Texto de autoria de Zulmar Duarte Oliveira Junior
Tema1 recorrente no Judiciário, até por força da iniciativa das partes em retomar o debate de determinadas questões, é a possibilidade de o juiz reconsiderar decisões já proferidas no curso do processo. Por exemplo, passa por aí também a discussão sobre a (não) estabilização da tutela antecipada em caráter antecedente quando não interposto recurso2, mas apresentada impugnação em sentido lato.
O fato é que os pedidos de reconsideração, ainda que não encontrem conforto no regramento processual, repetem-se na prática processual com alguma profusão, suscitando dúvidas de diversas ordens, principalmente no que relacionadas com a preclusão (CPC, artigo 507).
Porém, ao contrário do que o imaginário coletivo eventualmente aponta, considerando o regramento jurídico, os pedidos de reconsideração não são recursos ou meios de impugnação atípicos, razão por que não suspendem qualquer prazo para apresentação de eventual irresignação ou impedem a preclusão.
Diz a lenda que tais pedidos de reconsideração se disseminaram na prática quando os agravos de instrumento eram processados na própria origem, na vigência do texto primitivo do Código de Processo Civil de 1973. A parte interpunha agravo de instrumento, cujo processamento se fazia perante o juiz de primeiro grau, que formava o instrumento, podendo exercer juízo de retratação (artigos 522-527 do Código de Processo Civil de 1973, nas redações anteriores à lei 9.139 de 1995). Não raro a parte apresentava petição nominada como reconsideração ao próprio juiz, postulando que, mantida a decisão, ela fosse processada como agravo de instrumento. Nesse contexto, reconsiderada a decisão, ter-se-ia atingido a finalidade do pedido; mantida a decisão, a parte já tinha interposto o recurso de agravo nessa formatação ambivalente. Como a praxe faz a lei, o anódino pedido de reconsideração vicejou na prática3.
Todavia, no contexto atual, até é viável que o juiz analise determinada questão a partir de pedido de reconsideração, naquelas matérias suscetíveis de serem pronunciadas de ofício (CPC, artigo 278). Como ele já poderia examinar de ofício tais temas, após suscitar a manifestação prévia das partes (art. 10 do Código de Processo Civil), nada impede sua análise mediante injunção destas, ainda que pela atípica via do pedido de reconsideração.
De toda forma, o pedido de reconsideração não tem a eficácia de impedir a ocorrência da preclusão da decisão, tampouco influi sobre o prazo para interposição do recurso próprio. Não existe base normativa para pressuposição em sentido contrário, sendo que os artigos 223, 278 e 507 do Código de Processo Civil interditam tal compreensão.
Logo, decidida determinada questão por parte do juiz, ele não deve voltar ao seu exame, salvo quando o ordenamento jurídico expressamente permita (como por exemplo na tutela provisória não estabilizada — artigo 296 do Código de Processo Civil), pelo que o tema é alcançado pela preclusão (CPC, artigo 507), garantindo as partes segurança jurídica no particular.
Veja-se, o Código por diversas vezes estabelece expressamente a estabilização de decisões (CPC, artigo 357, § 1º), inclusive de tutelas provisórias (CPC, artigo 304), tudo a apontar que a inatividade da parte na interposição do recurso torna a questão decidida imune à rediscussão. A inatividade é, por assim dizer, causa eficiente da estabilidade processual.
É a regra da inalterabilidade da decisão que se extrai do artigo 494 do Código de Processo Civil. Exteriorizado o ato jurisdicional, consumado o poder de decidir, a decisão, via de regra4, só pode ser alterada pela interposição do recurso.
Isso porque, o recurso devolve ao tribunal o exame do ato impugnado (como expressa o artigo 1.013 do Código de Processo Civil, em disposição cujo escopo pode ser ampliado para todos os recursos), obstando a ocorrência da preclusão, mantendo vívida a discussão sobre o tema decidido.
Ainda, não se pode confundir o pedido de reconsideração com o juízo de retratação próprio de alguns recursos (por exemplo, artigos 331, 332, 485, 1.018, 1.021, 1.041 e 1.042 do Código de Processo Civil). Perceba-se, alguns recursos, quando interpostos, abrem a possibilidade de o juiz reexaminar a decisão (o dito efeito regressivo5). Devolvem o tema recursal ao órgão ad quem (efeito devolutivo) e permitem ao próprio órgão a quo um novo olhar sobre a decisão (efeito regressivo ou devolutivo em sentido amplíssimo). Porém, como fica claro, é a interposição do recurso que possibilita ao decisor reavaliar a questão; não tivesse sido interposto o recurso, o tema não seria mais reanalisado.
Da mesma forma, existem recursos que devolvem o tema ao juiz que o decidiu previamente, como os embargos declaratórios (artigo 1.023 do Código de Processo Civil) e os embargos infringentes na execução fiscal (artigo 34 da lei 6.830 de 1980). Trata-se do efeito devolutivo inerente aos recursos, com a atribuição da competência para seu exame ao órgão recursal que proferiu a decisão.
Como diz a sabedoria popular: com dois erros não se fazem um acerto.
O juiz que acolhe pedido de reconsideração para corrigir questão decidida incorretamente incide em novo erro, error in procedendo, violando assim preclusão operada nos autos, tudo em prejuízo à segurança jurídica.
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APRESENTAÇÃO DE CONTESTAÇÃO. IRRELEVÂNCIA. I - Nos termos do disposto no art. 304 do Código de Processo Civil de 2015, a tutela antecipada, deferida em caráter antecedente (art. 303), estabilizar-se-á, quando não interposto o respectivo recurso. II - Os meios de defesa possuem finalidades específicas: a contestação demonstra resistência em relação à tutela exauriente, enquanto o agravo de instrumento possibilita a revisão da decisão proferida em cognição sumária. Institutos inconfundíveis. III - A ausência de impugnação da decisão mediante a qual deferida a antecipação da tutela em caráter antecedente, tornará, indubitavelmente, preclusa a possibilidade de sua revisão. IV - A apresentação de contestação não tem o condão de afastar a preclusão decorrente da não utilização do instrumento proessual adequado - o agravo de instrumento. V - Recurso especial provido.” (REsp 1797365/RS, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, Rel. p/ Acórdão Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/10/2019, DJe 22/10/2019). Sobre o tema, disse com inegável acerto GAJARDONI: “Permissa venia, os adeptos desta posic¸a~o leem o Co'digo como se deseja que ele fosse, e na~o como ele efetivamente e'. Isto e' legislar. Na~o e' interpretar. Ma's opc¸o~es legislativas (e estabelecer recurso como requisito para afastamento da estabilizac¸a~o e' uma pe'ssima opc¸a~o legislativa) se combatem no parlamento. Na~o ignorando o que consta explicitamente da lei. Contestac¸a~o, pedido de reconsidera- c¸a~o ou mera petic¸a~o na~o sa~o recursos. E na~o sendo recursos, na~o te^m o conda~o de impedir a estabilizac¸a~o.” (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; Dellore, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Teoria geral do processo: comentários ao CPC de 2015; parte geral. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Forense, 2019. p. 925). Em abordagem ampla, merece leitura o texto de Rodrigo Becker e Marco Aurélio Peixoto: Não quero estabilização da tutela antecedente. E agora, STJ? Disponível. Acesso: 29-out-19.
3 A propósito, vale lembrar, que o pedido de reconsideração, em dado momento, foi tipificado exclusivamente como forma de obter a revisão de decisão concessiva de efeito ativo ou suspensivo no agravo de instrumento (artigo 527, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 1973 na redação da lei 11.187 de 2005).
4 O próprio artigo 494 permite a alteração da decisão quando presentes erros materiais ou de cálculo, bem como na via dos embargos de declaração. A despeito disso, os embargos de declaração já possibilitam a alteração por sua natureza jurídica recursal (CPC, artigo 994, inciso IV).
5 LIMA, Alcides Mendonça. Introdução aos recursos cíveis. 2. ed. São Paulo: RT, 1996. p. 289 e seguintes.