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A mitigação da competência Federal delegada em matéria previdenciária pela EC 103/2019 (Reforma da Previdência)

A mitigação da competência Federal delegada em matéria previdenciária pela EC 103/2019 (Reforma da Previdência).

11/11/2019


Texto de autoria de Fernando da Fonseca Gajardoni

1.A EC 103/2019 e os impactos da reforma da previdência na competência material delegada

A redação originária do art. 109, §§ 3º e 4º, da CF, estabelecia que nos locais onde não houvesse vara federal, seriam processadas e julgadas na Justiça Estadual, no foro de domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que fosse parte instituição de previdência social (INSS), com recurso para o respectivo Tribunal Regional Federal. Previa também que, observada essa condição (ausência de órgão da Justiça Federal na Comarca), a lei poderia permitir que outras causas de competência material da Justiça Federal fossem processadas na Justiça Estadual (também com recurso para o TRF).

A regra do art. 109, § 3º, do CPC, ao menos no que toca às ações previdenciárias, tinha como razão de existir a necessidade de se facilitar acesso à justiça, permitindo que grupos mais vulneráveis (como idosos, órfãos e hipossuficientes em geral) pudessem, sem deslocar-se do foro de seu domicílio, demandar perante a Justiça que lhes é mais próxima e acessível, isto é, a Justiça Estadual.

No raiar da CF/1998, a disposição era também justificada porque a Justiça Federal ainda não era suficientemente interiorizada, de modo que – durante muitos anos -, só havia seções judiciárias federais nas capitais dos Estados (com competência territorial sobre todo o Estado – art. 110 da CF) e, no máximo, nas cidades do interior com altos índices populacionais (subseções judiciárias). O que acarretaria a necessidade de o jurisdicionado – acaso não existisse a delegação para a Justiça Estadual nas ações previdenciárias –, deslocar-se muitas vezes dezenas ou centenas de quilômetros de seu domicílio, para demandar na Justiça Federal dos grandes centros.

Contudo, mais de 30 (trinta) anos depois da CF/1998, o panorama é distinto.

A Justiça Federal já tem unidades em várias cidades do país, embora ainda não tenha alcançado o grau de interiorização equivalente ao da Justiça Estadual (o que não é nem desejável ou viável do ponto de vista econômico/financeiro).

E, para além disso, não só os meios de transporte e locomoção evoluíram, facilitando os deslocamentos (veículos mais rápidos, melhoria das estradas de rodagem, aumento da malha aérea e rodoviária etc.). A tecnologia do processo eletrônico permitiu que tanto a propositura das ações, como também as audiências, possam ser feitas virtualmente, em plataformas digitais que dispensam o deslocamento e a presença física das partes até as unidades da Justiça Federal.

Diante desse novo quadro, a regra do art. 109, § 3º, da CF, sofreu importante alteração com a EC n. 103, promulgada em 12/11/2019 (Reforma da Previdência).

De acordo com a nova redação do dispositivo, extirpou-se do texto constitucional a regra de eficácia plena que estabelecia a competência da Justiça Estadual do foro do domicílio do segurado ou beneficiário, nos locais onde não houvesse unidade da Justiça Federal, para as ações previdenciárias e assistenciais contra o INSS.

Doravante, a competência material federal delegada continua a existir, porém, INTEGRALMENTE nos termos dos contornos que lhe emprestar lei federal (art. 22, I, da CF). Competirá ao legislador federal sopesar valores como acesso à justiça, organização judiciária e racionalidade e eficiência do serviço público judicial, para definir em que situações é razoável admitir a delegação.

2. A mudança do art. 15 da Lei 5.010/66 pela lei 13.876/2019

Os contornos da competência material delegada, ao menos em matéria previdenciária/assistencial, já foram dados pelo legislador, que se antecipando à EC 103/2019, alterou a redação do art. 15 da lei 5.010/66, que organiza a Justiça Federal de 1ª instância.

De acordo com a nova redação do art. 15, III, da lei 5.010/66, com a redação dada pela lei 13.876/2019 – cuja entrada em vigor, ao menos para o dispositivo retro citado (art. 15 da lei 5.010/66), só ocorrerá em 1º de janeiro de 2020 (art. 5º, I) – quando a Comarca não for sede de Vara Federal, poderão ser processadas e julgadas na Justiça Estadual as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado e que se referirem a benefícios de natureza pecuniária, quando a Comarca de domicílio do segurado estiver localizada a mais de 70 km (setenta quilômetros) de município sede de vara Federal.

E, em vista disso, restou mantida a existência da competência material delegada, da Justiça Federal para a Estadual em ações para obtenção de benefício de natureza pecuniária contra o, INSS (autarquia federal), PORÉM, apenas se a Comarca da Justiça Estadual do domicílio do segurado estiver localizada a mais de 70 (setenta) quilômetros de município sede de Vara Federal.

Para estes casos em que haja Vara Federal em distância de até 70 km do domicílio do segurado, não existe mais a possibilidade de ajuizamento de ações contra o INSS na Justiça Estadual, devendo o segurado demandar perante a Justiça Federal em um dos foros concorrentes do art. 109, § 2º, da CF, entre os quais está o de seu domicílio.

A alteração é razoável e constitucional. Racionaliza o serviço da Justiça, desonerando a já assoberbado Poder Judiciário dos Estados (cuja competência é residual) que, aliás, não recebe compensação financeira alguma da União para carregar o pesado fardo de processar feitos que, a rigor, seriam da Justiça dela. Segundo, devolve ao juiz natural das respectivas causas – a Justiça Federal – as ações previdenciárias/assistenciais contra o INSS, inclusive em vista da maior expertise de seus juízes sobre o tema (vide a exitosa experiência dos Juizados Especiais Federais). E terceiro, preserva adequadamente o acesso à Justiça dos segurados do INSS, pois que mesmo considerando os avanços tecnológicos e de transporte já referidos, mantém a delegação para os casos em que a Justiça Federal fica a mais de 70 km do domicílio do segurado (de acesso mais dificultoso).

No mais, apesar da lei 13.876/2019 ter sido aprovada antes da mudança do art. 109, § 3º, da CF pela EC 103/2019, não parece que haja vício de inconstitucionalidade da norma. A vigência do art. 15 da lei 5.010/66 (1/1/2020) só ocorreu após a aprovação e vigência da EC 103/2019 (novembro/2019), não havendo, portanto, conflito hierárquico e nem de leis no tempo. Ne verdade, é elogiável pronta intervenção legislativa, que antevendo a mudança do art. 109, § 3º, da CF, não permitiu que houvesse um limbo jurídico no tocante à delegação de competência e matéria previdenciária/assistencial.

Três observações importantes sobre a novel regra.

Primeiro, a definição de quais Comarcas da Justiça Estadual se enquadram no critério de distância retro referido caberá ao respectivo TRF, através de normativa própria. A normativa é para indicar quais as Comarcas da Justiça Estadual ainda suportam a competência material delegada, e não as que não mais a têm. Portanto, o fim da delegação nas Comarcas que distam até 70 km de unidades da Justiça Federal não fica dependente da normativa dos TRFs, sendo automática.

Segundo – diante da lacuna legislativa –, entende-se que os 70 (setenta) quilômetros referidos no texto são contados em quilometragem rodoviária da sede da Comarca onde é domiciliado o jurisdicionado (pouco importando a cidade onde vive) até a sede da Justiça Federal que receberá doravante os feitos, considerando as vias (pavimentadas ou não) de acesso (e não em linha reta).

O raciocínio parece muito mais crível do ponto de vista da facilitação do acesso à Justiça (embora aumente o número de comarcas da Justiça Estadual que manterão a competência delegada), pois não faz sentido que a consideração tome por critério a linha reta, visto que o jurisdicionado não tem como transitar por propriedades privadas e áreas inacessíveis por veículos para buscar a Justiça Federal; além do que 70 km em linha reta pode representar, por estradas transitáveis, centenas de quilômetros, o que não parece ter sido o intento do legislador ao preservar, com mitigação, a competência delegada em matéria previdenciária.

Terceiro, embora o novel art. 15, III, da lei 5.010/66 não faça a distinção, por questão de organização judiciária, a delegação deve considerar as áreas territoriais dos respectivos TRFs, inclusive em vista de § 2º do dispositivo citado confiar aos próprios Tribunais a organização da dela. Consequentemente, à luz do art. 109, § 2º, da CF, o jurisdicionado não pode ajuizar ação na Justiça Federal de outro Estado não abrangido pela competência territorial do TRF com competência sobre seu domicílio. Ainda que haja vara federal em até 70km dali (porém na área de outro TRF)!

Exemplificativamente, considere que segurado more em pequena cidade do interior do Estado de Minas Gerais (Ibiraci/MG), na divisa com o Estado de São Paulo. Sobre o Estado de MG tem competência territorial juízes federais vinculado ao TRF1, enquanto sobre o Estado de SP juízes federais vinculados ao TRF3. Caso não haja dentro do TRF1 unidade da Justiça Federal em distância de até 70km do domicílio do segurado, ele poderá ajuizar ação previdenciária/assistencial na Justiça Federal que alcança o território de seu domicílio (São Sebastião do Paraíso-MG), bem como na Justiça Estadual do seu domicílio, na forma do art. 109, § 3º, da CF e art. 15, III, da Lei 5.010/66 (Justiça Estadual de Ibiraci – TJMG). Contudo, em vista da organização judiciária da Justiça Federal (art. 110 da CF) e do art. 15, § 2º, da Lei 5.010/66 (que dá aos TRFs a prerrogativa de organizar da delegação de competência), não lhe será lícito cruzar a fronteira estadual para demandar perante unidade da Justiça Federal que fica no Estado de SP, sob os auspícios do TRF3, mesmo se houver vara federal a menos de 70km de seu domicílio (como é o caso das Varas Federais de Franca-SP).

3. Transição do modelo anterior da delegação para o atual, inaugurado a partir da EC 103/2019 e lei 13.876/2019 (art. 15, III, da Lei 5.010/66) – a Resolução do Conselho da Justiça Federal (CJF) a respeito do tema.

Em 1º de janeiro de 2020, na entrada em vigor do art. 15, III, da lei 5.010/66 (com redação pela lei .876/2019), todas as ações de conhecimento em curso em varas da Justiça Estadual em distância até 70 km de vara federal, com pleitos pecuniários previdenciárias/assistenciais contra o INSS, deverão ser remetidos à Justiça Federal ou JEFs (observando-se o valor das respectivas causas).

Incide, na hipótese, o art. 43 do CPC, 2ª parte, pois que com a alteração da competência absoluta da Justiça Estadual (que não mais conta com autorização legal para julgar feitos da Justiça Federal), excepciona-se a perpetuatio jurisdictionis (que impede a alteração da competência em vista das modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente ao registro/distribuição da ação), encaminhando-se os feitos em curso para a unidade judiciária federal doravante competente.

Há notícia de que no processo n. 0006509-22.2019.4.90.8000, que teve curso no Conselho da Justiça Federal, foi deferido pedido da AJUFE para que o órgão editasse Resolução impedindo que juízes estaduais remetessem os feitos em andamento para a Justiça Federal, estabelecendo-se que apenas os feitos novos, a partir de 01.01.2020, sejam processados na Justiça Federal na forma do art. 15, III, da lei 5.010/66.

A resolução é inconstitucional, ilegal e ineficaz.

Inconstitucional porque vai muito além do poder regulamentar do CJF, invadindo questão tipicamente jurisdicional e que será decidida por cada um dos juízes estaduais declinantes e juízes federais declinados que atuam na temática.

Ilegal porque parte de uma intepretação, maxima venia, equivocada do novo regramento, prestigiando a 1ª parte do art. 43 do CPC, mas ignorando sua 2ª parte.

A regra do art. 15, III, da lei 5.010/66 e art. 109, § 3º, do CPC, embora toque na questão territorial (domicílio do segurado), é de matiz material, pois que envolve a competência para as causas cuja parte é o INSS, na forma do art. 109, I, da CF. Em sendo assim, não é possível que juízes que não mais detém, a partir de 1/1/2020, competência material para causas previdenciárias/assistenciais, continuem a processa-las e julga-las (como se houvesse uma ultratividade do art. 109, § 3º, da CF, na redação originária), algo que poderá implicar, inclusive, nulidade dos atos praticados, na forma do art. 64 do CPC.

Considere-se, ademais, que quando o legislador revogou o art. 15, I, da lei 5.010/66 através da lei 13.043/2004 – dando fim à competência delegada da Justiça Estadual para execuções fiscais federais –, consignou expressamente que a alteração só teria impacto nas execuções fiscais que seriam ajuizadas a partir da vigência da norma (art. 75 da lei 13.043/2004), exatamente para contornar a 2ª parte do art. 43 do CPC e impedir a remessa das execuções fiscais federais já propostas na Justiça Estadual. Na lei 13.876/2019 não há dispositivo equivalente, silêncio eloquente do legislador que demonstra o equívoco da intepretação do CJF e a necessidade de se cumprir a 2ª parte do art. 43 do CPC, com remessa dos feitos em curso nos órgãos da Justiça Estadual (que não mais atuarão por delegação) para a Justiça Federal.

Por fim, a resolução é ineficaz, pois que o CJF não tem ascendência alguma sobre os juízes estaduais, que não mais atuando sob o pálio da competência delegada, não devem obediência funcional ao órgão (que organiza a Justiça Federal).

De se aplicar, por outro lado, a ratio decidendi da súmula vinculante n. 22 do STF, quando da alteração da competência material da Justiça Estadual para julgar ações de indenização por acidentes de trabalho contra empregadores (que desde a EC 45/2004 é de competência da Justiça do Trabalho - art. 114, VI, da CF), preservando-se a competência da Justiça Estadual que, até então, atuava por delegação constitucional, para os cumprimento de sentença e incidentes das ações que já foram por ela julgadas.

Na ocasião, o STF entendeu que as ações que tramitavam perante a Justiça comum dos Estados, com sentença de mérito anterior à promulgação da EC 45/2004, deveriam lá continuar até o trânsito em julgado e correspondente cumprimento de sentença. Quanto àquelas cujo mérito ainda não havia sido apreciado, foram remetidas à Justiça do Trabalho, no estado em que se encontravam, com total aproveitamento dos atos praticados até então. A medida se impunha em razão das características que distinguem a Justiça comum estadual e a Justiça do Trabalho, cujos sistemas recursais, órgãos e instâncias não guardam exata correlação (STF, CC 7.204, Rel. Min. Ayres Britto, Plenário, j. 29/6/2005, DJ de 9-12-2005; RE 600.091, Rel. Min. Dias Toffoli, Plenário, j. 25/5/2011, DJE 155 de 15-8-2011, Tema 242)

Do mesmo modo deve se proceder, em respeito ao sistema de precedentes qualificados do art. 927 do CPC, no tocante à alteração do art. 109, § 3º, da CF e art. 15, III, da lei 5.010/66. As ações que tramitam perante a Justiça comum dos Estados, com sentença de mérito anterior à 1º de janeiro de 2020, devem lá continuar até o trânsito em julgado e correspondente cumprimento de sentença (que, portanto, continuará a correr na Justiça Estadual atuante por delegação). Quanto àquelas ações previdenciárias/assistenciais contra o INSS, cujo mérito ainda não tenha sido apreciado, devem ser remetidas aos JEFs ou Varas Federais (a até 70 km de distância) no estado em que se encontram, com total aproveitamento dos atos praticados até então (art. 64 e § 4º, do CPC), cumprindo-se, por conseguinte, a regra geral do sistema de que o juízo do cumprimento de sentença é, ordinariamente, o juízo da condenação (art. 516 do CPC).

Mas atenção. Embora isso tivesse sido proposto na redação originária da PEC da Previdência, NÃO houve alteração de competência da Justiça Estadual para continuar julgando, por competência própria (e não delegada), as ações acidentárias típicas, ainda que propostas contra o INSS (art. 109, I, da CF). Essas ações, por continuarem sendo de competência da Justiça Estadual, não devem ser remetidas para a Justiça Federal.

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Andre Vasconcelos Roque é doutor e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor de Direito Processual Civil da UFRJ. Sócio do escritório Gustavo Tepedino Advogados, com atuação na área de recuperação judicial e falência.

Fernando da Fonseca Gajardoni é doutor e mestre em Direito Processual pela USP (FD-USP). Professor doutor de Direito Processual Civil e Arbitragem da USP (FDRP-USP) e do G7 Jurídico. Juiz de Direito no Estado de São Paulo.

Luiz Dellore é doutor e mestre em Direito Processual pela USP. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Visiting Scholar na Syracuse University e Cornell University (EUA). Professor de Direito Processual do Mackenzie, IBMEC e Escola Paulista do Direito. Ex-assessor de ministro do STJ. Advogado da Caixa Econômica Federal. Consultor Jurídico. Membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e do CEAPRO (Centro de Estudos Avançados de Processo). Site: www.dellore.com

Marcelo Pacheco Machado é doutor e mestre em Direito Processual pela USP. Professor nos cursos de pós graduação da USP em Ribeirão Preto, da PUC/RS, da Escola Paulista de Direito, do Instituto de Direito Público em São Paulo e da Escola da Magistratura do Espírito Santo. Árbitro da CAMES - Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada. Autor de diversos livros e artigos em processo civil. Advogado em Vitória/ES.

Zulmar Duarte de Oliveira Jr. é advogado. Consultor Jurídico. Doutorando em Processo Civil pela PUC/RS. Mestre em Direitos Humanos pela UniRitter. Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil. Professor da Unisul e de diversos Cursos de Pós-Graduação. Professor Convidado Permanente da Escola Superior da Advocacia - OAB/SC. Membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual), da ABDPro (Associação Brasileira de Direito Processual), do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros) e do do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo). Autor de diversos livros, artigos e pareceres com ênfase em Direito Processo Civil.