STF vs. Supreme Court

Delegação legislativa e o "Caso Benzeno" (STF RE 587.970)

Delegação legislativa e o "Caso Benzeno" (STF RE 587.970).

15/9/2021

A Constituição Federal de 1988 traz consigo um nítido viés de proteção social. Não à toa, para além de elencar um rol de direitos sociais em seu art. 6º (dentro do Título II – Dos direitos e garantias individuais), a Constituição destina todo o seu Título VIII à regulamentação da Ordem Social, a englobar, dentre outros aspectos relativos às proteções sociais destinadas aos cidadãos, o regramento do chamado tripé da “seguridade social”, isto é: o conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (art. 194).

O tripé da "seguridade social" é composto pelas seguintes ações: saúde, como um direito de todos e dever do Estado; previdência social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória nos termos da lei; e assistência social, prestada a quem dela necessitar e independentemente de contribuição. Quanto à assistência social, a Constituição estipula, em seu art. 203, V, a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Seguindo tal linha, a Lei Federal 8.742/93 enuncia a regulamentação do benefício de prestação continuada (BPC ou LOAS, como também é conhecido) como a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família (art. 20). Ainda quanto à elegibilidade para recebimento do benefício – e aqui o cerne da questão jurídica em debate –, o decreto Federal 6.214/2007 dispõe, em seu art. 7º, que o Benefício de Prestação Continuada é devido ao brasileiro, nato ou naturalizado, e às pessoas de nacionalidade portuguesa, em consonância com o disposto no decreto 7.999, de 8 de maio de 2013 , desde que comprovem, em qualquer dos casos, residência no Brasil e atendam a todos os demais critérios estabelecidos neste Regulamento. Esse, pois, o arcabouço legal da matéria.

Afora eventuais discussões quanto a parâmetros socioeconômicos de elegibilidade para fruição do BPC, a questão que chegou até o Supremo Tribunal Federal no RE 587.970/SP era bastante simples: definir se a nacionalidade brasileira deveria ser considerada como requisito essencial para a concessão do benefício de prestação continuada (BPC) previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição. Eis a história do caso.

Felícia Mazzitello Albanese, de nacionalidade italiana e então residente no Brasil há quase 53 anos1, pleiteou o BPC na via administrativa perante o INSS no ano de 2005. Aos 65 anos, Felícia havia exercido diversas atividades durante toda sua vida no Brasil; no entanto, já idosa, não conseguia prover os meios para sua manutenção. Entendendo cumprir todos os requisitos constitucionais e legais para a concessão do benefício assistencial, Felícia foi surpreendida com a seguinte resposta do INSS ao seu pleito: informamos que, após análise da documentação apresentada, não foi reconhecido o direito ao benefício pleiteado, tendo em vista que não está prevista a concessão para estrangeiros não naturalizados.

Diante da negativa administrativa, a questão foi judicializada perante o Juizado Especial Federal Cível em São Paulo. Ao argumento de que a Constituição não traria distinções entre os nacionais e os estrangeiros residentes para fins de reconhecimento de direitos sociais, a sentença determinou a implantação do benefício assistencial em favor de Felícia. Após recurso do INSS, a sentença foi mantida pela Turma Recursal a partir da mesma fundamentação acima. Em suma, a acórdão repetia que a igualdade é garantia fundamental estampada no artigo 5º da CF/88, que expressamente estende aos estrangeiros residentes no país a proteção dos direitos individuais previstos na CF/88, figurando entre eles o direito ao LOAS.

Após o manejo de Recurso Extraordinário pelo INSS a fim de reformar as decisões anteriores e estipular o entendimento no sentido da inviabilidade concessão do benefício a estrangeiros residentes no país, o STF vislumbrou a ocorrência de repercussão geral na matéria. É que, para o Tribunal, a questão versada no recurso ultrapassaria os limites subjetivos da lide (Felícia x INSS), sendo de interesse de toda sociedade e tendo relevância do ponto de vista econômico, social e jurídico. Admitida a repercussão geral, o STF julgou a questão e manteve o entendimento anteriormente firmado na sentença e no acórdão. Diante disso, assentou, por unanimidade, a seguinte tese: Os estrangeiros residentes no País são beneficiários da assistência social prevista no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal, uma vez atendidos os requisitos constitucionais e legais (Tema 173 da Repercussão Geral do STF).

Em específico, o relator do RE 587.970/SP, Ministro Marco Aurélio, argumentou que a Constituição não restringe os beneficiários somente aos brasileiros natos ou naturalizados. Nesse sentido, o estrangeiro com residência fixa e em situação regular no país também seria alcançado pela norma constitucional protetiva. É que, segundo o relator, a Constituição, ao delegar ao legislador ordinário a regulamentação do benefício, fê-lo, tão somente, quanto à forma de comprovação da renda e das condições específicas de idoso ou portador de necessidades especiais hipossuficiente. Não houve delegação relativamente à definição dos beneficiários, pois já havia sido estabelecida.

De qualquer sorte, é no voto do Ministro Luiz Fux que a questão da delegação regulamentar infralegal do BPC é tratada. De fato, o Ministro indica que o decreto Federal 6.214/2007, ao restringir o acesso dos estrangeiros residentes ao benefício, extrapolou o poder delegado pela Constituição e pela lei Federal 8.742/93 ao Executivo para fins de regulamentação de sua concessão. Nesse ponto, a inviabilidade da restrição pela via regulamentar no caso concreto – e a impossível restrição do acesso de estrangeiros residentes e em situação regular no país ao benefício – é tratada pelo Ministro Fux à luz da doutrina da não delegação de poderes e dos princípios inteligíveis (ou doutrina dos princípios claros). Tudo isso, pois, com recurso à experiência americana (sobretudo o magistério do professor Cass Sunstein, da Universidade de Harvard) e ao seguinte precedente da Suprema Corte dos EUA: Industrial Union Department v. American Petroleum Institute (1980)2, também conhecido como o "Caso Benzeno".

Em termos amplos, a doutrina da não delegação tem como suporte a ideia de tripartição de poderes e indica que um dos três poderes não pode / deve autorizar qualquer outro poder a exercer sua função constitucional precípua. Vista de forma preponderante a partir da função legislativa, a ideia normalmente envolve a delegação, pelo Congresso, de poderes legislativos / normativos a agências administrativas ou a organizações privadas.

Historicamente, a vedação hermética à delegação normativa tem sido temperada e abrandada sob diversos aspectos e circunstâncias. Já em 1825, no julgamento de Wayman v. Southard (1825)3, a Suprema Corte deu início à construção acerca da possibilidade de delegação normativa por parte do Congresso, o que, mais tarde, veio a formar a base do chamado Estado Administrativo. Na espécie, a Corte entendeu, de forma unânime, que o Congresso poderia delegar ao Judiciário o poder de regulamentação de seus próprios procedimentos. No ponto, a opinião o Chief Justice John Marshall indicava que não havia uma linha exata traçada entre aqueles assuntos tidos como importantes, que devem ser efetivamente regulados pelo próprio Legislativo, e aqueles de menor interesse, em que uma disposição geral poderia ser feita pelo Congresso e complementada com a atuação do delegado a fim de preencher os detalhes da política estatal.4 Assim, uma vez que as bases gerais da política estatal tenham sido definidas pelo Congresso de acordo os procedimentos estabelecidos na Constituição, a administração de tal política e a elaboração detalhada de suas regras poderiam ser delegadas a um agente estatal autorizado (ainda que em outro poder).

Avançando na especificação da doutrina da não delegação, a Suprema Corte julgou o caso J. W. Hampton, Jr. & Co. v. United States (1928)5, ocasião em que restou estabelecida a pedra fundamental da doutrina dos princípios inteligíveis (ou, como já visto, doutrina dos princípios claros). Em concreto, a Corte esclareceu que a delegação de autoridade legislativa é um poder implícito do Congresso sob a égide da Constituição americana; contudo, tal delegação somente pode ser licitamente realizada se o Congresso fornecer um "princípio inteligível" (intelligible principle) que guie efetivamente a atuação normativa delegada.

Em J. W. Hampton, Jr. & Co. v. United States (1928), tinha-se sob julgamento uma lei que dava poder ao Presidente para aumentar ou diminuir as alíquotas de tributos sobre comércio exterior a depender da variação do custo de produção interna dos bens comercializados. Em outras palavras, a aferição da possível variação de alíquotas era delegada do Congresso ao Presidente, sobretudo mediante a devida justificativa a partir dos parâmetros definidos pelo Congresso na própria lei (princípios inteligíveis). Diante de tal quadro, a opinião do Chief Justice William Howard Taft, pela unanimidade da Corte, deixou claro que se o Congresso pode estabelecer, por ato legislativo, um princípio inteligível ao qual a pessoa ou entidade autorizada a fixar as alíquotas deve obedecer, tal ação legislativa não corresponde a uma delegação proibida.6

A ideia do "princípio inteligível", portanto, vedava uma delegação legislativa pelo Congresso que fosse demasiadamente aberta; mais do que isso, estabelecia, na própria delegação pelo Congresso (lei), os parâmetros gerais sob os quais o destinatário da delegação poderia atuar. De fato, tanto o Congresso não estaria autorizado a abdicar ou transferir a terceiros as funções legislativas gerais das quais estava investido7, como não seria possível ao delegado extrapolar a delegação e estabelecer um regulamento que conflitasse com os princípios inteligíveis dispostos na lei.

É justamente nesse ponto que o Ministro Luiz Fux invoca o caso Industrial Union Department v. American Petroleum Institute (1980).8 De fato, para reputar inválida a regulamentação trazida no decreto Federal 6.214/2007, que restringia o acesso de estrangeiros residentes e em situação regular no país ao benefício assistencial (BPC), o Ministro se utiliza do famoso voto concorrente do então Associate Justice William Rehnquist no caso acima exposto.

Conhecido como "Caso Benzeno", o que se discutia na ocasião era a possibilidade de uma lei delegar ampla margem de discrição ao Secretário do Trabalho na definição de padrões de segurança e de saúde para os trabalhadores.9 Com a intenção de estabelecer a limitação da delegação (ou, em outras palavras, o princípio inteligível para a atuação regulamentadora do Secretário), a lei dispunha que caberia ao Secretário definir a norma que mais adequadamente assegure, na medida do possível, com base nas melhores evidências disponíveis, que nenhum funcionário sofrerá comprometimento material de sua saúde ou capacidade funcional. A partir de tal delegação, o Secretário havia estabelecido como melhor medida possível a diminuição do limite permissível de exposição ao benzeno do padrão de dez partes por milhão (10ppm) para apenas uma parte por milhão (1ppm).

A controvérsia, assim, dizia respeito à abertura do conceito constante da lei de "na medida do possível, com base nas melhores evidências possíveis"10; é que, em concreto, não havia evidências disponíveis acerca da efetividade e da segurança das medidas tomadas pelo Secretário no que diz respeito à possível redução de casos de leucemia. De fato – e de acordo com o já aludido voto do então Associate Justice William Rehnquist –, a previsão legislativa deveria ser declarada inconstitucional com base na doutrina da não delegação.

Para sustentar sua tese, Rehnquist descreveu a doutrina dos princípios inteligíveis inerentes à ideia de não delegação da seguinte forma: "Primeiro, e mais abstratamente, [a doutrina] garante que escolhas importantes relativas às políticas públicas sejam feitas pelo próprio Congresso, o ramo de governo mais responsivo à vontade popular [...]. Segundo, a doutrina garante que, na medida em que o Congresso considere necessário delegar autoridade, o destinatário dessa delegação disponha de um "princípio inteligível" para orientar o exercício do poder delegado. [...]. Terceiro, e em consequência do segundo, a doutrina assegura que os tribunais encarregados de revisar o exercício do poder discricionário delegado serão capazes de testar esse exercício por meio de standards determináveis [...]".11

Assim – e no dizer de Fux quanto ao cas do benefício assistencial –, não haveria qualquer princípio claro a permitir que o Poder Executivo utilizasse o critério de cidadania para distinguir os beneficiários da política pública e, consequentemente, restringir o acesso do benefício assistencial a apenas brasileiros, sob pena de ferir as escolhas políticas cristalizadas nas normas editadas pela Assembleia Constituinte e pelo Congresso Nacional. Afinal, os standards de regência dos beneficiários da política pública foram especificamente determinados: ausência de subsistência própria ou familiar (vulnerabilidade socioeconômica), deficiência física e condição idosa. Restringir mais do que o permitido pela norma delegatária autoriza o Judiciário a reconhecer que os standards indicados pelo delegante foram violados pela autoridade delegada.12

Em suma, a doutrina e o precedente da Suprema Corte foram utilizados a fim de subsidiar a ideia de que o Constituinte e a lei, ao instituírem o benefício assistencial, delegaram sua regulamentação ao Executivo tendo como princípio inteligível limitador da regulação o fato de que o rol de beneficiários não poderia ser limitado. Como exposto pelo Ministro Luiz Fux, a lei forneceu três standards inteligíveis para guiar a atividade regulamentar administrativa: a) valor do benefício de um salário mínimo; b) periodicidade do benefício mensal, e; c) destinatários do benefício sendo pessoas portadoras de deficiência e idosos que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Não haveria, na atividade regulamentar infralegal, a possibilidade de exclusão de um beneficiário a partir de sua condição de estrangeiro residente não naturalizado, eis que restariam violados os princípios inteligíveis acima expostos.

Assim, o "Caso Benzeno", ou Industrial Union Department v. American Petroleum Institute (1980), demarca os possíveis standards para eventual revisão judicial dos casos de delegação legislativa.

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1 Nascida na Itália em 31.5.1940, Felícia imigrou para o Brasil aos 12 anos, tendo entrado no país em 19.11.1952.

2 Industrial Union Department v. American Petroleum Institute, 448 U.S. 607 (1980).

3 Wayman v. Southard, 23 U.S. 1 (1825).

4 Wayman v. Southard, 23 U.S. 43 (1825).

5 J. W. Hampton, Jr. & Co. v. United States, 276 U.S. 394 (1928).

6 J. W. Hampton, Jr. & Co. v. United States, 276 U.S. 408 (1928). No original: If Congress shall lay down by legislative act an intelligible principle to which the person or body authorized to fix such rates is directed to conform, such legislative action is not a forbidden delegation of legislative power.

7 Nesse ponto, interessante notar o que decidido em A.L.A. Schechter Poultry Corp. v. United States (1935), caso em que a Suprema Corte especificou ainda mais os limites da possível delegação e afirmou a impossibilidade de abdicação ou transferência total da função legislativa. No original: The Congress is not permitted to abdicate or to transfer to others the essential legislative functions with which it is thus vested.

8 Industrial Union Department v. American Petroleum Institute, 448 U.S. 607 (1980).

9 Tratava-se, na espécie, do Occupational Safety and Health Act of 1970.

10 No original: […] to the extent feasible, on the basis of the best available evidence.

11 Industrial Union Department v. American Petroleum Institute, 448 U.S. 685-86 (1980). Vide tradução realizada no próprio voto do Ministro Luiz Fuiz, conforme original: First, and most abstractly, it ensures to the extent consistent with orderly governmental administration that important choices of social policy are made by Congress, the branch of our Government most responsive to the popular will. See Arizona v California, 373 U S. 546, 626 (1963) (Harlan, J., dissenting in part); United States v Robel, 389 U S. 258, 276 (1967) (Brennan, J., concurring in result). Second, the doctrine guarantees that, to the extent Congress finds it necessary to delegate authority, it provides the recipient of that authority with an "intelligible principle" to guide the exercise of the delegated discretion. See J W Hampton & Co. v United States, 276 U S., at 409, Panama Refining Co. v Ryan, 293 U S., at 430. Third, and derivative of the second, the doctrine ensures that courts charged with reviewing the exercise of delegated legislative discretion will be able to test that exercise against ascertainable standards. See Arizona v. California, supra, at 626 (Harlan, J., dissenting in part), American Power & Light Co. v SEC, supra, at 106.

12 Voto do Ministro Luiz Fux no RE 587970/SP.

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Colunista

Bruno Santos Cunha é procurador do município do Recife e sócio do escritório Urbano Vitalino Advogados. Bacharel pela UFSC, mestre em Direito pela USP, Master of Laws pela University of Michigan e doutorando em Direito pela UFPE. Professor de Direito Constitucional e Direito Administrativo.