência em 10 para o autor. Réu indica 100 e juiz fixa 20. Sucumbência de 80 para o réu. Incidindo, a partir daí, os percentuais de honorários advocatícios.

O descompasso entre o procedimento de desapropriação e as normas de sucumbência do CPC/2015, especialmente, a vedação à compensação de honorários advocatícios, é caricato e, na falta de uma revisão jurisprudencial sistemática do tema, exige intervenção legislativa.

Conclusões

O sistema processual mudou, trazendo muitos novos influxos que poderiam ser utilizados a melhorar a técnica processual da desapropriação. A necessidade de mudança, e melhoria desse procedimento, mostra-se estratégica para o desenvolvimento nacional, especialmente quando se planeja aumentar investimentos com concessões e parcerias público privadas, hipóteses nas quais as empresas privadas podem passar a ter legitimidade para iniciar demandas de tal natureza. A melhora na eficiência da desapropriação significa menores custos de obras, maior agilidade e maior eficiência.

Propusemos aqui, visando a estes objetivos, que transcendem a esfera do processo civil, as seguintes mudanças na lei:

(a) estabelecimento de normas com estímulos econômicos à realização de acordos extrajudiciais;

(b) a exigência de um contraditório mais efetivo, com o ônus claro para as partes de indicarem sempre os valores exatos de suas pretensões; e

(c) alteração no modelo de sucumbência, para que o réu seja condenado a pagar honorários advocatícios em percentual a incidir sobre a diferença entre o valor pleiteado em contestação e o valor fixado em laudo pericial.

O momento, portanto, é importante para aperfeiçoarmos a técnica processual, já havendo, no CPC e na experiência dos seus quatro primeiros anos de vigência, material suficiente e adequado para ser transplantado a esse procedimento, com boas perspectivas de melhora.

___________

1 Especialmente a MP 700 de 2015, responsável pela alteração de vários dispositivos.

2 Ao lado do respeito ao cadastro de peritos, e todas as suas diretrizes regulamentas pelo Conselho Nacional de Justiça (Resolução 233/2016).

3 Vejamos a redação "Art. 23. Findo o prazo para a contestação e não havendo concordância expressa quanto ao preço, o perito apresentará o laudo em cartório até cinco dias, pelo menos, antes da audiência de instrução e julgamento". § 1o O perito poderá requisitar das autoridades públicas os esclarecimentos ou documentos que se tornarem necessários à elaboração do laudo, e deverá indicar nele, entre outras circunstâncias atendíveis para a fixação da indenização, as enumeradas no art. 27. Ser-lhe-ão abonadas, como custas, as despesas com certidões e, a arbítrio do juiz, as de outros documentos que juntar ao laudo.

4 Art. 917. Nos embargos à execução, o executado poderá alegar: (...) § 3º Quando alegar que o exequente, em excesso de execução, pleiteia quantia superior à do título, o embargante declarará na petição inicial o valor que entende correto, apresentando demonstrativo discriminado e atualizado de seu cálculo. § 4º Não apontado o valor correto ou não apresentado o demonstrativo, os embargos à execução: I - serão liminarmente rejeitados, sem resolução de mérito, se o excesso de execução for o seu único fundamento; II - serão processados, se houver outro fundamento, mas o juiz não examinará a alegação de excesso de execução.

5 STJ, 2a T., AREsp: 1242942, Relator: Ministro Mauro Campbell Marques, DJe 07/03/2018.

6 Cf. STJ, 2ª T., REsp: 1260435 PB 2011/0140012-4, Relator: Ministro Og Fernandes, DJe 11/04/2018.

7 Embora pouco provável, é possível que exista divergência quanto ao direito de desapropriar (ex. nulidade no decreto de interesse público), mas que não haja divergência quanto ao valor indenizatório.

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Andre Vasconcelos Roque é doutor e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor de Direito Processual Civil da UFRJ. Sócio do escritório Gustavo Tepedino Advogados, com atuação na área de recuperação judicial e falência.

Fernando da Fonseca Gajardoni é doutor e mestre em Direito Processual pela USP (FD-USP). Professor doutor de Direito Processual Civil e Arbitragem da USP (FDRP-USP) e do G7 Jurídico. Juiz de Direito no Estado de São Paulo.

Luiz Dellore é doutor e mestre em Direito Processual pela USP. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Visiting Scholar na Syracuse University e Cornell University (EUA). Professor de Direito Processual do Mackenzie, IBMEC e Escola Paulista do Direito. Ex-assessor de ministro do STJ. Advogado da Caixa Econômica Federal. Consultor Jurídico. Membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e do CEAPRO (Centro de Estudos Avançados de Processo). Site: www.dellore.com

Marcelo Pacheco Machado é doutor e mestre em Direito Processual pela USP. Professor nos cursos de pós graduação da USP em Ribeirão Preto, da PUC/RS, da Escola Paulista de Direito, do Instituto de Direito Público em São Paulo e da Escola da Magistratura do Espírito Santo. Árbitro da CAMES - Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada. Autor de diversos livros e artigos em processo civil. Advogado em Vitória/ES.

Zulmar Duarte de Oliveira Jr. é advogado. Consultor Jurídico. Doutorando em Processo Civil pela PUC/RS. Mestre em Direitos Humanos pela UniRitter. Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil. Professor da Unisul e de diversos Cursos de Pós-Graduação. Professor Convidado Permanente da Escola Superior da Advocacia - OAB/SC. Membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual), da ABDPro (Associação Brasileira de Direito Processual), do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros) e do do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo). Autor de diversos livros, artigos e pareceres com ênfase em Direito Processo Civil.