No ano de 1925, o Estado de Oklahoma aprovou uma lei regulamentando a fabricação, a venda e a distribuição de gelo. A legislação estadual declarava toda a cadeia produtiva de gelo como de utilidade pública. Diante disso, tais atividades dependiam de prévio licenciamento perante a Comissão de Corporações de Oklahoma, sendo que o funcionamento ilegal da atividade era passível de multa de até U$ 25,00 (vinte e cinco dólares) por dia, dentre outras penalidades.
Como condicionante ao estabelecimento de novas empresas da cadeia produtiva de gelo no Estado, a legislação impunha a efetiva comprovação, perante a Comissão de Corporações de Oklahoma, da necessidade de oferta do produto na localidade em que se pretendia a referida instalação. Nesse sentido, restaria impedida a concessão de licença para novos empreendimentos nas localidades onde as corporações já existentes fossem capazes de atender à demanda do produto.
A despeito da regulamentação estatal da matéria e sem qualquer tipo de licenciamento, a empresa Liebmann havia adquirido uma propriedade na cidade de Oklahoma, capital do Estado de mesmo nome, e iniciado a construção de uma fábrica de gelo. Diante desse cenário, a New State Ice Company, fabricante de gelo devidamente licenciada e que tinha sua operação localmente consolidada há alguns anos, tendo investido em suas plantas o montante aproximado de U$ 500.000,00 (quinhentos mil dólares), acionou o Poder Judiciário a fim de impedir a atuação ilegal de sua pretensa concorrente.
No caso, a Liebmann argumentava que a cadeia produtiva do gelo não poderia ser considerada de utilidade pública pela legislação estadual. Assim, enquanto atividade nitidamente privada, a cláusula do devido processo substantivo protegeria sua liberdade fundamental de atuação naquele ramo independentemente de licenciamento. Além disso, o condicionamento da atividade a uma suposta necessidade de demanda local não atendida privaria indevidamente a liberdade da empresa. Ante tais argumentos, a Corte Distrital Federal (1ª instância) entendeu que a fabricação de gelo representaria uma atividade empresarial notadamente privada que, enquanto tal, não poderia estar sujeita à restrição estatal por intermédio de licenciamento compulsório. Com os mesmos argumentos, a Corte Federal de Apelações do Décimo Circuito manteve a decisão de 1ª instância.
Inconformada com a entrada de uma concorrente não licenciada em seu mercado cativo, a New State Ice Company apelou à Suprema Corte dos EUA sob o argumento de que a atividade legislativa e regulatória do Estado de Oklahoma, ao condicionar a fabricação do gelo a licenciamento específico, seria válida, razoável e justificada. Mais do que isso, caberia à Liebmann demonstrar o desacerto da decisão legislativa que, em abstrato, determinou o esquema regulatório da cadeia produtiva do gelo em nome do interesse público dos cidadãos de Oklahoma.
Em sua decisão, a Suprema Corte, por seis votos a dois, manteve o julgamento das Cortes inferiores. Em específico, a opinião da Corte, da lavra do Justice George Sutherland, indicava que a atividade empresarial de fabricação e venda de gelo seria essencialmente privada; com isso, não haveria um interesse público capaz de justificar constitucionalmente a limitação concorrencial trazida pela legislação estadual àqueles que pretendessem atuar na área.
No entanto, a decisão da Suprema Corte em New State Ice Co. v. Liebmann (1932) é até hoje famosa em função da opinião dissidente do Justice Louis Brandeis. No caso, Brandeis entendia que ao Estado de Oklahoma deveria ser garantida a possibilidade de estabelecer um esquema regulatório com licenças obrigatórias para a fabricação de gelo. Diante disso – e em sua notável frase no julgamento em questão –, afirmava, em resumo, que a negativa ao direito de experimentação pelos Estados poderia acarretar sérias consequências à nação. É que um dos felizes incidentes do sistema federal seria o fato de que um Estado corajoso pode, se seus cidadãos assim decidirem, servir como um laboratório e realizar experimentos sociais e econômicos sem risco para o restante do país.1
Brandeis introduzia, assim, a ideia de que os Estados da federação seriam, em sua atividade legislativa, verdadeiros "laboratórios da democracia". Com isso, os experimentos no nível local poderiam trazer ensinamentos e servir como modelo futuro à população em geral. Sem dúvidas, o modelo de "laboratórios da democracia" de Brandeis teve grande repercussão em julgamentos futuros na Suprema Corte dos EUA e na sociedade americana. Tudo isso, pois, diante das características próprias do federalismo americano, no qual os entes federados têm papel proeminente frente ao governo central.2
A situação brasileira, no ponto, é bastante distinta. Ainda que com notável inspiração no modelo americano, o federalismo brasileiro, com sua distribuição difusa de competências, foi gestado e desenvolvido com nítida tendência centralizadora. Diante disso, o que se vê é um regime de agigantamento de competências nacionais que permite à União verdadeiro controle e condicionamento das atividades subnacionais. Por aqui, pois, os chamados "laboratórios da democracia" de Brandeis detêm um campo de experimentação muito mais limitado.
Ainda assim, o conceito formulado em 1932 na Suprema Corte dos EUA tem sido revigorado, no Brasil, em discussões relativas às competências legislativas da União e dos Estados. De forma expressa, o Supremo Tribunal Federal utilizou o precedente firmado em New State Ice Co. v. Liebmann (1932) em apenas uma ocasião até hoje: no julgamento em que reconheceu a existência de repercussão geral da matéria tratada no RE 1.188.352/DF, da relatoria do Ministro Luiz Fux.
Em concreto, trata-se de recurso interposto pelo Governador do Distrito Federal contra acórdão do TJDFT que, em processo objetivo, assentou a inconstitucionalidade da de lei distrital que invertia as fases de habilitação e de classificação nas licitações no âmbito do Distrito Federal.3 Afirmava o governador, na oportunidade, que o Distrito Federal havia ultrapassado sua competência legislativa e adentrado naquela privativa da União para editar normais gerais de licitação.
De fato, a discussão ainda pendente de julgamento no Supremo diz respeito à possibilidade de que Estados, Distrito Federal e Municípios legislem sobre a inversão de fases de habilitação e classificação nos procedimentos licitatórios sob sua alçada, sobretudo tendo em vista que a Constituição, em seu art. 22, XXVII, indica que compete privativamente à União legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Em termos práticos, predomina o entendimento de que a inversão de fases no procedimento licitatório representa efetivo ganho de eficiência e celeridade, principalmente quando se vislumbra a economia processual com a análise dos quesitos de habilitação após o exame das propostas em si.
Com a inversão de fases, o que se tem é a mudança da ordem de análise dos documentos de habilitação e de proposta (primeiro se julgam as propostas, depois é analisada a qualificação do proponente que apresentou a melhor delas). Assim, somente os documentos de qualificação da melhor proposta é que serão abertos; na etapa subsequente, faz-se a verificação da melhor proposta quanto ao atendimento de todos os requisitos previstos no edital (sobretudo a capacidade jurídica, a qualificação técnica, a qualificação econômico-financeira e a regularidade fiscal do proponente).
A tese contrária à inversão de fases por legislação subnacional tem como argumento fundante o fato de que tal providência descaracterizaria o processo licitatório previsto na lei 8.666/93, que é norma geral de licitações e contratações editada pela União no exercício de sua competência legislativa privativa. Debatendo tal ponto quando do reconhecimento da repercussão geral, o Ministro Luiz Fux utiliza a ideia dos "laboratórios da democracia" a fim de vislumbrar uma possível experimentação normativa pelos entes subnacionais.
Para Fux, "a imposição constitucional de existência de um núcleo comum e uniforme de normas deve ser sopesada com a noção de laboratório da democracia (laboratory of democracy). É desejável que os entes federativos gozem de certa liberdade para regular assuntos de forma distinta, não apenas porque cada um deles apresenta peculiaridades locais que justificam adaptações da legislação federal, mas também porque o uso de diferentes estratégias regulatórias permite comparações e aprimoramentos quanto à efetividade de cada uma delas". Citando a famosa locução de Brandeis em New State Ice Co. v. Liebmann (1932), o Ministro do STF argumenta que "impor ao Estado-membro a simples reprodução acrítica de norma federal, quando tal circunstância não decorre de mandamento constitucional ou de algum imperativo real de uniformidade nacional, inviabiliza uma das facetas do federalismo enquanto meio de, nos estritos limites das competências constitucionais de cada ente, inovar e evoluir na política regulatória".4
Quanto ao tema de fundo discutido no RE 1.188.352/DF (possibilidade de legislação subnacional acerca das fases do procedimento licitatório), duas observações finais são importantes. Primeira: embora tivesse julgamento de mérito agendado para 13.5.2021, o processo foi excluído da pauta pelo presidente do STF em 6.5.2021. Não há, ainda, nova previsão de pauta. Segunda: a Nova Lei de Licitações (lei Federal 14.133/2021), editada com base na competência da União para legislar sobre normas gerais de licitação, trouxe como regra procedimental a inversão de fases nas licitações (art. 17), o que pode servir como parâmetro argumentativo para o julgamento do STF no sentido de chancelar a viabilidade de legislação subnacional invertendo as fases dos procedimentos licitatórios sob a égide da Lei Federal 8.666/1993. Caso isso ocorra, haverá a chancela, também, da atividade dos "laboratórios da democracia" no Brasil.
Por derradeiro – e para além da discussão acerca da competência legislativa em matéria de licitações –, importante mencionar que o Ministério Público Federal, no ano de 2021, fez uso da ideia dos "laboratórios da democracia" e do experimentalismo federativo, com expressa menção ao caso New State Ice Co. v. Liebmann (1932), em dois processos específicos em trâmite no STF: 1) em parecer na ADI 6732/GO, sobre a inconstitucionalidade de norma da Constituição do Estado de Goiás que estabelece a exigência de prévia autorização do Tribunal de Justiça para abertura de inquérito, por crimes comuns, contra autoridades com foro por prerrogativa de função; 2) em vinte duas ADIs questionando dispositivos estaduais (e do DF) que permitem a reeleição de membros das Mesas Diretoras das Assembleias Legislativas, para o mesmo cargo, na eleição imediatamente subsequente dentro da mesma legislatura.5
Ao final, o que se vê é que a ideia dos "laboratórios da democracia" de Louis Brandeis tem ganhado corpo no federalismo brasileiro. Assim, o feliz incidente do sistema federal que viabiliza a existência dos "laboratórios" e dos experimentos nos entes subnacionais parece que veio para ficar.
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1 No original: To stay experimentation in things social and economic is a grave responsibility. Denial of the right to experiment may be fraught with serious consequences to the Nation. It is one of the happy incidents of the federal system that a single courageous State may, if its citizens choose, serve as a laboratory and try novel social and economic experiments without risk to the rest of the country. This Court has the power to prevent an experiment. We may strike down the statute which embodies it on the ground that, in our opinion, the measure is arbitrary, capricious or unreasonable. We have power to do this, because the due process clause has been held by the Court applicable to matters of substantive law as well as to matters of procedure. But in the exercise of this high power, we must be ever on our guard, lest we erect our prejudices into legal principles. If we would guide by the light of reason, we must let our minds be bold.
2 Tanto é assim que a dualidade de competências entre os Estados e a União é expressada de forma clara na Décima Emenda à Constituição dos EUA, a última do chamado Bill of Rights. Vejamos seu texto: Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Constituição, nem proibidos por ela aos Estados, são reservados aos Estados, respectivamente, ou ao povo. Em outras palavras, a Décima Emenda destaca que a inclusão de uma Declaração de Direitos (Bill of Rights) na Constituição não altera o caráter fundamental do governo nacional, que continua a ser um governo de poderes limitados e enumerados. Assim, a primeira questão a ser analisada em todo e qualquer exercício de poder federal não é a eventual violação dos direitos de alguém, mas sim a virtual extrapolação dos poderes enumerados do governo nacional. Nesse sentido é a concordância dos professores Gary Lawson e Robert Shapiro na interpretação constante da Constituição interativa disponível no site do National Constitution Center. Disponível em: https://constitutioncenter.org/interactive-constitution.
3 Lei Distrital 5.345/2014. O Recurso Extraordinário em questão resultou no Tema 1036 da Repercussão Geral no STF, a saber: Competência legislativa para editar norma sobre a ordem de fases de processo licitatório, à luz do art. 22, inciso XXVII, da Constituição Federal.
4 STF – RE 1.188.352/DF RG – Voto do Ministro Luiz Fux.
5 Dispositivos das Constituições de Mato Grosso do Sul (ADI 6698), do Maranhão (ADI 6699), Minas Gerais (ADI 6700), Roraima (ADI 6703), Goiás (ADI 6704), Pará (ADI 6706), Espírito Santo (ADI 6707), Tocantins (ADI 6709), Sergipe (ADI 6710), Piauí (ADI 6711), Pernambuco (ADI 6712), Paraíba (ADI 6713), Paraná (ADI 6714), Ceará (ADI 6715), Acre (ADI 6716), Mato Grosso (ADI 6717), Amapá (ADI 6718), Amazonas (ADI 6719), Alagoas (ADI 6720), Rio de Janeiro (ADI 6721), Rondônia (ADI 6722) e da Lei Orgânica do Distrito Federal (ADI 6708).